Luz orgíaca — a do teu corpo amante.
Casimiro de Brito
Emilia Wilk |
Sonhei-te lentamente,
em plena consciência do disfarce.
Sabia-te irreal,
mas o sonho restava devagar.
Com pormenores tão lentos
que o tempo me sobrava de pensar.
Sentei-me ao pé de ti,
junto ao meu sonho, e pude ler indícios,
os símbolos que queria
estavam lá. Sonhei-te porque sim:
a confusão existe no real.
Ana Luísa Amaral
Emile Vernon |
A tua nudez inquieta-me.
Há dias em que a tua nudez
é como um barco subitamente entrado pela barra.
Como um temporal. Ou como
certas palavras ainda não inventadas,
certas posições na guitarra
que o tocador não conhecia.
A tua nudez inquieta-me. Abre o meu corpo
para um lado misterioso e frágil.
Distende o meu corpo. Depois encurta-o e tira-lhe
contorno, peso. Destrói o meu corpo.
A tua nudez é uma violência
suave, um campo batido pela brisa
no mês de Janeiro quando sobem as flores
pelo ventre da terra fecundada.
Eu desgraço-me, escrevo, faço coisas
com o vocabulário da tua nudez.
Tenho «um pensamento despido»;
maturação; altas combustões.
De mão dada contigo entro por mim dentro
como em outros tempos na piscina
os leprosos cheios de esperança.
E às vezes sucede que a tua nudez é um foguete
que lanço com mão tremente desastrada
para rebentar e encher a minha carne
de transparência.
Sete dias ao longo da semana,
trinta dias enquanto dura um mês
eu ando corajoso e sem disfarce,
iluminado, certo, harmonioso.
E outras vezes sucede que estou: inquieto.
Frágil.
Violentado.
Para que eu me construa de novo
a tua nudez bascula-me os alicerces.
Fernando Assis Pacheco
in A Musa Irregular
Diego Dayer |
Do amor fica sempre uma canção.
Fica um sinal na pele. Fica um sinal.
Do amor fica um sim e fica um não.
Fica o sol e a sombra. Fica o sal.
Do amor fica sempre um coração
a pulsar na memória o tempo breve
de sua chama a arder um só Verão.
Do amor fica amor que se não teve.
Fica uma réstia e um rasto de navio.
Do amor o que fica é um passar
que do amor como o tempo é ser um rio
como um rio fluir e assim ficar.
E por isso de amor este arrepio
de se morrer (de se viver) de amar.
Manuel Alegre, in “Coisa Amar (Coisas do Mar)"
David Palumbo |
Habita-me tua jovem natureza
Teu corpo um poema, espantada luz,
Onde sinais inquietos se revelam,
De minhas mãos punhais te sulcam
Numa febre intermitente.
Vejo-te na forçada ausência
Numa angústia que não se dissipa
Imagino-te nas palavras sussurradas,
No olhar de uma distância indefinida,
O espaço entre a clareira e o beco
Entre teu ventre e a boca ardente.
Água aberta a todas as nascentes,
As verdes copas de alegria fremem,
Na tua simples e clara nudez,
E no meu corpo exultam raízes.
Dos pinheiros a seiva chama-me
Caldeirinha orvalhada, luares gestos,
Mãos de barro te adornam,
Nesta natura forma de querer,
Saber teu corpo respirando,
Pelas altas madrugadas do desejo.
Em minhas mãos grita teu corpo,
Línguas de fogo contra dançam,
Sinais indeléveis, fulgor intenso.
Na sombra de teus ombros, caio,
Adormeço no mar de teus olhos.
E a ausência, é só uma palavra
Recortada na maré...
Joaquim Monteiro
Damian Lechoszest |
Gilles Deleuze
Os dramas mais impressionantes, e os mais excêntricos, não são desempenhados no teatro, mas no coração dos homens comuns, pelos quais passamos sem prestar atenção e que, no máximo, mostram ao mundo, através de um colapso nervoso, as batalhas que se desferem em seu íntimo.
Além disso, o que é mais difícil para a compreensão dos leigos é que, em geral, os doentes não têm qualquer pressentimento da batalha que se trava em seu inconsciente. Se considerarmos, no entanto, o número de homens que nada sabem acerca de si mesmos, não devemos nos admirar de que também haja os que nada pressintam acerca de seus verdadeiros conflitos. Se leitor estiver inclinado a admitir a possível resistência de conflitos patogênicos, eventualmente oriundos do inconsciente, então protestará contra o fato de que se trata de um conflito erótico. E se for propenso ao nervosismo, poderá irritar-se contra este absurdo aparente; pois fomos acostumados pela educação recebida em casa e na escola a persignar-nos três vezes diante de palavras tais como "erótico" e "sexual". Consequentemente pensamos que não há nada disso ou que, pelo menos, se trata de algo raro ou longínquo. E no entanto os conflitos neuróticos daí procedem, em primeiro lugar.
Carl Gustav Jung
Charles James Lewis |
O primeiro olhar pela janela de manhã.
O velho livro redescoberto.
Rostos entusiasmados.
Neve, o câmbio das estações.
O jornal.
O cão.
A dialética.
Duchas, nadar.
Música antiga.
Sapatos cômodos.
Compreender.
Música nova.
Escrever, plantar.
Viajar, cantar.
Ser cordial.
Bertolt Brecht, “Prazeres”
CARO GUARINOS |
Se eu vos disser: «tudo abandonei»
É porque ela não é a do meu corpo,
Eu nunca me gabei,
Não é verdade
E a bruma de fundo em que me movo
Não sabe nunca se eu passei.
O leque da sua boca, o reflexo dos seus olhos
Sou eu o único a falar deles,
O único a ser cingido
Por esse espelho tão nulo em que o ar circula através de mim
E o ar tem um rosto, um rosto amado,
Um rosto amante, o teu rosto,
A ti que não tens nome e que os outros ignoram,
O mar diz-te: sobre mim, o céu diz-te: sobre mim,
Os astros adivinham-te, as nuvens imaginam-te
E o sangue espalhado nos melhores momentos,
O sangue da generosidade
Transporta-te com delícias.
Canto a grande alegria de te cantar,
A grande alegria de te ter ou te não ter,
A candura de te esperar, a inocência de te conhecer,
Ó tu que suprimes o esquecimento, a esperança e a ignorância,
Que suprimes a ausência e que me pões no mundo,
Eu canto por cantar, amo-te para cantar
O mistério em que o amor me cria e se liberta.
Tu és pura, tu és ainda mais pura do que eu próprio.
Paul Eluard, in "Algumas das Palavras"
Bruno Di Maio |
A palavra primavera floresce em nossa boca.
E a palavra mar faz de quem a pronuncia uma ilha encantada.
Quando parto sem palavras, uma tristeza vai comigo
a doer-me no sangue, na raiz da fala e do afecto.
Só elas podem explicar o mistério do amor.
Delas retiro o ouro, o trigo, a fala e a esperança. Nelas
vivem o tigre e a esmeralda. Delas sopra o vento.
São curandeiras. Feiticeiras. Mensageiras. Deusas.
São o canto da alma e a voz que falta às andorinhas.
E o sorriso do anjo. E a única coisa que Deus não inventou.
São essas palavras que ficam mudas no coração da gente
para que os beijos possam dizer tudo o que elas não dizem.
Joaquim Pessoa
Gosto das palavras frágeis
como gosto de ti
e a verdade é que é também frágil
a minha forma de gostar-te.
Por vezes gostava
de ser como tu. Ser frágil e usar anéis
com as pedras raras da esperança,
as insondáveis pedras dos dias
que hão-de vir. Mas vivo
o exílio destes dias repetidos
sobre a efemeridade da pele, vogando
como cisnes moribundos
em busca de uma última revelação,
talvez uma melodia tão pura que
possa transformar em pão
não só as nossas rosas mas também
a própria liberdade. E é por isso
que amo as palavras frágeis,
essas palavras que me ofereces
e que são, assim, de tão frágeis,
a minha imensa força
e o meu fatal deslumbramento.
*
Joaquim Pessoa,
in "O Poeta Enamorado".
Aydemir Saidov |
Lo que conoces
es tan poco
lo que conoces
de mí
lo que conoces
son mis nubes
son mis silencios
son mis gestos
lo que conoces
de mí
lo que conoces
es la tristeza
de mi casa vista de afuera
son los postigos de mi tristeza
el llamador de mi tristeza.
Pero no sabes
nada
a lo sumo
piensas a veces
que es tan poco
lo que conozco
lo que conozco
de ti
lo que conozco
o sea tus nubes
o tus silencios
o tus gestos
lo que conozco
es la tristeza
de tu casa vista de afuera
son los postigos de tu tristeza
el llamador de tu tristeza.
Pero no llamas.
Pero no llamo.
Mario Benedetti - El amor, las mujeres y la vida
Pasquale Picazio |
Como seria estranho se algumas mulheres tomassem a frente e dissessem:
Nós somos mulheres-sol!
Não pertencemos nem aos homens, às nossas crianças ou mesmo à nós mesmas,
mas apenas ao sol.
E como é delicioso sentir a luz do sol sobre uma delas!
E como é delicioso! abrir como uma calêndula
quando um homem examina uma delas
com o sol em sua face, de modo que uma mulher não pode mais que abrir
como uma calêndula para o sol,
e excitar-se com seus raios brilhantes.
Lawrence
Últimos dias de aula. Eduardo, Mauro e Eugênio (um rapaz franzino, pálido e de olhar vivo, que viera transferido de outro colégio) conversavam no corredor sobre a vida que iam enfrentar lá fora, o destino que os esperava. Resolveram, os três, assumir um compromisso: qualquer que fosse o caminho que eles tomassem, vinte anos depois voltariam a reunir-se ali, naquele lugar.
— Vinte, não: quinze — objetou Eduardo: — Vou morrer antes disso.
— Então quinze — concordaram os outros dois, sem se importar que ele morresse. Onde estivessem, acontecesse o que acontecesse.
— Neste mesmo lugar.
— Mesmo que tenham derrubado o Ginásio, nos encontraremos no lugar onde havia o Ginásio.
Marcaram data certa, dia e hora, cada qual escreveu num papelzinho.
— Quem faltar, é porque morreu.
— Ou então está preso...
— Só não pode esquecer...
Calaram-se, e ficaram pensando...
— Que será de nós? — perguntou um deles, distraído.
Que seria deles? Não sabiam, e não se incomodavam.
Fernando Sabino, O Encontro marcado
Alex Alemany |
Tentou várias poções
Alguns deles sabiam como se descobre
O fogo dos dragões
Sussurraram seu segredo através dos tempos
Escondidos nos porões
As químicas, as senhas, as sabedorias
O livro das constelações
O centro, o dentro, o magma da terra
E a ira dos vulcões
Como manter intacto o estudo dessa ciência
Através das religiões
Que queimam livros, ensinos, manuscritos
A era das perseguições
Buda, Cristo, Hermes Trismegisto
Os homens e suas noções
A luz, o grande conhecimento
As substâncias, os materiais, os elementos
Tudo que existe e todas as mutações
Bruna Lombardi
Não adianta se enroscar nos meus vestidos
se afundar nas mangas do casaco
se enfiar nas dobras das minhas costas
se esconder no meu sapato.
Não adianta escorregar como bandido
querer fugir pra dentro dos espelhos
distanciar o mais possível os ponteiros
se intrigar na trama dos meus pelos.
Não adianta se enfeitar com tatuagens
cantarolar baixinho nas emendas
se fantasiar de verde azul furtado
pra se mimetizar com as minhas coisas.
Não adianta se envolver com bailarinas
nem me implicar nos seus casos oblíquos
argumentar as manhas do seu signo
me convencer dessa maneira abstrata.
Não adianta se enrolar nas minhas franjas
usar o diabólico perfume de alfazema
nem me tentar com as frutas do momento
nessa insaciável luxúria de unicórnio.
Não adianta falar sozinho pelos quartos
me enfrentar com atitudes complicadas
ousar seus truques, simular suas quedas
pra confundir as peças do meu jogo.
Dance sozinho.
meu dragões e minhas bruxas me protegem.
Nenhuma das chaves que você roubou abre caminho.
Bruna Lombardi
Peter Seminck |
oceanos onde possamos navegar, partir, tornar a voltar
muitas fronteiras, novos horizontes
em que nada se limite aos poucos sentidos
nem se restrinja a moralidades, a códigos
a crenças e princípios
nem se submeta a leis, homens, governos
lugares comuns, discursos e ismos
nem se afogue em mitos, lendas, ideologias.
Nada dessa raça de indivíduos com pés, hábitos, lágrimas, valores
e mãos vazias tentando agarrar um inatingível deus
tentando se esconder nas suas vestes
se desculpar na sua misericórdia
com oferendas, rituais, e sacrifícios e toda essa farsa.
Um lugar onde fosse ao fim das coisas
se penetrasse em cada uma delas até sugar-lhe o bagaço
até chupar-lhe as vísceras
sem medo algum, sem bloqueio, sem barreiras
construídas pelas seitas e tabus.
Continentes onde a fúria natural jorrasse livre
sem que se paralise o pensamento
onde se ouse a ação, o grito, a loucura, o drama,
a gargalhada exploda em milhões de átomos e estrelas e uivos
de animais e agonias de angústia medonha e longa
como a noite dos tempos,
a paixão desenfreada, a dança.
Que desmorone nas pessoas esse comportamento adquirido
condicionado, esses costumes de cultos formais
a obrigação, a disciplina
essa pontualidade com a vida
essas mentiras todas herdadas,
impostas, aceitas.
Que se dissolva tudo. Que tudo escorra
nos canais de irrigação.
Que sejam os desejos insensatos e os voos sublimes.
Que sejam as cores, luzes, o som, o cheiro, o gosto, os poros sexuados.
Que fluam o sêmem, o sangue, os rios, a urina, e as palavras.
Que se restaure toda a verdade
tudo o que carrega o tempo e a gênese.
Que tudo se purifique até alcançar
o significado obsceno do êxtase.
Bruna Lombardi
Psicologia do Inconsciente - Carl Gustav Jung
Você me pergunta se eu acredito em Deus e eu te pergunto, quê Deus? Tem sido minha missão te mostrar Deus dentro do homem pois somente no homem ele pode existir. Não há homem pobre ou insignificante que pareça ser, que não tenha uma missão. Todo homem por si só influência a natureza do futuro. Através de nossas vidas nós criamos ações que resultam na multiplicação de reações. Esse poder, que todos nós possuímos, esse poder de mudar o curso da história, é o poder de Deus. Confrontado com essa responsabilidade divina eu me curvo diante do Deus dentro de mim.
Stuart Edgar Angel Jone
Richard Macneil |
O que a gente quer é a intimidade dos gostos em comum, um momento de conexão total, longe de tudo, mesmo estando dentro do caos da cidade, um momento longe de todos, mesmo estando rodeado por milhares de pessoas, a sensação de que você é a única opção que possível, mesmo que hoje as pessoas gostam de ter inúmeras possibilidades. O amor é criar um lugar dentro dos lugares, uma solidão acolhedora, um refúgio secreto, é reduzir o tamanho do mundo, o tamanho das dores e abandonar a esperança, pois já não se espera nada, tudo está aqui vestido de momento.
Há um interesse genuíno, vontade de saber quais são os seus poemas favoritos, conhecer as suas paredes e entender os seus muros sem querer invadir tua região escura, descobrir onde ficam as suas cicatrizes e saber o motivo das suas fugas quando tudo parece estar bem, quero te ouvir falando sobre o seu mundo de dentro, sobre o quintal da sua infância, percebe? Percebe que o amor não é virar as costas para o mundo, mas estar em um mundo novo.
Ignorar as páginas do Tempo enquanto lemos os ponteiros dos livros, ver filmes, andar pela sua calçada favorita, ver você perder o controle do riso é algo que irá me deslumbrar, receber uma ligação sem motivo, pois as letras na tela de um celular não bastam para a saudade, intimidade, essas pequenas coisas que ninguém vê, coisas que não são publicadas para o mundo, coisas nossas e há uma certa honra neste “egoísmo”, venha, vamos fugir para ficar, vamos ler todas as páginas do livro que ainda não foi escrito, vamos compartilhar a alegria da lágrima e a tristeza da impossibilidade do riso, eu te amo, saiba bem disso.
Zack Magiezi
Franz Kafka - Portrait of Milton Glaser. |
“querido pai,
Você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Como de costume, eu não soube responder. Em parte, justamente por causa desse medo. Eu era uma criança medrosa, é claro que apesar disso também era teimoso como o são todas as crianças. Certamente minha mãe mimou-me. Mas eu não posso crer que era uma criança difícil de lidar. Nem que uma palavra amável, um silencioso levar pela mão, um olhar bondoso não pudessem conseguir de mim tudo o que quisessem. O que eu teria necessitado a qualquer tempo e em qualquer lugar era o incentivo. Eu já estava esmagado pela simples materialidade do seu corpo. Você havia subido tão alto contando apenas com a própria força, que eu tinha confiança ilimitada na sua opinião pessoal. Da poltrona você regia o mundo. Sua opinião era a certa, todas as outras disparatadas, extravagantes, absurdas, anormais.
Você assumia pra mim o que há de enigmático em todos os tiranos, cujo direito está fundado não no pensamento, mas na própria pessoa. Logo cedo você me interditou a palavra. Sua ameaça: “nenhuma palavra de contestação!” e a mão erguida no ato me acompanharam desde sempre, na sua presença eu adquiri um modo de falar entrecortado e finalmente eu silenciei, porque na sua presença já não podia falar e nem pensar. Se eu queria fugir de você tinha que fugir também da família, até de minha mãe. Sempre era possível encontrar nela proteção, mas só em relação a você. Ela lhe amava demais e lhe dedicava demasiada fidelidade para que, numa luta contra o filho, pudesse ter por muito tempo um poder espiritual autônomo. Eu estava continuamente em desgraça. Ou eu obedecia-lhe os comandos, o que era uma desgraça, ou desafiava, o que também era uma desgraça. Eu já perdi minha autoconfiança diante de você e substitui por um ilimitado sentimento de culpa.
Franz Kafka
Bertrand Russell
Victor Frimu |
Sofria adiantadamente todas as dores, sem esquecer nenhuma, de um rompimento que em outras ocasiões julgava poder evitar, como aquelas pessoas que liquidam todos os seus assuntos na mira de uma expatriação que não irá efetuar-se, e cujo pensamento, que já não sabe onde deverá situar-se no dia seguinte se agita momentaneamente, despegado delas, semelhante a um coração que se arranca a um doente e que continua a bater, separado do resto do corpo. Em todo o caso, esta esperança de que a amante regressaria dava-lhe coragem para perseverar no rompimento, tal como a crença de poder regressar vivo do combate ajuda a enfrentar a morte. E como o hábito é, de todas as plantas humanas, aquela que menos necessidade tem para viver de um solo rico de alimento, e a primeira a aparecer no aparentemente mais desolado dos rochedos, talvez começando por praticar o rompimento a fingir acabasse por se lhe acostumar sinceramente. Mas a incerteza alimentava nele um estado que, ligado à recordação daquela mulher, se assemelhava ao amor.
Marcel Proust
Em busca do tempo perdido
Victoria Stoyanova |
Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas,
Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.
E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.
E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.
Carlos Pena Filho
Vittorio Vidan Dangelico |
Proust, al analizar los deseos, dice que los deseos no quieren analizarse sino satisfacerse, esto es: no quiero hablar del jardín, quiero verlo. Claro es que lo que digo no deja de ser pueril, pues en esta vida nunca hacemos lo que queremos. Lo cual es un motivo más para querer ver el jardín, aun si es imposible, sobre todo si es imposible...
Alejandra Pizarnik
"Toquem-me agora,
ainda que eu esteja muito longe."
Tocar é a mais pessoal de todas experiências. Vibra através de todas as máscaras que a cultura e a civilização fizeram a fim de nos esconder e separar. Podemos aprender que as cores do toque são muitas e variadas - que as tramas harmônica ou dissonante das formas de toque são surpreendes e confusas. mas, não importa de que forma eu toco, ou sou tocado, e não importa qual o desenho e a forma dos modelos de toque, acharei que estou sendo somente tocado agora e somente posso tocá-lo agora.
Isso significa que o toque é a porta de entrada para a experiência do agora - e através desta porta passam os que estão no caminho da terra da percepção progressiva - tanto de si mesmo como dos outros.(...)
A sensação é um acontecimento - alguma coisa que está acontecendo - e a pessoa focaliza sua atenção no que está acontecendo. Está consciente. E esta consciência coloca-o no Agora. É como se um contato passasse a existir em seu corpo. As coisas estão se juntando - estão tocando - e é este toque a a atenção dada a ele que constituem a consciência. É preciso haver um toque - um contato - para se estar atento. É preciso estar atento a este toque se quero estar consciente. Só posso tocar você agora - Ronald B. Levy.
Só posso tocar você agora - Ronald B. Levy
Alessandro-Granata |
Ela tinha a beleza tranquila da maturidade. Bastava vê-la para adivinhar como ela teria sido. Ah! Com certeza provocara muitos suspiros de amor. De hábitos domésticos e simples, um dos seus prazeres era assentar-se numa poltrona e entrar na bolha que a leitura cria. Quem lê está num outro mundo, muito longe.
O seu marido a observava de longe. Olhos que observam são olhos que olham quando o outro não está olhando. Olhos que observam são olhos de felino que seguem a presa. Seu olhar era olhar de apaixonado que desconfia, olhar de ciúme. Os olhos do ciumento vigiam. Vigiam gestos, movimentos, horas. Vigiam porque as modulações silenciosas e distraídas no rosto da pessoa amada podem conter revelações sobre aquilo que ela está pensando. O ciumento suspeita que a mulher amada lhe esconde algo. Ele olha na esperança de ver o escondido, de entrar dentro do segredo do outro. O ciumento detesta os pensamentos. Por mais que os vigie, eles estão além da sua vigilância.
Tem aquela modinha de Carlos Gomes, Quem Sabe? É um monólogo de um apaixonado. Ele sofre. Sofre porque a amada está longe e ele não sabe o que ela está pensando. “Tão longe de mim distante, onde irá, onde irá teu pensamento?” O seu desejo era saber se os pensamentos da amada pensavam nele. Ele pergunta porque não sabe e tem medo de saber o que ela estará pensando. Pergunta porque não confia. Minha amada, por favor, me diga “se ainda é meu teu pensamento…”.
Há os ciúmes mansos que todos sentem e só doem um pouquinho. E há os ciúmes que são um tormento e que frequentemente terminam em tragédia. Todo ciúme, manso ou atormentado, gostaria de ser dono da mulher amada, inclusive dos seus pensamentos. Ele quer conhecê-la por dentro e por fora para certificar-se da sua posse. Nos momentos de êxtase amoroso, esse tormento se resolve e o ciumento se acalma. Mas a sua calma é efêmera. Dura o mesmo tempo do ato sexual. Termina com o orgasmo. Passado o êxtase a dúvida volta. E, com ela, o tormento.
Ele a vigiava, silenciosamente o felino a vigiava. E a sua vigilância se exacerbava quando ela sorria ou ria. Como explicar esse sorriso se ele, o seu marido, não estava dentro do livro? Ela não precisava dele para ser feliz. Mergulhada no seu livro, o seu marido não existia. E isso não é o anúncio de uma infidelidade possível? Ter prazer com algo que não era ele, o seu marido… O prazer acontecia na ausência dele. A infidelidade com o livro anunciava a possibilidade de grandes infidelidades. E isso o torturava. Tortura que não o abandonava nem nos momentos de intimidade prazerosa.
Um ciumento não tolera a liberdade.
Mas aí algo aconteceu que o tranquilizou. Sua esposa adoeceu. Uma mulher adoentada é um pássaro de asas quebradas que não sonha e nem poderia jamais voar. Um pássaro de asas quebradas não planeja voos proibidos. Pássaros de asas quebradas são confiáveis.
Isso o acalmou. Ele ficou doce. Até os momentos de intimidade ficaram leves: seu efêmero sentimento de posse se transformou num tranquilo sentimento de eternidade. Agora ela era sua, para sempre.
Suspeito que os crimes por ciúme não têm o propósito primeiro de matar a mulher amada. O seu propósito, ao contrário, é garantir que ela não será de nenhum outro.
Mas há também um ciúme que dói de mansinho, sofrimento no coração de todos os apaixonados.
A cena: o marido e a mulher chegam a uma festa. Muita gente conhecida e desconhecida, música, risos, olhares… Marido e mulher se separam para se socializarem com outras pessoas. Numa roda, o marido conversa e ri, distraído. De repente, ele vira o seu rosto e vê a sua mulher em outro grupo. Ela está de costas, vestido branco, costas nuas. Como ela é bonita! Ele a ama e pensa que outros homens já olharam para ela com olhares de admiração e desejo. Ela se tornou o centro das atenções da sua roda. Todos os homens se esforçam por lançar o seu charme. Ela ri. De costas para o marido é como se ele não existisse. Como aconteceu com a mulher que lia o livro. Ri por causa dos outros que a cercam, grupo do qual o marido está ausente. E ele pensa que, naquele momento, a felicidade da sua mulher acontece sem que ele dela participe. E lhe dói saber que ela pode ser feliz sem ele, ainda que num breve momento.
Sofre em silêncio, sem demonstrar. E nem fará cobranças quando voltarem para a casa. Afinal de contas, ele é um homem educado que compreende os movimentos da alma.
O ciúme nasce quando se toma consciência de que a pessoa amada é livre. Ela é como um pássaro pousado no ombro. Nada o prende. Poderá voar para longe quando quiser.
Alguns ciumentos tolos acham que o casamento é gaiola que garantirá a posse plena do pássaro. Mas nada garante a posse do pássaro. O pássaro voa, o pássaro volta… Mas pode ser mesmo que ele voe e não volte…
Rubem Alves
Há uma distância fundamental entre as palavras e os gestos de cada homem. As palavras prometem mundos, os gestos constroem-nos. As palavras esclarecem pouco, os gestos definem quase tudo.
O amor é um projeto, uma construção que necessita de ser realizada a cada dia. Sem grandes discursos. Qualquer hora é tempo de amar. Se o amor é verdadeiro, não há tempos de descanso, porque o silêncio no coração dos que buscam lutar contra as trevas dos egoísmos é a paz mais profunda e o maior descanso... ainda que se cravem espinhos na carne, ainda que não sarem as feridas antigas, ainda que a esperança tenha pouco mais onde se apoiar do que nela própria.
Cada um de nós é aquilo que for capaz de ir construindo de firme e duradouro a cada dia por entre todas as tempestades da vida.
O Amor não se Promete
Há muito quem sonhe e passe o tempo a desejar o que não é... esperam e desesperam por algo que lhes há de chegar de fora... rejeitando quase tudo quanto são, quando, na verdade, é com o que temos e somos que devemos ser felizes, por pouco e por pior que seja... somos nós. Mas nós não somos quem somos só para nós mesmos. Eu sou quem sou, mas só o serei se for capaz de me encontrar com os outros. Ser humano é ser relacional. Ser é sempre ser com o outro. Ninguém se vê só a si quando se olha por um espelho. Ser é amar. Dar-se... sem grandes sonhos ou promessas, com pequenos gestos, na heroica coragem de acreditar que não são nem as palavras nem os desejos que nos devolvem ao céu.
Encarcerados nunca seremos autênticos, devemos pois libertar-nos de tudo quanto nos pesa, de forma especial das coisas materiais, romper com as teias dos sonhos que nos inebriam e incapacitam de sair de nós mesmos para o mundo, de criar mundo... sem esperar nada, a não ser conseguirmos chegar ao melhor de nós mesmos...
Este desprendimento não será prudente aos olhos do mundo, mas é essencial confiar e seguir adiante, até porque as coisas e as pessoas são o que são, independentemente da forma como os olhos do mundo as veem, sentem ou pensam...
Aos sonhos falta existirem de facto, realizarem-se, ou melhor, serem realizados por alguém. A existência é um dos mais belos e decisivos atributos para que algo se faça determinante da nossa felicidade. Por isso a realidade mais pobre é, ainda assim, mais bela que o sonho mais magnífico...
Quase todos os egoísmos têm nome de amor. Conscientes do que são, escondem-se. Normalmente juntam-se aos pares... fazem pouco, falam muito, prometem tudo.... entrelaçam as suas necessidades de ter mais, de estar melhor, sem cuidarem que cada homem é muito mais do que aquilo que tem ou do que forma como está... nós, humanos, não somos deste mundo... somos do lugar de onde chegámos quando nascemos e do lugar para onde havemos de ir depois da morte... um mundo de onde este faz parte, mas muito maior, muito melhor... muito mais profundo.
É pois importante procurar a vontade do outro, e encontrarmo-nos nela, sermos o melhor que ele pode receber e merecer...
Amar é arriscar tudo, sem garantia alguma. Apenas com a fé de que, no amor, nos cumprimos... Amar é desprender-se e perder-se... abrir-se e abandonar-se à vontade de ser feliz.
Só o amor permite que se cumpra a mais essencial de todas as promessas da existência: Uma vida com valor e verdade.
Quem ama não promete... dá.
José Luís Nunes Martins, in 'Amor, Silêncios e Tempestades'
Escreves e riscam, escreves e riscam… Molhas a caneta, a mão abandonada a meia altura, titubeante. O cérebro não transmite à mão, aos dedos, o impulso para se moverem. A mão desce sobre o papel e a ponta de aço passeia sobre a brancura descrevendo complicadíssimos rabiscos, labirintos sem saída. Procura-se fatigosamente a saída. O pensamento aguça-se na angústia, choca-se contra as paredes para ver se elas se abrem numa passagem possível. Começa-se. Apaga-se. Recomeça-se. A expressão flui, o trabalho de aglutinação das frases e dos períodos repousa, afrouxa o esforço inicial. Convencemo-nos de ter encontrado o equilíbrio necessário entre as necessidades da própria sinceridade e as agressões irracionais da censura.
Aguardamos vacilantes. Claro, vacilantes, porque amamos tudo o que nos exigiu um esforço para nascer, para exteriorizar-se. Sentimos as mesmas impressões de outrora, diante dos professores, com esta diferença: com os professores estávamos convencidos de estar diante de indivíduos absolutamente superiores que tinham verdadeiramente a capacidade de julgar nossos esforços, os nossos méritos. Agora sentimos, pelo contrário, a incapacidade absoluta, o despreparo absoluto em quem armado de lápis, como então, julga e ordena. Mas há uma igualdade entre uns e outros, sentimos que uma igualdade existe.
Encontramo-nos agora, como então, diante de italianos, de velhos italianos (ainda quando jovens em idade), que não dão nenhuma importância aos outros, ao trabalho, ao esforço dos outros, à personalidade moral dos outros. Detentores, por um momento, de um poder (embora pequeno), querem deixar um vestígio dele, um vestígio o maior possível. O velho italiano não está habituado à liberdade: e não se fala de liberdade com L maiúsculo, abstração ideológica, mas da pequena, concreta liberdade, que se exprime no respeito aos outros, ao trabalho, aos esforços, à personalidade e às necessidades morais dos outros; que vence as pequenas, exasperantes, inúteis irritações; que impõe a quem tem o poder (mesmo que seja um pequeno poder) o ato de evitar até a aparência de uma injustiça, de um abuso.
Quem tem confiança nas boas energias dos homens e não ceifa um campo de trigo para destruir quatro papoulas e meia dúzia de tenras hastes de joio. Que acredita, antes, natural que assim seja, que ao trigo se misture joio e papoulas, porque uma vida coletiva só é saudável quando há luta, atrito, choque de sentimentos e paixões, e só na luta se revelam os fortes, os indispensáveis, os homens de fé e de ação, que tapam a boca à crítica agindo fortemente. Mas o velho italiano não compreende um poder sem repressões: se na Itália houvesse a pena de morte e ninguém sofresse esta sanção, o carrasco, para não estar sem fazer nada, tornar-se-ia mandatário de assassínio e de estupros, para poder trabalhar os seus cúmplices.
Assim como acontece em muitos vilarejos da Itália meridional, onde os guardas rurais danificam, eles próprios, a propriedade privada, para fazer sentir que são indispensáveis. Assim também o censor, para fazer sentir quanto é fatigante e árduo o seu ofício, apaga, anula, risca tudo, tudo, tudo, trigo e papoulas, trabalho e tédio, bem e mal. E a caneta continua a traçar rabiscos, esperando, porque sente que esta barbárie (a confusão nos critérios, o arbítrio e o abuso são barbáries), se esgotará na própria raiva…
GRAMSCI, A. Sotto la Mole (1916-1920). Torino: Einaudi, 1975.
O corpo,
Esta ilusão,
A transparência
Onde o tempo se inscreve,
A esculpida
Relembrança
— o não vivido.
O corpo,
Este completo desfrutar-se,
Onda, peixe, sereia,
De barbatanas selvagens
Como facas.
Corpo — o corpo,
Território do nunca,
Inigualável
País do meu espanto.
De todos os espantos.
(des)encontros, naufrágios,
Precipícios.
Pássaro-fêmea, carne
Colada em moldura,
Pele, poro.
Myriam Fraga
Robert Auer |
Sinto e louvo em ti todas as mulheres
e em cada uma delas os cinco sentidos
e mais um que só eu sei ler: o dom da natureza.
Por isso te peço que me bebas e vejas e ouças
e palpes e aspires e sintas em mim a terra toda.
E contigo farei o mesmo, e todo eu irei em busca
da primavera e de todas as outras estações
do corpo onde em cada uma delas morrer eu queria
devastando o teu corpo de mulher menina.
Resumir eu queria numa cerimónia derradeira
os prazeres que vivi contigo e mais e mais.
Mas como poderei matar-te, minha amada
se depois da morte a carne fica separada?
Por isso desejo que me mates ao mesmo tempo.
Casimiro de Brito
Bertrand Russell, O Valor da Filosofia
Painting by Timothy Rees |
XX
Nós, poetas e amantes
o que sabemos do amor?
Temos o espanto na retina
diante da morte e da beleza.
Somos humanos e frágeis
mas antes de tudo, sós.
Somos inimigos.
Inimigos com muralhas
de sombra sobre os ombros.
E sonhamos. Às vezes
damos as mãos àqueles
que estão chorando.
(os que nunca choraram por nós)
Ah, meus irmãos e irmãs...
Ai daqueles que nos amam
e que por amor de nós se perdem.
Ah, pudéssemos amar um homem
ou uma mulher ou uma coisa...
Mas diante de nós, o tempo
se consome, desaparece e não para.
Ouvi: que vossos olhos se inundem
de pranto e água de todo o mundo!
Somos humanos e frágeis
mas antes de tudo, sós.
Hilda Hilst
De Balada do Festival (1955)
É uma bênção especial pertencer entre aqueles que podem dedicar suas melhores energias para a contemplação e exploração de coisas objetivas e atemporais. Quão feliz e grato eu sou por ter recebido essa bênção, que dá um grande grau de independência em relação ao destino pessoal de alguém e a atitude de seus contemporâneos. No entanto, essa independência não deve nos habituar à consciência dos deveres que constantemente nos prendem ao passado, presente e futuro da humanidade em geral.
Nossa situação na terra parece estranha. Cada um de nós aparece aqui, involuntariamente e sem ser convidado, para uma estadia curta, sem saber o porquê e para quê. Em nossa vida diária sentimos apenas que o homem está aqui para o bem dos outros, para aqueles a quem amamos e por muitos outros seres cujo destino está ligado com o nosso. Muitas vezes me perturba a ideia de que a minha vida é baseada em grande parte no trabalho dos meus companheiros seres humanos, e estou ciente da minha grande dívida para com eles.
Eu não acredito no livre-arbítrio. Palavras de Schopenhauer: “O homem pode fazer o que quer, mas não pode querer o que quer”, me acompanham em todas as situações ao longo de minha vida e me reconciliam com as ações dos outros, mesmo que elas sejam bastante dolorosas para mim. Esta consciência da falta de livre arbítrio me impede de levar a mim mesmo e aos meus colegas muito a sério como indivíduos de ação e decisão, e de perder o meu temperamento.
Eu nunca cobicei riqueza e luxo e até mesmo os desprezo de certa forma. Minha paixão pela justiça social muitas vezes me levou a um conflito com as pessoas, assim como a minha aversão a qualquer obrigação e dependência que eu não considero absolutamente necessárias. Eu tenho um grande respeito pelo indivíduo e uma aversão insuperável pela violência e o fanatismo. Todos estes motivos me fizeram um pacifista apaixonado e antimilitarista. Sou contra qualquer chauvinismo, mesmo sob o disfarce de mero patriotismo.
Privilégios com base na posição e propriedade sempre me pareceram injustos e perniciosos, assim como qualquer culto exagerado à personalidade. Eu sou um adepto do ideal da democracia, embora eu saiba bem as fraquezas da forma democrática de governo. A igualdade social e a proteção econômica do indivíduo sempre me pareceram os objetivos comuns importantes do estado.
Embora eu seja um solitário típico na vida diária, a minha consciência de pertencer à comunidade invisível daqueles que lutam pela verdade, beleza e justiça me impede de me sentir isolado.
A experiência mais bela e mais profunda que um homem pode ter é o sentido do mistério. É o princípio fundamental da religião, bem como de todo esforço sério na arte e na ciência. Aquele que nunca teve essa experiência parece-me que, se não está morto, então, está pelo menos cego.
Perceber que por trás de tudo o que pode ser experimentado há uma coisa que a nossa mente não pode compreender, cuja beleza e magnificência nos alcança apenas indiretamente: isso é religiosidade. Neste sentido, sou religioso. Para mim, basta questionar estes segredos e tentar humildemente entender com a minha mente uma mera imagem da estrutura elevada de tudo que existe.
Albert Einstein
Vocês sabem francês.
Dividem,
multiplicam,
declinam perfeitamente.
Pois declinem!
Me digam: vocês
com os edifícios
sabem cantar?
A língua dos trens vocês compreendem?
Os discípulos
estendem as mãos
somente nos livros
e cadernos da tabuada.
Eu
aprendi o alfabeto nas placas
folheando páginas de ferro e alumínio.
Os mestres
apertam em suas mãos
a terra
arrancando-lhe cascas,
gomos,
mas toda ela não passa
de um globo
em escala.
Eu
de bruços aprendi geografia ─
não por acaso: dormia no chão
deitado nas tábuas
de meu mais regular declínio.
A Ilovaiski tortura uma questão:
─ Seria mesmo ruiva a barba do Barba-Ruiva?
Não me importa essa burrice de holofotes.
Qualquer história das ruas
para mim é mais digna de nota.
Pagam Boaventuras (para odiar
desventurados)
e fazem patíbulo de sobrenomes
do prestigioso pódio.
Eu
aos gordos
desde a infância aprendi a sentir ódio.
Eu era pobre
e me vendia pelo almoço.
Depois retinirão ideiazinhas
como tostões de cobre
para levar também as moças.
Eu somente com os edifícios me entretinha.
Só me respondiam os encanamentos.
À espera do que eu lhes lançasse na orelha
as calhas se esticavam dos telhados.
Depois, uns contra os outros
e todos contra as estrelas,
em línguas que eu lhes tenha alumiado,
estalavam cata-ventos.
Vladimir Maiakóvski
Na juventude, predomina a percepção intuitiva; na idade madura, a reflexão; por isso a primeira é a época da poesia, enquanto a segunda é a da filosofia. Em questões práticas sucede o mesmo: durante a juventude as resoluções são formadas principalmente por impressões externas provenientes do mundo; enquanto que, mais tarde, as ações são determinadas pela reflexão. Isso se deve parcialmente ao fato de que apenas na idade madura os casos de percepção intuitiva se apresentam em número suficiente para permitir que sejam classificados segundo as ideias que representam — um processo que, por sua vez, faz com que tais ideias sejam compreendidas mais completamente em toda a sua significância, sendo fixada e determinada sua quantidade exata de valor e crédito; enquanto, ao mesmo tempo, acostumou-se às impressões produzidas pelos vários fenômenos da vida, e seus efeitos sobre si já não são os mesmos. Pelo contrário, na juventude a impressão da percepção intuitiva, o aspecto exterior das coisas, especialmente nos cérebros vivos e imaginativos, é tão poderosa que consideram o mundo como um quadro. Desse modo, preocupam-se com a espécie de figura que esculpem nele muito mais que com a disposição interior que desperta, moral e intelectualmente. Isso já se revela na vaidade pessoal e no gosto por roupas finas, que são características dos indivíduos jovens.
Arthur Schopenhauer, Aforismos para a sabedoria de vida
Michael Taylor |
De vez em quando visita-te
o vazio.
Nunca se faz anunciar, ignoras
por onde e como entra, sabes apenas que entrou
quando o vês passear pela tua casa
com o à vontade de quem inspeciona um lugar
onde planeia
alojar-se longos dias.
Vasculha tudo, revira todos os avessos
retira tuas parcas certezas e sonhos
dos lugares onde os guardas
enrodilha-se nos lençóis
cerca, com seu hálito azedo
a suave cova das almofadas.
onde tua nuca
já não encontra repouso
Em todo o lado paira
como fino pó negro que não se refugia
nos recantos, antes te empurra para eles
não se instala na capa dos livros
mas no interior
das tuas mais amadas páginas.
E não tens forma de o aspirar
porque é ele quem te aspira...
António Gil in « Por estas alturas »
Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade. A realidade, Maria, é louca.
Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: “Fala a verdade Dinah, já comeste um morcego?”
Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. “Quem sou eu no mundo?” Essa indagação perplexa é lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.
A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: “Estou tão cansada de estar aqui sozinha!” O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada ou vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.
Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de esperar dela grandes consequências. Quando Alice comeu o bolo e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.
Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.
A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: “Oh, I beg your pardon” Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice: “Gostarias de gato se fosses eu?”
Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: “A corrida terminou! mas quem ganhou?” É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre onde quiseres, ganhaste.
Disse o ratinho: “A minha história é longa e triste!” Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: “Minha vida daria um romance”. Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance só é o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energeticamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: “Minha vida daria um romance!” Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.
Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: “Devo estar diminuindo de novo” Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.
E escuta a parábola perfeita: Alice tinha diminuido tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor. Toda a pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.
Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: “Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas”.
Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.
Paulo Mendes Campos. Do livro “O amor acaba”.