Mostrando postagens com marcador Fabrício Carpinejar. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Fabrício Carpinejar. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 3 de abril de 2024


 RELENDO NIETZSCHE

(um desafio para a coragem)


Voltei a estudar filosofia.


“As ovelhas são burras”. Lembro quando me saltou essa frase em Friedrich Nietzsche (1844-1900). Ele orientava a não seguir o rebanho da covardia.

Para Nietzsche, há dois tipos de temperamento: o forte e intrépido representado pela ave de rapina e o segundo volúvel, simbolizado pela ovelha, com o perfil ressentido, escravo do medo. A ovelha anda em bando, não pensa, não se posiciona, volta para seu cativeiro sempre que dá um passo a mais fora dos limites conhecidos. Engana a caça com a “fábrica de mentiras”, nunca com o enfrentamento, jamais com o olho no olho. Escapa das aves de rapina se agrupando entre seus semelhantes, esperando que uma outra ovelha seja sacrificada em seu lugar. A ovelha somente se salva pela delação, acha que a fraqueza é mérito.

As aves de rapinas são solitárias. Irão se impor pela firmeza de suas ideias, não temem discordar da maioria ou se expor ao céu da visibilidade. Elas enfrentam as alturas, correm mais riscos, onde o ar é mais rarefeito, mas terão o privilégio das melhores paisagens.

Já a ovelha termina sua vida olhando apenas para o chão.


Fabrício Carpinejar

segunda-feira, 20 de novembro de 2023


Depois de amada, estendeu seu corpo ainda tremendo. Quase chorava de tanto que expulsou. Quase chorava de tanto que se recebeu de volta. Não me aproximei. Não podia interferir em sua solidão. Dizer o quê? Seus músculos ainda estalavam, o sangue ainda aquecia  os ouvidos. Dizer o quê?  Qualquer palavra é intrusa. A boca eram seus cabelos boiando. Dizer o quê?  O homem deveria distanciar depois que a mulher goza. Não tomar para si a glória ou o prazer. Não reivindicar autoria. Não sujar a parede com a sua letra. Não cobrar o que não nasceu dele. Deveria ter pudor de pálpebras que se fecham para imaginar.

É ela e seu corpo redimidos.

É ela e seu corpo abraçados.

É ela e seu corpo alinhados como joelhos.

É ela devolvida a si, devolvida às alegrias proibidas, as alegrias quando se tocava em segredo.

É ela e os medos superados, a culpa liquidada, os seios observando as janelas.

A rua da cintura, e a chuva, para não andar, para ficar debaixo das marquises esperando passar.

O homem deveria sentar numa cadeira ao longe, como se fosse um milagre e lhe faltasse fé para  reconstituir os detalhes.

O homem não deveria estragar com a sua presença aquele momento, mas silenciar, esquecer os  comentários, jejuar os dentes, reprimir o ímpeto.

Nenhuma brincadeira, nenhuma certeza, nenhuma crença.

É difícil desaparecer, sei que é difícil.

Homem, não lhe resta outra opção!

Desapareça estando ali. Nenhum movimento brusco, não procurar água, a sede, o casaco.

Desapareça aos poucos para que ela, enfim, se veja dançando para Deus.


 Fabrício Carpinejar – Do livro –“ O amor esquece de começar”

domingo, 6 de novembro de 2022

 


Depois de amada, estendeu seu corpo ainda tremendo. Quase chorava de tanto que expulsou. Quase chorava de tanto que se recebeu de volta. Não me aproximei. Não podia interferir em sua solidão. Dizer o quê? Seus músculos ainda estalavam, o sangue ainda aquecia  os ouvidos. Dizer o quê?  Qualquer palavra é intrusa. A boca eram seus cabelos boiando. Dizer o quê?  O homem deveria distanciar depois que a mulher goza. Não tomar para si a glória ou o prazer. Não reivindicar autoria. Não sujar a parede com a sua letra. Não cobrar o que não nasceu dele. Deveria ter pudor de pálpebras que se fecham para imaginar.

É ela e seu corpo redimidos.

É ela e seu corpo abraçados.

É ela e seu corpo alinhados como joelhos.

É ela devolvida a si, devolvida às alegrias proibidas, as alegrias quando se tocava em segredo.

É ela e os medos superados, a culpa liquidada, os seios observando as janelas.

A rua da cintura, e a chuva, para não andar, para ficar debaixo das marquises esperando passar.

O homem deveria sentar numa cadeira ao longe, como se fosse um milagre e lhe faltasse fé para  reconstituir os detalhes.

O homem não deveria estragar com a sua presença aquele momento, mas silenciar, esquecer os  comentários, jejuar os dentes, reprimir o ímpeto.

Nenhuma brincadeira, nenhuma certeza, nenhuma crença.

É difícil desaparecer, sei que é difícil.

Homem, não lhe resta outra opção!

Desapareça estando ali. Nenhum movimento brusco, não procurar água, a sede, o casaco.

Desapareça aos poucos para que ela, enfim, se veja dançando para Deus.


Fabrício Carpinejar – Do livro –“ O amor esquece de começar”

sábado, 1 de outubro de 2016

Confiança



Sexo não é competição, não é se mostrar superior ao outro, mas fazer com que o outro se perceba inesquecível.

Sexo não é gincana, não é quantidade, não é quantas pode aguentar, não é desafiar para cansar, é provocar para atender às expectativas.

Sexo é merecimento, é compreender o prazer da convivência antes mesmo do prazer da transa, é entender o prazer de ouvir as histórias, as safadezas, antes mesmo do orgasmo.

Sexo não é para dizer que o outro não nos satisfaz, é procurar entender como o outro pode nos satisfazer.

Sexo não é cobrança, não é prepotência, não é um duelo.

Sexo é confiança mais do que vaidade.


Fabrício Carpinejar

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Coitada da Eva

 
Eve - Hans Baldung


Não há maior solidão do que a de Eva.
Ela não tinha mãe. E não podemos considerar a costela de Adão propriamente uma madrasta.
Ela gerou uma penca de filhos sem ter onde deixá-los no final de semana para desfrutar de um cineminha e de um jantar romântico.
Não dividiu com ninguém a alegria do primeiro beijo, da menstruação chegando, dos seios crescendo, do exame positivo da maternidade.
Precisou aguentar um marido que não morria – viveu 930 anos – sem a possibilidade de desabafar os problemas do relacionamento, como quando Adão puxava seu cabelo ou se metia com a bebida ou desejava gastar todo o salário em briga de galos.
Não contou com conselho materno para esfriar a rivalidade entre Caim e Abel.
Não recebeu dica de nome para suas crianças. Sete prova que não restava mais criatividade, já recorria à numeração.
Não ganhou explicação de método anticonceptivo antes de sua primeira experiência sexual.
Jamais acertou a receita do bolo de fubá simplesmente porque não conheceu nenhuma vó.
Ficou sozinha para enfrentar a lábia da serpente.
Nunca pôde usar a expressão “nem por cima do cadáver de minha mãe”.
Não se sentia ofendida quando era xingada na selva de “filha da p...”.
Não teve sequer uma mãe para mentir e comer escondido o fruto proibido.
Não pôde seguir um exemplo ou ser a ovelha negra da família. Não cresceu na adversidade: não suportou pressão para se casar, prestar vestibular e seguir carreira.
Não havia graça nenhuma em fazer terapia sem uma mãe para colocar a culpa.
Terminou pagando mico ao usar pele de animal para passear no Éden, pois não herdou roupa alguma.
Tombou com salto alto nas trilhas, desfalcada de um tutorial de mãe.
Uma vez por mês, explodia em TPM, chorava, arcava com cólicas, morria de vontade de chocolate, sem saber o que acontecia com seus hormônios.
Não entendia a diferença entre cócegas e orgasmo.
Não desfrutava da opção de se separar do marido e voltar para a casa da mãe.
Eva foi, sem dúvida, a mulher que mais sofreu no mundo.

Fabrício Carpinejar
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6, 01/02/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°18060

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Devoto

Desenho a carvão Lovers Kiss, de Carla Carson

  O que faz a diferença no sexo é a devoção. É uma palavra religiosa, mas que combina perfeitamente com a cama. Estar inteiro. Interessado em dar prazer mais do que ter prazer. Voltado unicamente para aquela nudez.

A devoção excita. Devoto dos seios. Devoto das coxas. Devoto da cintura. Amar o corpo dela com toda avidez. Com os dentes mais do que a língua, com a barba mais do que a boca.

Pois só nos entregamos quando nos sentimos únicos. O devoto tem determinação, o que não pode ser confundido com pressa. Nada pode distraí-lo. Está disposto a tudo. Alheio ao que será dito a seu respeito, desinteressado da fama, disposto a nunca mais sair daquela fantasia.

A obscenidade é fome de amor.

Fabrício Carpinejar

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Sexo, mais sexo


A mão que pretende se defender e recua. A perna que busca revidar e prende ainda mais.

A vontade de agredir transformada em agrado. Nada mais sensual do que a agressividade contida. No sexo, a violência dança. A violência transborda permanecendo presa ao ritmo.

Sexo é confissão. É quando você pode dizer a verdade sem precisar explicar. Seu pensamento está no corpo. Seu desejo está exposto. Nenhuma palavra pode substituir a experiência que acontece naquele momento. Até a raiva é inteligente. O olfato muda, o tato muda, o paladar avança sem nenhum receio. Os olhos são toda a pele.

Não há vergonha. Tudo pode ser inventado porque nada é escondido.


Fabrício Carpinejar

domingo, 14 de setembro de 2014

Insensatez



Você me permite ir, você me permite escolher, você é democrática, sensata, elegante, madura, equilibrada, não procura forçar sua opinião, impor sua vontade, você oferece espaço, aguarda, pede que eu reconheça seu valor, sai de perto para não pressionar, chora e sofre distante, recrimina o ciúme e me exclui.

Desculpa. Mas amor não é justiça, amor não é julgamento, amor não é consciência, amor não é controle.

Amor é um filho da p. da insistência, é manter-se perto, próximo, junto, grudado, até que o entendimento da vida estale.

Não é se afastar, não é facilitar o trabalho dos outros se afastando. Não é exigir que venha agora ou nada, que venha inteiro ou nada. Diante do extremismo, sempre ficaremos com nada.

Partilho da crença de que o provisório é tudo.

Pode vir pela metade, fragmentada, dividida, um terço de si, uma parcela, que eu aceito e completo. Eu lhe quero do jeito que der, do jeito que for.

Pode vir confusa, em crise, indecisa, ambígua, que logo unifico seus receios.

Não confio na saudade, confio na presença. A saudade só adoça o arrependimento.

Eu não saúdo a saudade. Eu dou a porta de saída para a saudade.

É com a convivência que vou mostrar que sou o melhor para seu temperamento, que sou também o pior, que sou o que espera, e sou também o que não espera, que sou sua alegria e também sua desordenada raiva, que sou seu encantamento e também sua decepção, que sou o centro de seus dias e também as margens de suas noites.

Não serei educado para deixá-la em paz. Nunca. Amor quando dói é mal-educado. Falarei excessivamente, farei sinais e gestos passionais, tremerei mais do que copo de morto - terá o que se lembrar de mim.

Não finja que deseja meu bem. Não há bem com a distância. Deseje meu mal, mas deseje que eu seja seu.

Aquele que é o nosso maior erro costuma ser o grande amor de nossa vida.


Fabrício Carpinejar
Da série "Ficções do Amor"

sábado, 6 de setembro de 2014

A parte branca do biquini

Belarmino Miranda


O verão é perturbador.

A nudez da mulher muda com a praia e a piscina.

Ela passa a ter uma calcinha na pele. Quando transar, terei duas calcinhas para tirar.

Se uma já era boa, duas são insuportavelmente excitantes. É a tara masculina saciada em dobro.

Você vai baixar a primeira de renda com as mãos e outra com os olhos.

Preste atenção, aproveite a temporada. Só nos meses quentes para contar com strip-tease duplo de sua esposa.

Irresistível a marca de biquíni que ela deixa para mim. Sua pele branca somente reservada para minha adoração.

É o mapa do pecado, é a geografia do desejo, é o país da lascívia.

Fortalecendo a morenidade de minha mulher, o sol me ajuda, é meu cúmplice de alcova. O sal e o mar colaboram colorindo o corpo e me separando a tez imaculada.

Abençoo o contraste. A parte branca do biquíni significa um presente marítimo, uma concha inteiriça e de som infinito que erguemos do rebuliço das águas.

Eu entendo e respeito quando ela fica horas torrando na cadeira. De bruços, de frente, de lado, seguindo os raios com a lealdade dos reflexos dos óculos escuros. Não reclamo do seu isolamento, não digo que é perda de tempo, não vejo como imolação, não recrimino com piadas sexistas, não zombo da dedicação.

Pelo contrário, agradeço sua generosidade comigo. Levo cerveja gelada, caipirinha e protetor reserva para prolongar seu tempo de exposição. Busco toda coisa que deseje. Ela tem direito a sonhos de grávida, a excentricidades de grávida. Não considero nenhuma regalia absurda perante o prazer que encontrarei de noite.

Eu me torno seu cooler, seu isopor, seu guia do deserto, seu pajem. Altero a direção dos ventos, sopro tempestades para longe, abro frestas nas nuvens com o poder do pensamento. Combato o que pode atrapalhar seu dia iluminado e claro.

Conheço o valor de minha recompensa, prevejo a extensão da dádiva.

Não é o bronzeado que me alucina, é onde ela não se bronzeou. É onde ela se guardou para mim.

A parte branca do biquíni vale qualquer esforço, qualquer sacrifício.

A parte branca do biquíni é uma cobiçada ilha após a natação dos braços.

Sem querer esnobar, eu entro onde nem a luz tem permissão.


Fabrício Carpinejar
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 15/12/2013 Edição N° 17645

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Só é fútil quem não ama

Daniel F. Gerhartz 


No amor, eu quero ser útil.
Que você aceite o que tenho para dar, senão dói o excesso em mim.
O excesso que não é dado me machuca.
O excesso que não é dado acaba em egoísmo.
O abraço que fica comigo me emburrece. O beijo que fica comigo me angustia. A palavra que fica comigo me tranca. O sonho que fica comigo é solidão.
Aceitar o que ofereço já é me cuidar. Aceitar o que ofereço já é me amar.
Que você me deixe ser carinhoso, que me deixe ser romântico, que me deixe ser educado, que me deixe ser tarado, que me deixe ser preocupado, que me deixe falar bobagem para atrair sua infância.
Que me deixe comprar presente, oferecer carona, preparar café na cama, perguntar mil vezes se está tudo bem.
Que não diga que não precisa. Não precisar é negar, não precisar é não dar importância.
Quero que você queira estar comigo quando estiver enjoada, com febre, dor de cabeça, gripada, que eu seja sua emergência, sua urgência, seu colo e suspiro.
Quero que você queira conversar comigo porque sou seu melhor conselheiro, que seja seu contato mais usado no celular, a primeira pessoa a quem você deseja contar uma novidade.
Quero que você queira assistir filme comigo para segurar minhas mãos e pedir meu abraço, que eu seja seu casaquinho do cinema.
Quero que você queira beber comigo para brindar: vinho para segredos, cerveja para fofocas, uísque para assuntos sérios, tequila para loucura.
Quero que você queira transar comigo para que possa escrever meu suor em sua pele.
Quero que você queira minha barba, meu perfume, meu toque, minhas pernas, meu peso.
Quero que você queira passear comigo no fim de tarde, caminhar pela Encol tomando chimarrão enquanto o sol faz chapinha nas nuvens.
Quero que você queira ouvir meus textos, refletir comigo, contestar o que não acredita.
Quero que você queira que não viaje a trabalho, parando na frente da porta com suas chantagens eróticas.
Quero que você queira subir a serra de repente, para escolhermos as músicas de nossa preferência.
Quero que você queira voltar correndo para casa e grite meu nome como sua campainha.
Quero que você queira não largar a cama durante o frio para levantarmos um acampamento farroupilha no quarto.
Quero que você queira mostrar seus trabalhos, suas ideias, ouvir com atenção meus comentários, agradecer minha atenção.
Quero que você queira a cumplicidade como nunca houve na vida de nenhum dos dois, quero que você queira a exclusividade, que nos defenda para os amigos, que não nos fragilize perante os outros.
Quero que você me queira sempre, acima de tudo.
Porque só posso ser útil para quem me quer.

Fabrício Carpinejar
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 13/7/2014 Edição N° 17858

sábado, 2 de agosto de 2014

Meu amor é redundante




Eu te amo não somente quando te amo. Eu te amo quando tenho esperança. Eu te amo quando estou desesperado. Eu te amo com toda ansiedade. Eu te amo com toda calma. Eu te amo quando louco. Eu te amo quando lúcido. Eu te amo quando insisto. Eu te amo quando desisto. Eu te amo na amizade. Eu te amo na desavença. Eu te amo quando tenho medo. Eu te amo quando crio coragem. Eu te amo quando distraído. Eu te amo quando excitado. Eu te amo quando doce. Eu te amo absolutamente amargo. Eu te amo quando penso. Eu te amo quando esqueço. Eu te amo quando jovem. Eu te amo envelhecendo. Eu te amo paranoico. Eu te amo centrado. Eu te amo ciumento. Eu te amo independente. Eu te amo quando viajo. Eu te amo quando volto. Eu te amo na saudade. Eu te amo no ressentimento. Eu te amo quando vingativo. Eu te amo quando desculpo. O amor não se basta no amor. Usa tudo o que sinto, tudo o que tenho, tudo o que perdi. Corrompe tudo o que sei, tudo o que vivi, tudo o que sonhei, tudo o que não fiz. O amor é um disfarce de todos os outros sentimentos. O amor é também desamor. Meu amor é redundante.


Fabrício Carpinejar

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Já aconteceu




Eles mal piscaram, mas já aconteceu a transa.

Ainda nem se conhecem, mas já aconteceu a transa.

Ainda nem se abraçaram, mas já aconteceu a transa.

Não beberam juntos, não dançaram juntos, não jantaram juntos, mas já aconteceu a transa.

Não houve nenhuma saudade, desconforto, receio de se perder e já aconteceu a transa.

Não houve nenhuma confissão, partilha de memória, declaração apaixonada, e já aconteceu a transa.

Ainda não mostraram o jeito de vestir, não ensaiaram a nudez, mas já aconteceu a transa.

Eles nem supõem se um é colorado ou gremista, se um é anarquista ou conservador, se é rico ou endividado, se dança rock ou pagode, se tem filhos ou não, se foram casados ou guardados, se têm amigos em comum, mas já aconteceu a transa.

Nada pode apagar o fato consumado antes dos fatos.

O olhar é premonitório, existe uma confiança por detrás do gesto que garante que já aconteceu a transa.

Não há como impedir a união, ambos se escolheram muito rápido.

Denunciaram o enlace ao mexer os cabelos, ao sorrir encabulado, pondo as mãos no bolso.

Foi uma provocação que vingou, foi uma graça que levantou o humor, foi uma cumplicidade que declarou o início.

É assim mesmo que acontece: definimos com quem teremos o envolvimento antes do envolvimento. A atração manda no futuro.

Não significa que vão namorar, casar, serem felizes, não há estabilidade garantida pelo desejo. A curiosidade eclodiu e suspenderá os pré-requisitos, os impeditivos, os critérios preventivos.

É o instinto definindo a ação, avisando o inconsciente que a transa já aconteceu.

A transa é uma lembrança que antecede o ato.

É uma determinação de gosto que impregna a palavra. A transa está no passado, mesmo quando parece uma possibilidade remota.

Eles não se tocaram, mas já se cheiraram, já se estudaram rapidamente, já se aprovaram, já facilitaram os caminhos.

Ainda nem sabem o nome um do outro, as convicções, os medos e desejos, mas já aconteceu a transa.

Ainda não têm noção se preferem sushi ou churrasco, se são melancólicos ou ansiosos, arrebatados ou inseguros, mas já aconteceu a transa.

Ainda não se adicionaram no Facebook, mas já aconteceu a transa.

Ainda não salvaram os telefones na agenda, mas já aconteceu a transa.

Definiram pelo olhar que vão transar. Só não marcaram a data.


Fabrício Carpinejar
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 22/12/2013 Edição N° 17652

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

O que tira uma mulher do sério?

 Ricardo Sanz


– Receber um beijo um pouco mais longo e concluir que ela quer sexo e ir descendo a mão;

– Deixar as tampas abertas dos potes;

– Elogiar pelo motivo errado: gostar do vestido que ela usa há três anos ou confundir a camisola de seda com roupa de sair;

– Não desembaraçar as peças antes de pôr na máquina;

– Não expor o que deseja fazer no final de semana;

– Nunca controlar a data de validade dos produtos na geladeira (não somente no supermercado);

– Debochar de tudo, não ter limite para a piada;

– Dizer que ela está ficando parecida com a mãe;

– Responder ok no fim de uma briga.

– Acreditar que as mentiras pequenas não são mentiras;

– Alterar o horário de um encontro e deixá–la esperando;

– Começar conversas paralelas com amigos e não explicar o que está falando;

– Rir do nada e responder que é nada;

– Submetê–la a reverenciar seu churrasco todo domingo.

– Demorar de propósito a retornar um torpedo ou uma ligação e responsabilizar o excesso de trabalho;

– Não trocar as cuecas da gaveta;

– Pedir para ela cozinhar com a justificativa calhorda de que “ninguém faz aquela comida como você”;

– Concordar rápido por preguiça. Dizer o que ela quer ouvir, não dizer porque acredita;

– Achar que declarar eu te amo uma vez ao dia é suficiente;

– Avisar que ela está em TPM fora do período da TPM;

– Esconder meias sujas nos tênis;

– Fugir das respostas objetivas;

– Armar festa com amigos em casa logo depois de uma briga;

– Pedir ajuda para procurar o que perdeu;

– Justificar em vez de assumir a culpa;

– Trocar de canal enlouquecidamente no momento do comercial;

– Disfarçar a falta de vontade na avareza. Aceitar participar de um passeio e reclamar de qualquer coisa, do preço do estacionamento ao preço do cinema;

– Fazer massagem nas costas com uma única mão, com aquela disposição de doente terminal;

– Regredir a dicção na presença da sogra;

– Almoçar na casa da família e sestear enquanto ela tem que entreter os sogros;

– Dirigir trocando música da rádio e com o celular no ouvido e ainda xingar os outros motoristas por distração;

– Nunca pensar duas vezes antes de ter ciúme e cometer injustiças;

– Pegar a lixa preferida de unha dela como material de construção;

– Isolar–se com o videogame para esfriar a cabeça, e jamais regressar ao convívio;

– Passar o telefone com alguém que ela nem tem intimidade;

– Chegar atrasado ao arrependimento. O amor é pontual. E o perdão cansa de esperar.


Fabrício Carpinejar
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.6
Porto Alegre (RS), 24/11/2013 Edição N° 17624

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Pontualidade

Delawer Omar


Não me importo de esperar vinte minutos com a mão na maçaneta enquanto diz que já está pronta para trocar novamente de vestido.

Não me importo de esperar dez minutos no saguão do cinema cumprimentando conhecidos e tentando segurar o refrigerante e dois baldes de pipoca enquanto vai ao banheiro.

Não me importo de esperar chegar em casa para que me diga quem é o amigo que a abraçou efusivamente na festa.

Não me importo de esperar três horas na salinha do hospital para saber se a nossa criança nasceu.

Não me importo de esperar as longas conversas de sua mãe sobre o meu temperamento.

Não me importo de esperar seu corte de cabelo, que sempre envolve pintura, hidratação e escova.

Não me importo de esperar a aprovação de suas amigas.

Não me importo de esperar nossos filhos regressarem das baladas para me enfurnar em seu cheiro.

Não me importo de esperar que tranque as portas antes de tirar o salto.

Não me importo de esperar que volte das lojas com as sacolas dentro das outras sacolas para parecer que gastou menos.

Não me importo de esperar que faça as pazes com Deus.

Não me importo de esperar quando arruma o armário e doa metade das roupas.

Não me importo em esperar que encontre a roupa que já deu na semana passada.

Não me importo de esperar que o filme acabe para namorar.

Não me importo de esperar que devolva as cobertas que rouba para seu lado de noite.

Não me importo de esperar você consultar suas mensagens antes de sair.

Não me importo de esperar sua irritação em dias de chuva.

Não me importo de esperar você nunca me retornar ligações depois das reuniões.

Não me importo de esperar que se acorde no domingo, com receio de que fique nublada.

Não me importo de esperar que o ciúme desapareça e volte a me ver como se eu fosse somente seu.

Não me importo de esperar sua TPM.

Não me importo de esperar o melhor momento para viajar.

Não me importo de esperar o tempo que precisa para descobrir que me ama. Ou o tempo que precisa para descobrir que não me ama.

Não me importo de esperar que venha de repente nossa música no rádio.

Não me importo de esperar as revelações de fotografias de sua máquina antiga.

Não me importo de esperar o embrulho de um presente.

Não me importo de esperar suas discussões de fim de noite.

Não me importo de esperar seu beijo de café cortado.

Não me importo de esperar sua ressaca depois da dança.

O que desejo dizer é que não precisa se apressar.

Nunca chegará atrasada porque sempre estarei a esperando.



Fabrício Carpinejar
Crônica livro Espero Alguém.
(Bertrand Brasil, 336 páginas):

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Amor amor ou Vinícius de Moraes

Rob Hefferan 


Há uma ideia do amor exclusivo. Como se houvesse uma única chance na vida de amar. Ou é o amor eterno, ou era mentiroso. Ou acontece pela vida inteira, ou não funcionou.

E, quando acertamos um casamento, as opções anteriores são consideradas falsas – necessitamos apagar o passado. E, quando erramos um casamento, as opções anteriores são vistas como legítimas – desperdiçamos romances melhores.

Trata-se de uma visão limitada, de contar apenas com um endereço para o nosso coração.

Mas amor é cigano, amor é mambembe, amor é viageiro.

Mas amor é tentativa, amor é insistência, amor é rascunho, amor é esboço, amor é esgotar as possibilidades e se recriar diante delas.

Só porque você amou antes, não significa que não pode amar de novo. Ou, só porque você amou antes, não significa que o próximo amor é falso e está fingindo.

Só porque você se declarou a alguém, isso não compromete as próximas declarações.

Só porque você disse que era para sempre e terminou, não quer dizer que é um fingido.

Todos os amores podem ser verdadeiros. Todos podem ser influentes.

Haverá um maior, sim, um amor decisivo, um amor transformador, um amor real, honesto e justo: o Amor Amor.

O Amor Amor não é egoísta, não vai isolá-lo da convivência. Você se duplicará para os próximos. Passará a amar os amigos como nunca. Passará a amar a família como nunca. É tanto amor, que sobrará para muitos.

O que deve prevalecer no temperamento é não desistir, não se entregar para o ressentimento, não defender os sentimentos parados condenando os outros que permanecem em movimento.

Eu acredito que quem casa ou namora várias vezes não é carente. Quem casa e namora várias vezes não é desesperado. Está se moldando à alegria, a superar as diferenças, a se separar, a recomeçar, a sangrar sozinho, a entender as dores e as imperfeições. Apresenta mais chance de ser feliz. Pois a felicidade é maleável, é macia, é elástica. A felicidade é feita para quem tem coragem de sofrer.

Desesperado e carente é aquele que não tenta e vive reclamando, praguejando, amaldiçoando os demais. Desesperado e carente é aquele que se esconde tão bem, que não se encontra e não se dá de verdade.

Desesperado e carente é aquele que não namora ou não casa para não ter que trabalhar emocionalmente e não se decepcionar. Alimenta-se de sombras, de sobras, de rancores.

Amor não é uma vez, são várias vezes até encontrar a pessoa predileta. A pessoa necessária. A pessoa fundamental. A pessoa que supera sua idealização, que lhe devolve a vontade de atravessar suas idades e tempos.

Daí, você descansa por estar andando, como diz minha mãe.

Amor é descansar em estar andando. E andar de mãos dadas jamais cansa.

Fabricio Carpínejar
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 08/10/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17577

sábado, 11 de janeiro de 2014

Nossa vida

Pat Erickson


Nada substitui a nossa vida. Por mais pequena que seja, ainda é a nossa vida.

Escrevemos "nossa vida" e já sentimos orgulho. Tente.

A falta de confiança nos leva à inveja.

As enquetes e testes das revistas femininas sempre pretendem dizer que a nossa trajetória está errada, da necessidade de modificar logo o relacionamento antes que seja tarde, esquentar a intimidade, aquecer os jogos do casal, viajar e exigir caprichos e cuidados de nosso parceiro.

Ninguém nos dá motivos para permanecer do jeito que somos, percebeu?

Há um interminável apelo a mudar o cabelo, mudar de roupa, mudar de marido, mudar de esposa, mudar de casa, mudar de hábitos, mudar de personalidade.

Se a relação não dá certo, é que faltou se transformar. A rotina invariavelmente é a culpada. O sexo decaiu porque você não aprendeu dança do ventre. Seu par se interessou por colega de profissão porque você não ampliou o repertório de posições sexuais. Não manteve o casamento porque não trocou o cardápio à base do feijão, arroz e massa e não investiu nas iguarias afrodisíacas da Tailândia.

É sempre alguma coisa que não foi feita, criando uma culpa invejosa, a ponto da esposa ou do marido concluir: “Todo mundo faz, menos eu”.

Somos condenados a procurar “o tempero” do relacionamento enquanto deixamos a comida queimar. Leia-se tempero tudo o que não se realiza. Nosso modo de puxar conversa é equivocado. Nosso modo de brigar não é o ideal. Nosso modo de lidar com os filhos complica a independência amorosa.

Se estamos felizes, estamos desinformados. Há uma exigência para se atualizar com dicas e truques, sob a ameaça de que a concorrência (solteiros e solteiras) está preparada.

Não há saída. A paranoia se infiltra na paz ou na guerra. Alimentamos uma permanente insatisfação, uma rejeição premeditada. E cobramos de nossa companhia uma perfeição impossível.

A impressão é que deveríamos estar em outro lugar, em outra biografia, que alguém roubou a nossa história e desfalcou nossos prazeres.

O problema que identificamos é simples: não damos valor para aquilo que somos, para as próprias experiências do casamento. Não cuidamos do que temos.

Desejamos um armário novo, não apenas uma roupa. Não queremos menos. É tudo ou nada.

Não enxergamos as delicadas novidades dentro dos hábitos. Subestimamos as variações da correnteza diária. Ganhar uma nova peça é poder arrumar as antigas, reencontrar combinações e reavivar acessórios.

A ambição enfraquece os significativos e discretos avanços.

Cansei da futilização do amor. Amor é essencial, é tão importante quanto o orçamento doméstico ou pagar as contas. Amor é economia. É cuidar com elogio para evitar a falência. É zelar pelo patrimônio das palavras para ter o que lembrar e falar.

A mulher fica a responsável por compreender e salvar a relação. É uma infantilização do homem. Em vez de chamar para a cumplicidade, a mulher aproveita e fortalece o preconceito, antecipando que ele não se dispõe a debater os rumos da casa, que não gosta do assunto, que nem vale a pena, que terminará por debochar e chamar de ridículo. Será que não é teimosia? Ou preguiça para rebater as discordâncias? Será que não é apenas a vontade de decidir sozinha?

Talvez não seja o homem que boicota a intimidade, mas a mulher que não tolera o retrabalho de uma segunda opinião.

Um exemplo é quando o marido decide ajudar nas tarefas domésticas, após longa insistência da esposa. Ele vai limpar o fogão. Fica uma hora passando esponja, areando, procurando brilho metálico. Quando termina, a esposa não perde a chance de mostrar que ele é incompetente para aquilo:

- Você está confundindo o fogão com carro? Não sabe limpar.

Finalmente, quando seu parceiro atende seu chamado, em vez de animá-lo a prosseguir em novas oportunidades, trata de castigá-lo como um filho desobediente. Uma hipótese é que a mulher tem dificuldade de repartir as atividades porque as coisas não serão feitas como ela costuma arrumar. É óbvio que não. Então, ela ordena:

- Deixa que eu faço.

“Deixa que eu faço” é o equivalente a concluir “Você não serve para nada”. E ele não se candidatará a atividade novamente para evitar humilhações. O homem terá que cozinhar mal para cozinhar bem, terá que lavar superficialmente as roupas para entender a arte da espuma, terá que varrer pelo centro até localizar as sujeiras dos cantos.

O que não acontece é suportar o período de adaptação do voluntário. Ansiamos que acerte de primeira, e sem vacilação. A esposa pretende que ele colabore, porém não pretende perder tempo ensinando.

Esqueça o conto de fadas por um momento. Encontrar alguém é fazer por merecer, não é deixar que o relacionamento se faça sozinho.

Localizar o par ideal é fácil, difícil é suportá-lo.

Vem a convivência e estraga a telepatia do início: ele tem mania de palitar os dentes, ela usa calcinha cor de pele; ele ama a solidão mais que a própria vida, ela deseja filhos; ele toma cerveja, ela é adepta do suco natural; ele joga futebol, ela consulta a cartomante; ele sonha em montar negócio próprio, ela idealiza meditar em centro budista; ele espera assistir corridas em Interlagos, ela torce para um dia ver o grupo de balé Bolshoi.

Por um tempo, durante a paixão, acreditamos ter encontrado o perfil sonhado. Mas paixão é férias, amor é trabalho.

Amar é se esforçar o dobro para permanecer junto: como conciliar as vontades? Como organizar as doutrinas? Como parar de adivinhar o desenlace futuro?

Para fazer um matambre recheado, precisamos de linha de costura; para assar o peixe na brasa, dependemos de papel alumínio; para a longa vida do motor, só trocando o óleo a cada cinco mil quilômetros.

É mais feliz quem compreende que estar triste é parte natural da vida. E quem compreende essa simplicidade, não precisa mais vencer sempre.

A vida exige ciência. A ciência de conviver nada tem a ver com truques visuais: meia-calça de seda, cinta-liga, cueca boxer branca. Os efeitos especiais ajudam a formar um clima agradável, entretanto, não garantem o desempenho emocional.

A ciência de conviver depende da coragem, isso sim. Coragem de defender o amor. A coragem é o verdadeiro ingrediente secreto, a pimenta dedo-de-moça do acarajé, o leite condensado do brigadeiro.

Salgado, doce, coragem.

É quando não importa mais quem colocou a bola em campo: todos podem jogar.

É quando não tem diferença nenhuma definir quem errou, mas quem se prontifica a consertar.

É quando o senso de justiça cede lugar ao apelo da união.

É quando o ímpeto de estar bem juntos supera a ansiedade de dominar e ter razão.

É quando a insegurança larga a intolerância e entende o improviso e a limitação de cada um.

É quando a coragem aparece. Porque saberemos que dependeremos para sempre daquela pessoa para assumir a própria individualidade. Amar, portanto, não é mudar, é se aceitar.

Amamos para que o outro nos ajude a não apagar aquilo que somos. É certo que esqueceremos um dia, entraremos em desvalia, desconheceremos nosso tamanho, mas o outro nos lembrará do que já foi feito e do que necessita ser feito.

Amamos para que a nossa vida nos seja devolvida de repente. O marido ou a esposa é a chave reserva de nossa memória. Nosso backup.

Melhor do que confiança no relacionamento é coragem.

Coragem para aceitar alguém de volta. Coragem para perdoar o erro e a fraqueza. Coragem para assumir o que o coração anseia, apesar da aparência e dos outros.

Coragem é reconhecer o medo e seguir adiante mesmo assim.


Fabrício Carpinejar

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Saudade a dois

© beckas
 
 A saudade tem prazo de validade. Não pode permanecer muito tempo guardada. Não pode permanecer muito tempo não sendo correspondida. Depois de aberta e fora do convívio, assim como o leite, a saudade azeda. E não há memória refrigerada para conservá-la. Quando passa da hora, aquela falta ansiosa e comovente é capaz de se tornar ironia e sarcasmo. O suspiro se transforma em ofensa – nos enxergaremos tolos e burros por confiar cegamente em alguém e esperar à toa. Reclamaremos nossa idiotice por termos feito uma vigília em vão, por termos esquecido de viver. Já não queremos que o outro volte, já desejamos que ele nunca mais apareça em nossa frente. Violentaremos as lembranças, fecharemos a reza. A ternura de antes será trocada pela raiva de não ser atendido. Mudaremos a personalidade de nossa conversa, de doce para ácida. Pois o segredo (a saudade é um segredo!) que nos alimentou durante meses não fora respeitado. Infelizmente, a saudade apodrece. Quando deixamos de pedir a presença para cobrar a ausência. É sutil o movimento. Toda a atenção dedicada ao longo de um período começa a ser vista como desperdício. Não aconteceu retorno das juras, nem o estorno das expectativas. Você mandou centenas de mensagens, renunciou saídas com amigos e bares, teve uma vida discreta e fiel, só para honrar uma despedida, e percebeu que, no fim, sempre esteve sozinho na saudade. Saudade é como o amor. Perece quando não é a dois. Aliás, quando a saudade não é a dois, deixa de ser saudade para se descobrir solidão. A saudade é o que guardamos do amor para o futuro. É o que deixamos para amar no futuro. Nada dói tanto quanto um amor que não vingou após os cuidados do plantio. Nada dói tanto quanto a saudade que envelhece, uma saudade que definhou pela indiferença, que não foi valorizada pela nossa companhia, que não desembocou em festa. Nada dói tanto quanto promessas feitas gerando ressentimento. A saudade não é eterna. Acaba quando percebemos que o amor era da boca para fora, que a urgência era interesse, que a necessidade era falsa. A saudade é uma esperança de amor. Precisa ser consumida rapidamente, não mais que três meses. Senão, nos consome e nos estraga.


Fabrício Carpinejar
Publicado no jornal Zero Hora Coluna semanal, p. 2, 03/12/2013 Porto Alegre (RS), Edição N° 17633

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Querido Caio Fernando Abreu



Me explica, bruxo? Onde estiver me explica.

Como alguém pode vir morar contigo, dizer que te ama na noite anterior, e sumir de repente sem nenhum arrependimento?

Amor muda de ideia? Amor é leviano assim? Amor é brincar de destruir?

O que digo agora também já está morrendo?

Morrer produz barulho, sei, mas e o barulho de viver? Não dá para ouvir daí?

Como dos homens dos sonhos você se torna um homem sem sonho?

Como uma manhã sem falar doía nela e hoje o amanhã sem falar nem provoca ansiedade?

Como alguém não guarda em si o mínimo de autocrítica para refletir as últimas semanas?

Eu dividiria até meu egoísmo, Caio, com ela. Não ficaria com ele sem partilhar. Como não se fracionar? No momento em que a gente se guarda a gente se perde, não?

Como alguém que ama decide alguma coisa? Logo no amor, Caio? Amor não é adiar? Amor não é humildade?

O erro é arrogante, Caio? Como existe soberba na maldade, hein?

Foi vingança de relações passadas? Eu era um intervalo de um ódio?

Será que não devia ser sincero, ser fiel, não podia confessar minhas fraquezas, falar o que temia? Honestidade não combina com amor?

Eu que sou garrancho, arredondei a letra no caderno de caligrafia, escrevi entre as linhas de baixo e de cima, bem certinho, você ficaria orgulhoso conhecendo minha pressa, mas só você, Caio, só você sabe o enorme sacrifício que é escrever entre as linhas.

Será que a felicidade machuca? Será que a felicidade nunca é suficiente? Será que os casais se separam porque acreditam que podem ser felizes sem ninguém? Ou acreditam que podem ser ainda mais felizes do que estão sendo?

Será que a solidão mente o que somos?

Será que é só conhecer uma intimidade que somos empurrados para fora? Será que a pessoa não se gosta nem um pouco para admitir testemunhas? Será que sabemos demais, enxergamos demais, e nosso corpo é obrigado a desaparecer? Amar é coisa de máfia?

Será que recebemos a culpa por problemas pessoais? Que é mais fácil encerrar a relação do que assumir os medos?

Será? O amor é um mal-entendido, é ilógico, Caio? Estou começando a crer nesta hipótese.

Como alguém pode se entregar loucamente e depois declara que nada tem mais importância?

Que piração é esta, Caio? Isso também acontece no mundo dos mortos? Ou os mortos são mais estáveis? Ou os mortos são mais confiáveis?

Como alguém faz declaração pública do amor e depois diz que desejava invisibilidade?

Como confiar no silêncio se não há esperança?

Eu fingi que era diferente? Não expressei como era desde sempre?

Como alguém cultiva os meus amigos e filhos, defende o nosso destino, numa hora e na hora seguinte se mostra surda a todo conselho, surda a toda dúvida, surda a toda incerteza?

Como alguém pode jogar a história fora? Por facilidade? Não conheço nada fácil, nem a amizade. Não pode ser.

Será que ninguém mais lê mais poemas hoje, Caio? Poemas não têm final. O amor deveria ser como um livro de poesia. Para se ler fora de ordem. Para se ler um pouco por dia. Desprovido de desfecho. Poema é sempre uma releitura.

Caio, não suporto que digam que mulher não gosta de homem que se entrega, que temos que omitir, que temos que jogar? É uma cilada machista, não lhe parece, para justificar a grosseria e a ausência de interesse?

O que será da intensidade longe da doação?

Onde foi parar a delicadeza dela, a ternura de antes? Foi uma miragem?

Onde as pessoas escondem o amor, Caio? Onde as pessoas enterram os ossos de suas alegrias?

Como alguém pode ser frio, indiferente, insensível a ponto de usar as frases mais duras e impessoais, sem se importar com o sofrimento que causa?

Como alguém manda mensagens como se estivesse realizando um favor? Que superioridade é esta? Cadê a instabilidade que pede abraço?

Como alguém não se esforça para retroceder os dias, as horas, zerar os meses? Por amor, a gente esquece que nasceu um dia, não é mesmo?

Como alguém não cancela sua atitude? Que obstinação é essa de machucar, de sangrar ruas e lugares prediletos?

Como alguém não sente saudade, não inventa saudade, não cria saudade? É um produto em falta por aqui, Caio, pode mandar material? Mande vento de palavra para recriar saudade, por favor?

Como não retornar pela verdade, se eu voltaria ainda que fosse uma mentira?

Como não caminhar recuando se avançar é lembrar?

Como o outro termina sem conversar, termina por terminar, termina de modo cruel o que não havia sinalizado?

Como alguém pisa uma vez , continua pisando, permanece agredindo quem merecia a compreensão?

Como alguém afirma que nada muda da noite para o dia, sem esquecer todas as noites que mudaram seus dias?

Como esse mesmo alguém é outro, já outro, tão outro que nem sei mais quem fui?

Como não desconfiar de todo o passado, como não imaginar que tudo foi uma mentira?

Como não se sentir usado pelos anjos, corrompido pela dor?

Como, Caio?

Alguém mentiu, Caio, para mim. Para si. E para todos.

Eu não desisto do que falei um dia com todo o coração. Mas sou eu, Caio, sou eu. Não posso exigir isso de ninguém.

Viver é incompreensível.

Um beijo. Cuide-se.


Fabrício Carpinejar

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Não deixe de sair com o casaco, meu filho, alguma mulher pode precisar



O homem só depende de um casaco para ser gentil.

Deve levar sempre um casaco consigo. Estar preparado para o arrebatamento.

Mesmo que seja um sol de rachar. Ou um mormaço amazônico.

Ele vai precisar oferecer para uma mulher em algum momento. O casaco é que diferencia o cavalheiro dos outros mortais.

O casaco é a arma romântica, a elegância do improviso. Evidencia seriedade de princípios, já que a educação desenvolve intimidade.

É só oferecer o casaco, que ele mostra ser capaz de ceder sua vida, cria empatia com o mundo feminino, assinala vigilância e cuidado.

O casaco é um dos itens obrigatórios para sair de casa. Por isso, a mãe sempre pedia para nunca esquecê-lo na infância.

Não é somente um casaco, mas um colete salva-vidas para as situações amorosas.

Nosso casaco não é para nós, mas para elas.

É óbvio que sua namorada estará desprotegida, toda mulher sai com pouca roupa de noite para se manter sensual.

Ela se sacrifica por você, você se sacrifica por ela. Dois sacrifícios formam uma escolha.

O casaco é um reforço secreto na saída do bar ou do restaurante, nossa alma de linho a desafiar nevoeiros e ventos.

Representa nosso farol, nosso castelo, nossa fortaleza viril.

Simples de tirar e se converter em novos significados. Multifuncional por essência, o equivalente a um canivete suíço. Numa única versão de pano, temos abridor de condicionamentos, tesoura de conversa, serra a críticas, lima para frieza, alicate de travas e chaves de fenda do coração.

Com um casaco, o homem saca um guarda-chuva para sua companhia atravessar a tempestade.

Com um casaco, o homem inventa uma almofada para ela deitar a cabeça ou sentar no chão.

Com um casaco, o homem espanta o frio incômodo dos ombros na madrugada.

Com um casaco, o homem salva sua parceira das sessões gélidas de cinema.

Com um casaco, o homem inaugura um cobertor nas pernas.

Além de eliminar a necessidade do telefonema do dia seguinte. Ele cria automaticamente a necessidade do segundo encontro, e ainda transferindo a responsabilidade para a mulher de entrar em contato.

Ao deixar o casaco, ela terá que devolvê-lo. Duvido que não ponha um bilhete de agradecimento no bolso.

O casaco é também a primeira correspondência de amor.


Fabrício Carpinejar
Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 2, 06/08/2013
Porto Alegre (RS), Edição N° 17514

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Personalidade forte

Francesco Hayez - The Kiss


Sou teimoso.

Juliana é teimosa.

Nosso amor é uma caprichada teimosia do destino.

É inacreditável o quanto somos felizes provocando o outro.

Não testando, jamais jogando, o que consideramos diversão para insensíveis.

Provocar é chamar para perto. É desejar a proximidade.

Nosso humor é uma homenagem da intimidade.

Ela ri para mim, eu rio para ela.

Não nos avacalhamos, não nos debochamos, não nos julgamos, nada que envolva recalques.

O sarcasmo é reservado para os desafetos. A ironia fica no emprego.

Usamos a graça, a leveza do gracejo, sempre acompanhado de abraços e beijos para não gerar dúvidas.

Eu brinco e abraço, ela brinca e me abraça. O corpo afasta mal-entendidos.

Nosso riso é ingênuo. Rir é um modo de aceitar os defeitos e as manias. Um modo de acolher e de não se sentir superior ou melhor que ninguém.

Rir é dizer que eu também sou assim, da parte falível dessa luz.

Rir é autocrítica. A gargalhada é uma confissão de humildade.

Portanto, confesso que errei, mas errei rindo.

Olhamos um vestido em loja de São Paulo.

Ela criticou abertamente as rendas lisérgicas que prestavam tributo aos Beatles. Apontou que nunca compraria.

Eu concordei na hora, fiz charme com as sobrancelhas, mas quando reencontrei o vestido em Porto Alegre, acredita que fiquei com vontade de comprar?

Levei o vestido que ela não gostou.

É o cúmulo da provocação. Nenhum homem em sã consciência deveria adotar esta atitude.

É um gesto arriscado. Um gesto impensável. Já erramos quando ela escolhe a peça, imagina quando rejeita?

Não entendo o que passou ou não passou pela minha cabeça. A questão é que pensei em dar uma segunda chance ao figurino.

E para mim mesmo, mesmo que representasse uma briga homérica de que “você não me escuta”, de que “você não me respeita”, de que “você não presta atenção em mim”.

Assumi os efeitos colaterais.

Ela pegou a maldita peça com generosidade e provou, rebolou, experimentou, encarou o espelho. Não faltou vontade, inclusive se maquiou para ajudar o enredo azul do vestido.

E, depois de uma longa sessão de poses, me devolveu:

— Não quero, amor. Agora tenho certeza.

Ela teve uma educação invejável. Não comprou briga, nem revendeu minha briga. Negou calmamente.

O que me faz concluir que não fui corajoso por adquirir algo que ela recusou. Ela é que foi corajosa por recusar duas vezes. Na teoria e na prática.

Êta mulher orgulhosa que é meu orgulho.


Fabrício Carpinejar
Crônica publicada em Vida Breve