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domingo, 24 de dezembro de 2023


Abro a caixa do poema para descobrir

velhos versos, estrofes que ficaram a meio,

imagens gastas pelo bolor dos anos. Devia

ter deitado tudo para o lixo, no meio

de metáforas sem uso, de aliterações

surdas, de hipérboles furadas como balões

de feira. Mas encontro palavras que ainda

me servem, as que falam de coisas que não

passam, as que trazem um eco de vozes

que voltam a soar aos meus ouvidos, como

se estivessem comigo. E volto a fechá-la,

para não perder o que nunca tive.


 Nuno Júdice 

domingo, 19 de novembro de 2023


 O templo está fechado para quem não

conhece a entrada. Mas as suas portas

são o céu, e as mãos que afastam o vestido

como se abrissem as nuvens

sabem por onde se entra.


Nuno Júdice 

segunda-feira, 13 de novembro de 2023


talvez não fosse para ser dito assim,
em conversas breves de longas frases, e nem
o que se diz se ouve como deve ser nem o que é
devia ser dito. Talvez não fosse para pôr
uma adversativa à cabeça, como se o chapéu
não pudesse esconder o pensamento, ou
o que se pensa não coubesse na própria cabeça,
e saísse pelos olhos para que todos o vissem. Mas
o que é dito assim, e não se esconde, tem
a cor desses olhos, é húmido como esses lábios,
tem a brancura da pele que se toca quando
as conversas se acabam, e as longas frases
ficaram pequenas a esta distância em que
as lembro, sem o peso do tempo, sem
a distração das mãos.

Nuno Júdice 

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Retrato paradoxal




Era um retrato na parede. Era

uma parede num retrato. Pus

o retrato na parede. Pus a parede

no retrato. Para o retrato não

ficar sem parede, tirei o retrato

na parede. Para a parede não ficar

sem retrato, dei um retrato

à parede. E com o retrato na parede,

a parede ficou sem retrato.


Nuno Júdice 

sábado, 26 de agosto de 2023

Rotina


Ao pentear-se, com o sol

a entrar pela janela, perguntava

a si própria se era a mesma de ontem,

como se houvesse

alguma lógica na relação entre a luz

e o pensamento que nascia do seu gesto. Mas

o que a manhã trazia era um sentimento

que interrompia o passar

dos minutos, e a levava a descobrir

que a vida pode ser um parêntesis

entre uma hora e outra. E quando

se olhava ao espelho, o tempo

voltava a passar no mostrador do relógio,

com o ponteiro a correr no sentido inverso,

trazendo-a de volta a um hoje

em que amanhã é o mesmo

dia de ontem.


Nuno Júdice

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

 

Aaron Griffin


As mulheres loucas arrumam os quartos, fazem

as camas desfeitas, empilham camisas e calças,

abotoam os cintos do infinito, prendem os laços

da sombra. Com os seus olhos cegos, enfiam

agulhas no buraco da vida, cosem as feridas

do amor que não tiveram, cantam devagar

a canção da idade fria. Dispo essas mulheres

no meu poema; espalho as suas roupas pelas cadeiras

do quarto; abro a cama onde as deito; rasgo

os pontos que acabaram de coser. O seu sexo -

seco pelos ventos de uma inquietação nocturna

- humedece-me os dedos. Desfolho os dias de março

enquanto desfloro os seus lábios. Por vezes,

as mulheres loucas abrem a porta da varanda,

respiram o perfume das trepadeiras brancas

da primavera, desmaiam com o sol.


Nuno Júdice

sábado, 28 de maio de 2022

ennio montarello


Faz-me ouvir o teu canto, o eco

dos passos sob a negrura das abóbadas, e

o perfume de uma rosa de pele no fundo

dos tapumes. Envolve, ó deusa da tarde,

com a seda do teu corpo os corpos

que a noite deixou exaustos, e abraça

com um rumor de ausência os solitários

inquietos, como se tivessem perdido

o rumo do inverno nas linhas interrompidas

das suas mãos.


Nuno Júdice

sexta-feira, 6 de maio de 2022

 



Como gosto, meu amor, 

de chegar antes de ti para te ver chegar: 

com a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água 

fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. 


a mais certa certeza de que gosto de ti, como 

gostas de mim, até ao fundo do mundo que me deste.


Nuno Júdice

quarta-feira, 20 de abril de 2022

A técnica do quadrado



São quatro os ângulos deste soneto,

que levo de uma a outra margem:

sem rima nem metro, balança in-

deciso entre folhas e nenúfares.


Com os remos do verso faço

avançar o barco da estrofe; e

quando chego a meio da imagem,

todos os reflexos se apagam.


Podes então pegar num terceto

e usá-lo, como um leque, para

que a respiração volte ao seu ritmo.


E se não souberes o que fazer

do fim, volta ao princípio e ouve,

no silêncio, a música das rãs.


 Nuno Júdice 

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Pedro Schirato



A casa como se fosse a crisálida,

e os seus habitantes esperando - os seres

do casulo, aprendendo a vida.


Não bato à porta, para

não os perturbar, nem saber

as feições do seu rosto, o som

da sua voz, a articulação

de uma frase sem fim.


Mas o olhar que atravessa

as paredes, como o vidro transparente

da eternidade, adivinha os corpos

em volta da mesa, os brindes

que secaram nos seus copos,

os olhares cúmplices

no viço dos minutos.


E entro pela porta fechada,

juntando-me ao grupo dos que

acordam para a vida.


 Nuno Júdice 

sábado, 28 de agosto de 2021

Sonho

Miriam Briks


A forma que o sonho adquire fica presa

nas mãos, de onde se solta à medida que a noite

avança. E se os olhos estão fechados, é porque

isso é necessário para que se possa ver

a única paisagem que importa: um comboio

de palavras que avança nas linhas da vida,

atirando para o céu do futuro um fumo

de imagens. O poema captá-las-á; e

poderás acordar, então, vendo que o sono

serviu para alguma coisa.


Nuno Júdice 

Nydia Lozano 


 Um poema, dizes, em que

o amor se exprima, tudo

resumindo em palavras.

Mas o que fica

nas palavras

daquilo que se viveu?

Um pó de sílabas,

o ritmo pobre da

gramática, rimas sem nexo…


Nuno Júdice


sábado, 14 de agosto de 2021

Um poema

 

 Vladimir Volegov


Um poema, dizes, em que

o amor se exprima, tudo

resumindo em palavras.

Mas o que fica

nas palavras

daquilo que se viveu?

Um pó de sílabas,

o ritmo pobre da

gramática, rimas sem nexo…


Nuno Júdice

domingo, 8 de agosto de 2021

Braile

 

jules joseph lefebvre


Leio o amor no livro

da tua pele;

demoro-me em cada

sílaba, no sulco macio

das vogais, num breve obstáculo

de consoantes, em que os meus dedos

penetram, até chegarem

ao fundo dos sentidos. Desfolho

as páginas que o teu desejo me abre,

ouvindo o murmúrio de um roçar

de palavras que se

juntam, como corpos, no abraço

de cada frase. E chego ao fim

para voltar ao princípio, decorando

o que já sei, e é sempre novo

quando o leio na tua pele.


Nuno Júdice

terça-feira, 20 de julho de 2021

Greve

 

Nydia Lozano


Calma, diz o poema ao poeta

que quer fazer uma greve:

as rimas circulam na gaveta,

e o verso é de quem o escreve.


Pode esgotar-se a inspiração,

ou subir na bolsa a métrica,

que as metáforas têm mão

nesta fórmula geométrica.


É redonda a linguagem

no quadrado que elas inventam;

e nasce uma nova imagem

de cada vez que as acorrentam.


Nuno Júdice

quarta-feira, 29 de novembro de 2017


Tony_Chow

Posso beber o amor pelo copo dos teus
lábios?» O disco chega ao fim; um ruído de rua
entra pela janela; não sei se ainda é dia,
ou se a noite começa. Mas o mundo
não interfere no equilíbrio frágil
das nossas vidas. Este copo não se esvazia; e
os teus olhos levam-me à fronteira
do sonho, para que a passe, e entre
contigo num país de nuvem. O meu passaporte
são as tuas mãos; o mapa que nos guia,
a respiração incerta do desejo. «Por
isso me perco», dizes. «Por isso te
encontro», respondo. E a noite que
nos separa é o dia que nos reúne.


Nuno Júdice

sábado, 1 de outubro de 2016

Leitura fria



Um diadema de sílabas
sobre o rosto, e a nua
enunciação das pálpebras. Abro
a página; e um jorro de estames
cobre as sílabas. Mas a dor consome
os dedos que percorrem
o livro. Uma voz
emerge de cada parágrafo,
soletrando o tempo. Assim,
é como se o silêncio se
substituísse às palavras, e
o corpo pousasse num chão
de versos. Por fim,
o vento do ser abranda
num estuário de emoções. E os olhos
avançam até ao fim do poema.

 Nuno Júdice

terça-feira, 28 de junho de 2016

Lynn Sanguedolce 

Nas cartas que se escrevem e não
chegam ao destino, o que ficou dito
tem o eco do que nunca será
esquecido: a voz que se ouviu numa
paragem do tempo, e atravessa
o centro da memória numa inquieta
procissão de sombras.
Pudessem os arcos do horizonte
abrir-se como um lamento de pombas;
ou este sonho fechar-se com o correr
da cortina de um último acto: nunca
os dedos amados irão soletrar
a frase do crepúsculo, soltando
da sua música um enxame de sílabas.
E o azul enche a garrafa do céu
para que as aves se embriaguem
no púlpito do infinito, arrastando
no seu voo uma cinza de imagens.

 Nuno Júdice

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Rimas soltas


Não sei dizer o que é o amor
nos passados onde o amor se cansa,
sentido e vivido, colhido em ramo ou em flor,
o que ele canta sobra ainda nesta dança.

Podia estendê-lo na frase sem sujeito,
fazer dele um advérbio, cabelo sem trança,
vê-lo descer como rio sobre o peito,
inundar o corpo na manhã que avança.

Deixá-lo ficar nos olhos sem destino,
tê-lo amarrado ao desejo que esconde.
E persegui-lo quando parece mais longe,

trazê-lo aqui mais perto, vê-lo pequenino.
O amor voa sem ter de subir ao céu,
encobre o rosto quando fica sem véu.

Nuno Júdice 

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Olaria

 
Inna Tsukakhina

No lençol do campo, o corpo procura
a terra macia que renasce da memória
insone. Não ouve os pássaros, nem
se oferece a um sol proscrito do seu
rosto. Morde a maçã do instante
no ofício do desejo, matando a sede
que lhe secou os lábios. E o dia sobe
nos seus dedos, como o barro, para
que deles surja a figura do amor.

 Nuno Júdice