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quinta-feira, 19 de maio de 2022

A montanha mágica

 

Poderíamos até dizer que, quanto mais se distanciam do presente, melhor corresponderão à sua qualidade essencial e mais adequadas serão ao narrador, este mago que evoca o pretérito. Acontece, porém, com a história o que hoje em dia também acontece com os homens, e entre eles, não em último lugar, com os narradores de histórias: ela é muito mais velha que seus anos; sua vetustez não pode ser medida por dias, nem o tempo que sobre ela pesa, por revoluções em torno do Sol. Numa palavra, não é propriamente ao tempo que a história deve o seu grau de antiguidade – e com esta observação feita de passagem queremos aludir ao caráter problemático e à peculiar duplicidade desse elemento misterioso.

Mas, para não se obscurecer artificialmente um estudo de coisas claro em si, seja dito que a idade sumamente avançada de nossa história provém do fato de ela se desenrolar antes de determinada peripécia e de certo limite que abriram um sulco profundo na nossa vida e na nossa consciência... Desenrola-se – ou para evitarmos propositadamente qualquer forma de presente – desenrolou-se numa época transata, outrora, nos velhos tempos, naquele mundo de antes da Grande Guerra, cujo deflagrar marcou o começo de tantas coisas que ainda mal deixaram de começar. Passa-se, pois, antes desse período, se bem que não muito antes. No entanto, não será o caráter de antiguidade de uma história tanto mais profundo, perfeito e lendário, quanto mais próxima do presente ela se passar? Além disso, poderia ser que também sob outros aspectos a nossa história, pela sua natureza íntima, tenha isto e aquilo em comum com a lenda. 

*

Tal qual o tempo, o espaço gera o olvido; porém o faz, desligando o indivíduo das suas relações e pondo-o num estado livre, primitivo; chega até mesmo a transformar, num só golpe, um pedante ou um burguesote numa espécie de vagabundo. Dizem que o tempo é como o rio Letes; mas também o ar de paragens longínquas representa uma poção semelhante, e seu efeito, conquanto menos radical, não deixa de ser mais rápido. 

*

Levava sobre os ombros, comodamente e com certa dignidade, a elevada civilização que a alta sociedade dessa democracia municipal de comerciantes transmite aos seus filhos. Ia lavadinho como um nenê e fazia-se vestir pelo alfaiate que gozava da confiança dos jovens da sua esfera social. O pequeno tesouro de roupa de dentro cuidadosamente marcada, que abrigavam as gavetas inglesas de seu armário, era lealmente administrado por Shalleen. Ainda quando Hans Castorp passou a estudar fora, continuava mandando regularmente a roupa branca para casa, a fim de que ali a lavassem e consertassem – afirmava ele que fora de Hamburgo ninguém sabia engomar. Um pedacinho puído no punho de uma das suas bonitas camisas de cor seria capaz de enchê-lo de violento mal-estar. Suas mãos, posto não fossem tipicamente aristocráticas, tinham a pele bem cuidada e macia, e eram adornadas pelo anel-sinete, herança do avô, e por outro anel de platina, em forma de corrente. Seus dentes, de consistência mole, haviam sofrido algumas avarias, reparadas por trabalhos de ouro.

Ao caminhar ou estar de pé, avançava um pouco o ventre, o que não dava propriamente uma impressão de energia marcial. Em compensação era impecável a sua postura à mesa. Voltava cortesmente o tronco muito teso para o vizinho com quem falava, pausadamente e com leve acento hamburguês. Os cotovelos achegavam-se ligeiramente do corpo, enquanto dissecava um pedaço de frango ou habilmente extraía, mediante o instrumento especial, a carne rosada de uma pinça de lavagante. Terminada a refeição, era sua primeira necessidade a tigelinha de água perfumada para lavar os dedos, e a segunda, o cigarro russo, sonegado ao imposto alfandegário, uma vez que Hans Castorp tinha uma fonte conveniente onde comprá-lo a contrabando. Ao cigarro seguia-se um charuto, de uma saborosa marca bremense, de nome Maria Mancini, do qual se falará mais adiante, e cujos tóxicos picantes se combinavam deliciosamente com os do café.

Hans Castorp punha as suas provisões de fumo a salvo das influências prejudiciais da calefação a vapor, guardando-as no porão, aonde descia todas as manhãs, para abastecer a charuteira com a dose diária. Só com relutância teria comido manteiga que lhe servissem num bloco e não em forma de bolinhas estriadas.

Como se vê, empenhamo-nos em anotar tudo quanto possa prevenir o espírito do leitor a favor de Hans Castorp. Mas julgamo-lo sem exagero, e não o apresentamos nem melhor nem pior do que era. Hans Castorp não era nem um gênio nem um imbecil, e a razão de evitarmos, para sua qualificação, o termo “medíocre”, reside em circunstâncias que nada têm que ver com sua inteligência e quase nada com a sua singela personalidade; fazemo-lo devido ao respeito que temos pelo seu destino, ao qual nos sentimos inclinados a atribuir certa significação ultraindividual. Seu cérebro satisfazia as exigências do curso científico do colégio, sem que tivesse de recorrer a excessivos esforços que decerto não teria realizado em nenhuma ocasião e por nenhum objetivo; menos por medo de se prejudicar do que por não ver nenhum motivo para empreendê-los; ou melhor: por não ver nenhum motivo absoluto. É precisamente por isso que não o chamamos de medíocre, já que ele percebia, desta ou daquela forma, a ausência de tais motivos. 

O homem não vive somente a sua vida individual; consciente ou inconscientemente participa também da vida de sua época e dos seus contemporâneos. Até mesmo uma pessoa inclinada a julgar absolutas e naturais as bases gerais e ultrapessoais da sua existência, e que da ideia de criticá-las permaneça tão distante quanto o bom Hans Castorp – até uma pessoa assim pode facilmente sentir o seu bem-estar moral um tanto diminuído pelos defeitos inerentes a essas bases. O indivíduo pode visar numerosos objetivos pessoais, finalidades, esperanças, perspectivas, que lhe deem o impulso para grandes esforços e elevadas atividades; mas, quando o elemento impessoal que o rodeia, quando o próprio tempo, não obstante toda a agitação exterior, carece no fundo de esperanças e perspectivas, quando se lhe revela como desesperador, desorientado e falto de saída, e responde com um silêncio vazio à pergunta que se faz consciente ou inconscientemente, mas em todo caso se faz, a pergunta pelo sentido supremo, ultrapessoal e absoluto, de toda atividade e de todo esforço – então se tornará inevitável, justamente entre as naturezas mais retas, o efeito paralisador desse estado de coisas, e esse efeito será capaz de ir além do domínio da alma e da moral, e de afetar a própria parte física e orgânica do indivíduo. Para um homem se dispor a empreender uma obra que ultrapassa a medida das absolutas necessidades, sem que a época saiba uma resposta satisfatória à pergunta “Para quê?”, é indispensável ou um isolamento moral e uma independência, como raras vezes se encontram e têm um quê heroico, ou então uma vitalidade muito robusta. Hans Castorp não possuía nem uma nem outra dessas qualidades, e portanto deve ser considerado medíocre, posto que num sentido inteiramente decoroso.

Tudo isso se refere à mentalidade do nosso jovem, não só durante a sua vida escolar, senão também durante os anos posteriores a ela, quando já escolhera a sua profissão civil. 

*

 – Já faz quase oito anos – dizia – que te levantamos sobre esta bacia, e que a água com que foste batizado caiu dentro dela. O sacristão Lassen da paróquia de São Jacó verteu-a na concha da mão do bom pastor Bugenhagen, e dali escorreu ela sobre a tua cabeça até a bacia. A água tinha sido amornada, para que não te assustasses e chorasses. E de fato não choraste nem um pouquinho, embora antes gritasses de tal maneira que Bugenhagen tinha dificuldades de fazer seu sermão. Mas quando sentiste a água, ficaste quietinho, e quero acreditar que foi por respeito ao Santo Sacramento. E por estes dias vai fazer quarenta e quatro anos que teu saudoso pai recebeu o batismo, e a água que escorreu da cabeça dele caiu nesta mesma bacia. Foi aqui, nesta casa, sua casa paterna, na sala ao lado, e quem o batizou foi ainda o velho pastor Hesekiel, o mesmo a quem os franceses quase que fuzilaram, quando jovem, porque pregara contra suas rapinagens e saques; esse pastor também já faz muito que está junto de Deus. E há setenta e cinco anos batizaram a mim. Foi também nesta mesma sala, e mantiveram a minha cabeça por cima da bacia, exatamente como a vês agora colocada sobre a bandeja; e o pastor pronunciou as mesmas palavras como no teu batizado e no de teu pai, e a água morna e límpida escorreu da mesma forma dos meus cabelos (não tinha muito mais do que tenho agora), e caiu aqui, nesta bacia dourada. O pequeno levantava os olhos para a fina e comprida cabeça do ancião, que voltava a inclinar-se para a bacia, como fizera naquele momento já longínquo a que se referia. E se apoderava do menino uma sensação ia muitas vezes experimentada, a impressão estranha, entre sonhadora e angustiante, de algo que desfilava sem se mover, que se mudava e contudo permanecia, algo que era reiteração tanto como vertiginosa monotonia – impressão que ele conhecia de outras ocasiões, e cuja volta esperara e desejara. Era em parte pelo prazer de senti-la mais uma vez que pedia ao avô que lhe mostrasse a relíquia da família, na sua imutável progressão. Quando, mais tarde, o jovem se examinava a si mesmo, verificava que a imagem do avô se lhe gravara na memória com muito maior nitidez, intensidade e significação do que a de seus próprios pais; isso talvez se devesse a alguma simpatia ou afinidade física particular, pois o neto se parecia com o avô, tanto quanto um fedelho de faces rosadas pode ter semelhança com um septuagenário encanecido e esclerótico. Mas, antes de tudo, esse fato falava em favor do ancião, que incontestavelmente fora a figura mais característica, a personalidade pitoresca da família. No que se refere aos assuntos públicos, o tempo, já muito antes do traspasse de Hans Lorenz Castorp, passara por cima da sua maneira de ser e pensar. Fora ele um homem profundamente cristão, membro da Igreja Reformista, e de opiniões rigorosamente tradicionalistas; empenhara-se em manter de pé a restrição aristocrática da única classe social capaz de produzir os futuros governantes, e o fizera com tamanha tenacidade como se vivesse no século XIV, quando o artesanato, vencendo a encarniçada resistência do patriciado livre, conquistara o direito de voto e assento no Conselho Municipal. O velho sentia grande dificuldade em adaptar-se a inovações. Sua vida coincidia com uma época de rápido desenvolvimento e múltiplas revoluções, com decênios de progresso em marcha forçada, que haviam exigido muita audácia e grande abnegação nos negócios públicos. Mas Deus sabe que não era culpa do velho Castorp que o espírito moderno obtivesse seus conhecidos e brilhantes triunfos. Ligara ele maior importância às tradições ancestrais e às instituições antigas do que às arriscadas ampliações do porto e outros arremedos ímpios de cidades grandes; refreara e se opusera, sempre que lhe era possível, e se fosse por ele, a administração seria ainda hoje tão idílica e antiquada como o seu próprio escritório. Era assim que o ancião, em tempos de vida e mesmo depois, se apresentava aos olhos de seus concidadãos, e posto que o pequeno Hans Castorp nada entendesse de assuntos públicos, os olhares silenciosos e contemplativos da criança faziam pouco mais ou menos as mesmas observações; observações mudas, despidas de crítica, porém cheias de vida, e que mais tarde, como reminiscência consciente, conservavam o seu caráter de irrestrita aprovação, hostil a qualquer análise verbal. Como já dissemos, havia nisso um quê de simpatia, aquele laço íntimo, aquela afinidade de almas que não raras vezes salta uma geração. Os filhos e os netos olham para admirar, e admiram na intenção de aprender e aperfeiçoar, o que se acha preparado na sua massa hereditária. * A úmida atmosfera da grande cidade marítima, mescla de vida farta e mercantilismo de envergadura mundial, esse ar que enchera de prazer a vida dos seus antepassados, Hans Castorp respirava-o com profunda aprovação, saboreando-o como uma coisa natural. Com o olfato penetrado pelas emanações da água, da hulha e do alcatrão e pelos acres odores de montões de produtos coloniais, via como no cais do porto os enormes guindastes a vapor imitavam a calma, a inteligência e a gigantesca força de elefantes a serviço do homem, transportando toneladas de sacos, fardos, caixas, barris e tambores, do bojo de transatlânticos ancorados até os armazéns das docas ou os vagões da via férrea. Via os comerciantes, com impermeáveis amarelos, tal qual o dele próprio, afluírem à Bolsa, por volta do meio-dia, onde, como ele sabia, se jogava alto, e facilmente acontecia que alguém se visse obrigado a distribuir convites apressados para um grande banquete, destinado a salvar-lhe o crédito. Via – e era este o campo em que mais tarde se concentraram os seus interesses – a multidão que fervilhava nos estaleiros; via os corpos de mamute, de vapores regressados da Ásia ou da África, do dique seco, altos como torres, com as quilhas e as hélices no ar, escorados em pontaletes grossos como árvores, monstruosos na sua paralisia, invadidos por exércitos de operários que pareciam pigmeus, ocupados em raspar, martelar e pintar; via nos picadeiros cobertos erguerem-se, envoltos numa cerração fumosa, os esqueletos de navios em construção, enquanto engenheiros, com os planos de construção e as tabelas de zonchadura na mão, davam ordens aos capatazes. Todas essas coisas eram familiares a Hans Castorp, desde a sua infância, e despertavam nele apenas a sensação confortável e habitual de fazer parte de tudo isso; impressão que culminava, quando, numa manhã de domingo, em companhia de James Tienappel ou de seu primo Ziemssen – Joachim Ziemssen – comia no Pavilhão do Alster pãezinhos quentes com carne defumada, regados por um copo de vinho velho do Porto, após o que se reclinava na poltrona, para aspirar com volúpia a fumaça de seu charuto. Pois era justamente neste ponto que Hans Castorp representava um produto genuíno da sua terra: gostava de viver bem, e apesar da sua aparência anêmica e refinada, agarrava-se com fervor e firmeza, qual um lactente deliciado pelos seios da mãe, aos prazeres físicos que a vida lhe oferecia. 

 (...) Mas então, o que era a vida? Era calor, o produto calorífico de uma instabilidade preservadora da forma, uma febre da matéria que acompanhava o processo de incessante decomposição e reconstituição de moléculas de albumina, estas mesmas insubsistentes, dadas a complicação e engenhosidade de sua estrutura. Era o ser daquilo que em realidade não podia ser, daquilo que, a muito custo e mediante um esforço delicioso e aflitivo, consegue chegar, nesse processo complexo e febril de decadência e de renovação, ao equilíbrio no ponto do ser. Não era nem matéria nem espírito. Era qualquer coisa entre os dois, um fenômeno sustentado pela matéria, tal e qual o arco-íris sobre a queda-d’água, e igual à chama. Mas, se bem não fosse material, era sensual até a volúpia e até o asco, o impudor da natureza tornada irritável e sensível com respeito a si própria, e a forma lasciva do ser. Era um movimento clandestino, mas perceptível no casto frio do universo, uma secreta e voluptuosa impureza composta de sucção e de evacuação, uma exalação excretória de gás carbônico e de substâncias nocivas de procedência e qualidade ignotas. Era vegetação, desenvolução e configuração — possibilitadas pela hipercompensação da sua instabilidade e controladas pelas leis de formação que lhe eram inerentes — de uma coisa túmida de água, albumina, sal e gorduras, uma coisa que se chamava carne e se convertia em forma, em imagem sublime, em beleza, mas que, ao mesmo tempo, era o princípio da sensualidade e do desejo. 

 – “Não faça tanta fita!”, costuma dizer ele – respondeu Joachim. – Foi pelo menos o que disse recentemente numa ocasião dessas. Quem nos contou a história foi a enfermeira-chefe, que estava lá para segurar o agonizante. Era um daqueles que no leito de morte ainda fazem uma cena pavorosa e absolutamente não querem morrer. Então o Behrens ralhou com ele. “Deixe de fazer tanta fita!”, disse, e o paciente logo ficou quietinho e morreu com toda a calma. Hans Castorp deu uma palmada na coxa, e reclinando-se no encosto do banco, dirigiu os olhos para o céu: – Escute, essa é muito forte! – exclamou. – Ralhar com o doente e dizer-lhe simplesmente: “Não faça tanta fita!” A um moribundo! É demais. Afinal de contas, um moribundo merece algum respeito. Não se pode dizer-lhe sem mais aquela... Parece-me que um moribundo é, de certo modo, sagrado. – Não digo o contrário – concedeu Joachim. – Mas quando alguém se comporta covardemente... – Não senhor! – insistiu Hans Castorp, com uma violência que não estava proporcional à oposição que se lhe fazia. – Ninguém me tirará da cabeça que um moribundo é mais nobre do que um indivíduo qualquer que passeia e ri e ganha dinheiro e enche a pança. Não é possível... – Sua voz vacilou estranhamente. – Não é possível que se trate assim... – E de súbito suas palavras se afogaram numa gargalhada que se apoderou dele e o dominou; o mesmo riso da véspera, um riso que lhe brotava das entranhas, lhe sacudia todo o corpo e não tinha fim, que lhe cerrou os olhos e extraiu lágrimas por entre as pálpebras comprimidas. 

 O senhor já chegou a conhecê-lo? Hans Castorp disse que sim. – E agora? Estou disposto a acreditar que também ele lhe agrada. – Francamente, Sr. Settembrini, não sei. Falei com ele apenas poucos instantes, e não tenho o hábito de formar uma opinião precipitada. Costumo olhar a gente e pensar: “Então és assim? Muito bem”. – Isto é pura apatia – respondeu o italiano. – Por que não julga? É para esse fim que a natureza lhe deu os olhos e o cérebro. O senhor achou que eu era malicioso, mas quando eu falava assim talvez o fizesse com intenções pedagógicas. Nós, os humanistas temos todos uma veia pedagógica... Meus senhores, o laço histórico entre o humanismo e pedagogia é a prova do laço psicológico que existe entre ambos. Não convém privar os humanistas da sua função educadora... Não se lhes pode arrebatar essa função, porque só entre eles se encontra a tradição da dignidade e da beleza do Homem. Um dia, o humanista substituiu o sacerdote, que numa época sombria e misantrópica ousara arrogar-se a direção da juventude. Desde então, senhores não surgiu mais nenhum tipo novo de educador. O ginásio humanista – o senhor pode me chamar de reacionário, meu caro engenheiro, mas, por princípio, in abstrato, queira compreender-me bem, continuo seu adepto... 

*

 Que é o tempo, afinal? – perguntou Hans Castorp comprimindo o nariz com tamanha violência, que a ponta se tornou branca e exangue. – Quer me dizer isto? Percebemos o espaço com nossos sentidos, por meio da vista e do tato. Muito bem! Mas que órgão possuímos para perceber o tempo? Pode me responder a essa pergunta? Bem vê que não pode. Como é possível medir uma coisa da qual, no fundo, não sabemos nada, nada, nem sequer uma única das suas características? Dizemos que o tempo passa. Está bem, deixe-o passar. Mas para que possamos medi-lo... Espere um pouco! Para que o tempo fosse mensurável, seria preciso que decorresse de um modo uniforme; e quem lhe garante que é mesmo assim? Para a nossa consciência, não é. Somente o supomos, para a boa ordem das coisas, e as nossas medidas, permita-me esta observação, não passam de convenções... 

*

❝Há duas atitudes: a livre e a piedosa. Ambas têm as suas vantagens, mas o que me faz antipatizar com a atitude livre, quero dizer, a de Settembrini, é que ela pretende ter o monopólio da dignidade. Isso é exagerado. A outra atitude encerra também, a seu modo, muita dignidade humana e resulta num vasto conjunto de decência, de procedimento correto e de cerimonial, muito mais do que a atitude livre, embora vise especialmente à fraqueza e à instabilidade dos homens e nela desempenhe um papel importante o papel da morte e da decomposição.

*

❝- Meu amigo, não existe conhecimento puro. É indiscutível a legitimidade da concepção eclesiástica da ciência, que se pode resumir nas palavras de Santo Agostinho: “Creio para que possa conhecer”. A fé é o órgão do conhecimento, e o intelecto é secundário. A sua ciência incondicional não passa de um mito. Há sempre uma fé, um conceito do mundo, uma ideia, numa palavra: uma vontade, e cabe à razão explicá-la e comprová-la.

*

À minha mesa há também uma senhora desse tipo, a Srª. Stöhr... Creio que o senhor a conhece. É de uma ignorância pavorosa, não há dúvida, e às vezes a gente não sabe para onde olhar, quando ela se mete a tagarelar. Contudo, lamenta-se essa mulher da sua temperatura e de se sentir tão lassa. Parece, infelizmente, que não se trata de um caso benigno. E isto é estranho, estupidez e doença, não sei se me expresso claramente, mas tenho uma impressão tão esquisita ao ver uma pessoa estúpida que ainda por cima está doente! Essas duas coisas reunidas, acho que são o que há de mais triste neste mundo. Não se sabe como comportar-se, pois todos gostam, afinal, de tratar um enfermo com seriedade e respeito, não é? A doença é, por assim dizer, uma coisa digna de reverência. Mas quando a estupidez, a cada instante, se intromete, dizendo “fómulo” ou “estabelecimento cósmico”, ou outras asneiras do mesmo quilate – francamente, então não sei se devo rir ou chorar. É um dilema para o sentimento humano, e uma situação tão lamentável que nem posso dizer. Na minha opinião, não há coerência nessas duas coisas; elas não combinam; a gente é incapaz de imaginá-las reunidas. Sempre se pensa que uma pessoa estúpida deve ser normalmente sadia; e que a doença torna as criaturas finas e cultas e diferentes. É assim que se pensa em geral, não é? (...)  meu caro engenheiro! O senhor acaba de manifestar qualidades filosóficas que eu não esperava da sua parte. De acordo com a sua teoria, deveria estar menos sadio do que aparenta, porque, evidentemente, possui espírito. Permita-me, no entanto, observar que não pude acompanhar as suas deduções, que as rejeito e me oponho a elas com verdadeira hostilidade. Tal como o senhor me vê, sou um pouco intolerante em assuntos espirituais e prefiro ser tachado de pedante a deixar de combater opiniões que me parecem tão censuráveis como essas que o senhor nos apresentou... Per... mita-me... Já sei o que o senhor tenciona replicar. Quer dizer que não falou muito a sério, que os pontos de vista que acaba de expor não são propriamente os seus, que apenas apanhou uma opinião dentre as muitas possíveis que flutuam no ar, e que o fez a fim de se exercitar um pouco, sem assumir nenhuma responsabilidade. É o que está em harmonia com a sua idade, que ainda se compraz em dispensar a resolução viril e em tentar, provisoriamente, toda espécie de teorias. Placet experiri – acrescentou, pronunciando o “c” de placet brandamente, à italiana. – Uma excelente máxima. O que me deixa pasmado é apenas o fato de ver as suas experiências tomarem justamente este rumo. Não me parece tratar-se de um mero acaso. Receio que exista no senhor uma tendência capaz de se arraigar no seu caráter, se não for combatida a tempo. Por isso me creio na obrigação de corrigi-lo. O senhor opinou que a doença reunida à estupidez era a coisa mais triste que havia no mundo. Estou de acordo. Também eu prefiro um doente espirituoso a um bobalhão tísico, porém não posso deixar de protestar, quando o senhor se mete a considerar a combinação de enfermidade e tolice como uma espécie de falta de estilo,  um ato de mau gosto praticado pela Natureza, e um dilema para o sentimento humano, conforme lhe aprouve expressar-se. E quando o senhor julga a doença tão nobre e – como dizia? – tão digna de reverência, que simplesmente não se pode harmonizar com a estupidez. É outra expressão sua. Pois bem, eu não concordo com isso. A doença absolutamente não é nobre, e nem um pouquinho digna de reverência. Essa concepção é por si mesma mórbida ou leva à morbidez.


Thomas Mann, A montanha mágica

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Enquanto agonizo - William Faulkner


Tradução e Introdução - Hélio Pólvora

Introdução

“Amar a Humanidade Inteira" 

HÉLIO PÓLVORA


Entre as novidades deste romance, pelas quais Faulkner seria imitado, copiado e pastichado, convém destacar: 

a) ausência do escritor em relação ao relato, ou seja, sua absoluta neutralidade; 

b) a fragmentação da narrativa: o romance é um patchwork, uma colcha de retalhos; 

c) predominância do tempo psicológico, interior, sobre o tempo convencional, cronológico — ou a alternância dos dois tempos, habilmente dosada; 

d) a incerteza do romancista: ele não sabe, ou finge ignorar o que se passa ou o que virá; 

e) a verdade do relato, ou dos vários relatos entrelaçados, é uma coisa sempre sujeita a contestação: depende de versões que ora lançam luz, ora obscurecem os fatos, e a verdade procurada será sempre, por conseguinte, ambivalente, ambígua, incompleta — e, no entanto, una, indivisível; 

f) a narração é feita pelas personagens, que se explicam pela maneira de falar, de reagir aos acontecimentos: suas psicologias estão indissoluvelmente presas às suas palavras;

g) a linguagem das personagens deste romance equivale a um signo, é o reflexo de seus temperamentos, inclinações, conflitos; 

h) os depoimentos fazem a ação do romance avançar e retroceder, e um vai esclarecendo o outro, embora certas zonas permaneçam obscuras — intencionalmente ou não. 

O plot é bastante simples: a família Bundren, representante do poor white do Sul dos Estados Unidos, ao tempo da decadência agrícola, viaja até a cidade de Jefferson, em carroça, levando o caixão de Addie, que manifestara em vida o desejo de ser enterrada ali, e fizera o marido Anse prometer-lhe a satisfação de tão humilde vontade. "Não fiz mais que imaginar um grupo de pessoas e as submeti simplesmente a essas catástrofes naturais, universais, que são a inundação e o fogo, com um motivo lógico e simples, para dar sentido à sua evolução"

2, disse o romancista. Depois de várias peripécias (Addie fica oito dias sem sepultura), os Bundren chegam a Jefferson. Atravessaram um rio turbulento, pelo lugar do vau, e salvaram o caixão de um incêndio. Anse é um preguiçoso, um oportunista, um pobre diabo cheio de fraquezas morais, mas aferra-se à palavra empenhada. Sepultada a mulher, aparece com uma dentadura nova, cabelo bem alisado e outra Mrs. Bundren, que apresenta aos filhos sentados na carroça e todos eles atônitos. A abertura do Romance é solene: o quadro trágico de Addie agonizante, ouvindo pela janela aberta as marteladas de Cash e o ruído de sua serra, no preparo do caixão, somente é quebrado por algumas cenas grotescas, de humor negro, e descrições de um lirismo fundamental — um lirismo de começo de mundo. "A cena inicial tem o ar macabro de uma pintura medieval da Dança da Morte", dizem os críticos Campbell e Forster.

3 Mas são muitas, na verdade, as passagens literariamente admiráveis de Enquanto Agonizo — e eu citaria, entre outras, o monologo de Addie, alguns monólogos de Darl e Vardaman, as cenas de travessia do rio e o incêndio no celeiro de Gillespie. Campbell e Forster referem-se, a propósito dos capítulos sobre a travessia do rio, à capacidade que tem Faulkner de "dar o salto metafísico para o cósmico". As personagens de Enquanto Agonizo são pessoas rudes, toscas, assoberbadas por apetites mesquinhos e pequenos interesses. No entanto, têm, como a gente sofrida do povo, em qualquer parte, sobretudo no campo, uma compreensão da vida que envolve formulações não raro de alto teor filosófico. Este poder de aceitar os acontecimentos, por piores que sejam, e a eles resignar-se, equivale à submissão das dramatis personae ao Destino, no teatro grego que universalizou a tragédia. O romance parece, com efeito, desenvolver-se em função de dois cenários. No seu início, a figura magra de Addie na cama, ouvindo (e vendo) seu caixão mortuário ser preparado pelo filho mais velho. A partir da viagem para Jefferson, a carroça onde está o caixão, com o pai e filhos. O romance se compõe com estes dois elementos como núcleo. Eles funcionam como cenário, ponto de referência, ponto de partida, atração e repulsão. Enquanto Agonizo é a mais teatral das tragédias de Faulkner, e os capítulos curtos, esquemáticos, correspondem, sem dúvida, à entrada de protagonistas em cena e às suas falas.

Em 1962, pouco antes de falecer, William Faulkner foi sabatinado em West Point. Perguntaram-lhe, entre outras coisas, "em que medida a apresentação de personagens mais ou menos pervertidas pode contribuir para elevar o coração do homem". Sua resposta: "A primeira coisa que um escritor sente é compaixão por suas personagens, como, aliás, pelas personagens de não importa que outro autor. Ele não estima o poder que tem para julgá-las, e essas personagens permanecem com suas taras, quer o escritor queira ou não. Quando conta uma história, parece-lhe necessário, bom, essencial mesmo, ter em conta essa evidência. Não lhes advoga a causa, não as condena; uma vez consciente de seus defeitos, a primeira coisa que deve fazer é amar a humanidade inteira, embora chegue a odiar certos indivíduos. Entre as personagens que criei, há algumas que odeio ferozmente, mas não me compete julgá-las, condená-las: elas existem, fazem parte do quadro em que vivemos. E recusando falar delas não aboliremos o mal."

4 Ao receber o Prêmio Nobel, Faulkner disse, em discurso, que, enquanto permanecer o medo universal, físico, que caracteriza nossa época, o escritor "escreverá não do amor, mas do desejo, de derrotas em que ninguém perde nada de valor, de vitórias sem esperança e, o que é pior, sem piedade nem compaixão. (... ) Escreverá a respeito das glândulas, não do coração".

5 Das personagens de Enquanto Agonizo, a única moralmente boa, pura, será Cash, o carpinteiro. A tradução requer algumas palavras. O estilo de Faulkner, aqui, é direto, extremamente condensado, como se ele pretendesse carregar uma frase ou uma palavra do maior número possível de significações. O tradutor optou pela versão quase literal do texto, somente a ela fugindo quando forçado pela necessidade de clareza. O outro critério possível neste caso seria traduzir literariamente a linguagem de Faulkner; o texto ficaria mais bonito, mais fluente, mas não teria a rudeza, o coloquialismo e a feroz condensação do original, O leitor não afeiçoado a este universo deve nele procurar penetrar munido de paciência: a cena vai se esclarecendo aos poucos, à medida que falam as personagens. Certos trechos permanecerão obscuros, porque, em alguns casos, as personagens não sabem o que dizer ou como dizer. Conforme observou o próprio Faulkner, "ninguém procura ser obscuro só pelo prazer de sê-lo, Mas, em certos momentos, o escritor é simplesmente incapaz de encontrar um meio mais eficaz de contar a história que busca contar".

6 Preferiu o tradutor o diálogo à americana. Indicado por aspas, em vez de travessão. Não fosse assim e seria obrigado a alterar a estrutura de composição do livro, quebrando-lhe o ritmo, uma vez que muitos diálogos estão embutidos no texto. Procurou também manter a pontuação do autor, especialmente em certos monólogos que aparecem em grifo.


Foi a coisa mais comovente que já vi. Como se ele soubesse que jamais voltaria a vê-la, que Anse Bundren afastava-o do leito de morte de sua mãe, e que ele jamais voltaria a vê-la neste mundo. Eu sempre disse que Darl era diferente dos outros. Eu sempre disse que, entre todos, ele era o único com a natureza da mãe, o único que lhe dedicava afeto. Ao contrário de Jewel, que lhe deu tanto trabalho para nascer e que ela dengou e mimou, para ganhar, em troca, demonstrações de cólera e mau-humor, não se contando as diabruras que a atormentavam e que, se fossem comigo, eu lhe daria uma surra de quando em quando. Não será ele quem lhe virá dizer adeus. Não será ele quem vá perder a oportunidade de fazer três dólares extras, ao preço do beijo de despedida da mãe. Um Bundren da cabeça aos pés, que a ninguém ama e só se preocupa mesmo em ganhar algum dinheiro com o mínimo de trabalho. Mr. Tull diz que Darl lhes pediu para esperarem. Disse que Darl quase lhes suplicou de joelhos para não o obrigarem a deixá-la nessa situação. Mas Anse e Jewel não perderiam, por nada desse mundo, a oportunidade de fazer três dólares. Ninguém que conheça Anse poderia esperar outra atitude, mas pensar que esse rapaz, esse Jewel, venda todos esses anos de abnegação e ostensiva parcialidade (não me enganam: Mr. Tull diz que Mrs. Bundren gostava menos de Jewel, entre todos, mas eu é que sei. Sei que ela tinha predileção por ele, porque via nele a mesma qualidade que a fazia suportar Anse Bundren quando Mr. Tull dizia que ela devia envenená-lo) por três dólares, negando à sua mãe agonizante o beijo de despedida. Pois, nas últimas três semanas, eu tenho vindo aqui, sempre que posso, às vezes quando não devo, abandonando minha própria família e minhas obrigações para que alguém possa estar com ela nos seus derradeiros instantes e ela não tenha de enfrentar o Grande Desconhecido sem um rosto familiar a dar-lhe coragem. Não que eu deseje agradecimentos por isso: espero o mesmo quando chegar a minha hora. Mas, graças a Deus, terei os rostos dos meus, meu sangue e minha carne, pois em matéria de marido e filhos tenho sido mais feliz que muitas, apesar de provocações ocasionais. Ela vivia solitária, sozinha com seu orgulho, tentando fazer com que a gente pensasse outra coisa, ocultando o fato de que apenas a suportavam, pois, antes de esfriar no caixão, eles já estariam levando-a a sessenta quilômetros de distância, para enterrá-la, menosprezando, assim, a vontade de Deus. Negando-lhe o descanso na mesma terra desses Bundrens. 

(...)

"Bom, nem todos são iguais", ele disse. Espero que sim, Tenho procurado viver com retidão aos olhos de Deus e dos homens, para honra e conforto de meu marido cristão e para o amor e respeito de meus filhos cristãos. De maneira que, quando tiver de morrer, consciente do dever e da recompensa que mereço, estarei cercada de rostos queridos, recebendo o beijo de adeus de cada um de meus afeiçoados, como recompensa. Não como Addie Bundren, morrendo sozinha, ocultando o orgulho e o coração despedaçado. Contente por deixar a vida. Estirada na cama, com a cabeça no alto para poder observar Cash a fazer o caixão, obrigada a vigiá-lo para que ele não poupe madeira, para que trabalhe bem, e os outros homens sem se preocuparem com nada, exceto se haverá tempo de ganhar mais três dólares antes que a chuva caia e o rio cheio impeça a travessia. Pois, se eles não houvessem resolvido pegar essa última carga, teriam levado Addie na carroça, sobre um cobertor, e cruzado logo o rio, e depois parado para dar tempo a que ela morresse da morte cristã que seria licito permitir-lhe. Exceto Darl. Foi a coisa mais confortadora que eu vi. As vezes, eu perco temporariamente a fé na natureza humana; sou assaltada pela dúvida. Mas sempre o Senhor restaura-me a fé e me revela Seu bondoso amor pelas criaturas. Não por Jewel, a quem ela tanto amou; não por ele. Ele só pensava nesses três dólares extraordinários. Foi por Darl, de quem todos dizem que é um estranho, um preguiçoso, sempre vadiando, igualzinho a Anse, enquanto Cash é bom carpinteiro sempre mais atarefado do que pode, e Jewel sempre a fazer algo que lhe rendesse dinheiro ou desse o que falar, e aquela mocinha quase nua, sempre em pé, ao lado de Addie, com um leque, de forma que, quando a gente tenta conversar com Addie e animá-la, responde logo em vez de Addie, como se quisesse impedir que a gente se aproxime dela. Foi por Darl. Ele chega à porta e fica parado, olhando a mãe agonizante. Apenas olha para ela, e eu sinto novamente o bondoso amor do Senhor e Sua misericórdia. Compreendi, então, que ela fora fingida a respeito de Jewel, mas que era entre ela e Darl que havia entendimento e verdadeiro amor. Ele apenas olha" para ela, sequer entra para que ela possa vê-lo, a fim de não sobressaltá-la, sabendo embora que Anse o espera e que nunca mais voltaria a vê-la. Ele não disse nada, apenas olhou para ela. "Que deseja. Dar!?", disse Dewey Dell, sem parar o leque, falando com rapidez, impedindo que ele, mesmo ele, se aproximasse. Ele não respondeu. Continuou em pé, olhando a mãe moribunda, o coração penalizado demais paia poder falar. 

 "Ela está se acabando", diz. "Não pensa em outra coisa." Sem dúvida, a vida das mulheres é dura. De algumas mulheres. Lembro que mamãe chegou até os setenta e poucos. Ocupada o dia inteiro, chovesse ou fizesse sol; não caiu de cama um só dia, desde que lhe nasceu o último filho, até que, um dia, pareceu olhar em volta, foi apanhar a camisola rendada que tinha há quarenta e cinco anos e nunca havia tirado da arca, vestiu-a, estirou-se na cama e, puxando o cobertor, fechou os olhos. "Agora vocês todos cuidem de Pai o melhor que puderem", disse ela. "Não aguento mais." 

*

Anse

(...)

Diabo de estrada. E vai chover, com certeza. Parece que estou vendo: vai desabar um temporal atrás deles, levantando uma parede entre eles e a minha palavra empenhada. Faço o que posso, espremo a cabeça, mas o diabo desses rapazes. .. Estirada aqui, bem à minha porta, um lugar que favorece a má sorte. Eu disse a Addie que não era bom morar à beira de uma estrada, quando a estrada chegou até aqui, e ela respondeu, no seu rampante de mulher: "Então levante-se e mude-se." Mas eu lhe disse que não adiantava, porque Deus faz as estradas para a gente viajar: para isso é que Ele as estende por sobre a terra. Quando Ele quer que uma coisa se movimente, faz a coisa comprida, como uma estrada ou um cavalo ou uma carroça, mas quando Ele quer que uma coisa fique quieta, Ele faz a coisa para cima, como uma árvore ou um homem. Por isso, Ele nunca quis que as pessoas morassem em estradas, pois, afinal, quem veio primeiro, a estrada ou a casa? É possível colocar uma estrada perto de uma casa?, eu pergunto. Não, nunca, eu respondo, porque os homens não descansam numa casa onde cospem todos os que passam na estrada, em carroça, deixando as pessoas inquietas e desejosas de ir para outro lugar, pois Ele quis que ficassem quietas como uma árvore ou um monte de milho. Porque se Ele quisesse que os homens andassem sempre de um lado para outro, não lhes teria encompridado o ventre, como fez às cobras? Claro que sim, se Ele tivesse querido. Aí está a estrada, para que todo o azar venha por ela bater direto à minha porta, sem falar, acima de tudo, nos impostos. Tive de pagar para Cash aprender carpintaria, quando de não teria tido tal ideia se a estrada não viesse ter aqui; e não teria caído da igreja para ficar seis meses de mãos abanando e eu e Addie morrendo de trabalhar, quando, precisamente, havia tanta coisa a serrar, e ele teria serrado, se estivesse em condições.

*

A moça está em pé ao lado da cama, abanando-a. Quando entramos, ela vira a cabeça e nos encara. Há dez dias está como morta. Creio que, tendo sido uma parte de Anse durante tanto tempo, ela não se decide a fazer a mudança, se é que se trata de mudança. Lembro-me que, quando jovem, eu julgava a morte um fenômeno do corpo; agora, sei que não passa de função do espírito — também do espírito dos que sofrem a perda. Os niilistas dizem que a morte é o fim; os fundamentalistas, que é o princípio; quando, na realidade, não é mais que um inquilino ou uma família que sai de uma casa alugada ou de uma cidade. Ela olha para nós. Apenas seus olhos parecem mover-se. É como se nos tocasse, não com a vista ou os sentidos, mas como nos toca o jorro de uma mangueira, um jorro que, no instante do impacto, se houvesse dissociado do bocal, como se nunca tivesse saído por ali. Não olha de maneira alguma para Anse. Olha para mim, depois para o rapaz. Debaixo do cobertor ela está reduzida a um feixe de varas podres. 

*

Quando entramos no quarto ela está vigiando a porta. Olha para mim. Seus olhos parecem candeias que bruxuleiam antes que o querosene acabe. "Ela quer que o senhor vá embora", diz a moça. "Ora, Addie", diz Anse, "depois que ele veio de Jefferson para sarar você?" Ela me observa: posso sentir-lhe os olhos. Como se me enxotasse com os olhos. Já observei isto em outras mulheres. Já as vi expulsar do quarto as pessoas que iam levar-lhes simpatia e piedade, além de ajuda, e agarrarem-se a um animal insignificante para o qual nunca passaram de besta de carga. Eis o que elas entendem por amor acima de tudo: esse orgulho, esse furioso desejo de esconder a nudez abjeta que trazemos conosco, que levamos conosco às salas de cirurgia, e devolvemos conosco, de maneira estúpida e furiosa, à terra

*

Ela se deita novamente e vira a cabeça, sem um olhar de relance, sequer, para Pai. Olha Vardaman; seus olhos, a vida neles, a vida que ainda tem, ali se concentra; os dois clarões luzem por um rápido instante, e depois se apagam, como se alguém, tendo se inclinado, houvesse soprado. "Mãe", diz Dewey Dell, "Mãe!" Inclinada sobre a cama, as mãos um pouco erguidas, o leque ainda agitando-se, como há dez dias, ela começa a lamuriar-se. Sua voz é forte, juvenil, trêmula e clara, arrebatada por seus próprio timbre e volume; ainda agita, o leque com firmeza, para cima e para baixo, sussurrando no ar inútil. Depois, ela cai sobre os joelhos e Addie Bundren, e agarrando-a, sacode-a com a furiosa força dos jovens, antes de estender-se, de súbito, sobre o punhado de ossos corroídos que resta de Addie Bundren, abalando a cama com o silvo rangente do colchão, os braços estendidos e o leque, numa das mãos, ainda a bater, com um sopro expirante, no cobertor. Por trás da perna de Pai, Vardaman espia, de boca bem aberta e a cor fluindo do rosto para a boca, como se, de certo modo, houvesse cravado os dentes em si mesmo, sugando. Começa a se afastar vagarosamente da cama, os olhos redondos, o rosto pálido desmaiando no crepúsculo qual pedaço de papel colado a uma parede arruinada, e sai pela porta. Pai inclina-.se para a cama; ao crepúsculo sua silhueta encovada assemelha-se ao aspecto eriçado, descontente, de um mocho que disfarça uma sabedoria por demais profunda, ou por demais inerte para ser, sequer, concebida. "Meninos danados", ele diz. Jewel, eu digo. Por cima, o dia definha, monótono e cinzento, escondendo o sol atrás de uma nuvem de lanças cinzentas, As mulas fumegam um pouco, sob a chuva, amarelecidas pelos respingos de lama, e a da direita, apesar de escorregar, mantém se na estrada, acima da valeta. A carga de madeira despede um brilho amarelo-escuro, empapado , de água e pesado como chumbo, inclinado de banda, para a valeta, por sobre a roda quebrada; em volta dos raios entrançados e em volta dos tornozelos de Jewel, um fio grosso de água e amarelo, nem água nem terra, gira, seguindo a estrada amarela, nem água nem terra, desce pela encosta em forma de massa dissoluta, verde-escuro, nem água nem céu. Jewel, eu digo Cash aparece à porta, de serra na mão. Pai continua em pé, ao lado da cama, curvado, os braços pendentes. Volta a cabeça; seu perfil gasto e seu queixo desaparecem devagar, enquanto ele comprime o fumo contra as gengivas. "Findou-se", diz Cash. "Foi embora e nos deixou", diz Pai. Cash não o olha. "Falta muito para acabar o trabalho?", pergunta Pai. Cash não responde- Entra carregando a serra. "Ê melhor acabar o trabalho", diz Pai. "Você tem de caprichar, agora que os rapazes estão a caminho." Cash pousa os olhos no rosto du mãe. Não ouve Pai de forma nenhuma. Não se aproxima da cama. Para no meio do quarto, a serra contra a perna, os braços suados polvilhados de serragem, o rosto grave. "Se estiver apertado, talvez alguém venha amanhã dar-lhe ajuda", diz Pai. "Vernon, por exemplo." Cash não está ouvindo. Olha o rosto da mãe, pacificado e rígido, esmaecendo ao crepúsculo como se as sombras se antecipassem à última terra, até que, por fim, o rosto parece flutuar, destacado de si mesmo, leve como o reflexo de uma folha morta. "Não faltam bons cristãos para ajudar você", diz Pai. Cash não escuta. Depois de algum tempo, vira-se sem olhar Pai e deixa o quarto. Depois, a serra começa a roncar novamente. "Vão nos ajudar em nossa desgraça", diz Pai. O som da serra é firme, competente, sereno; agita a claridade mortiça, de forma que, a cada golpe, o rosto da morta parece despertar um pouco, em expressão de atenção e espera, como se ela estivesse contando os golpes. Pai baixa o olhar para o rosto, junto aos cabelos pretos e esparramados de Dewey Dell que, de braços abertos, tem o leque agora imóvel sobre o cobertor descorado. "Acho que é melhor você preparar o jantar", ele diz. Dewey Dell não se move. "Levante-se, já e já, e vá servir o jantar", diz Pai. "Temos de manter as forças. O Dr. Peabody deve estar faminto por causa da caminhada, E Cash terá de comer ligeiro e voltar ao trabalho a fim de terminar tudo a tempo." Dewey Dell levanta-se com dificuldade. Contempla o rosto da morta. Ele parece um molde de bronze pálido sobre o travesseiro somente nas mãos um ligeiro vestígio de vida: uma inércia encrespada, nodosa; um aspecto de coisa gasta, mas ainda vigilante, do qual ainda não saíram a preocupação, a fadiga, o trabalho, como se duvidassem ainda da realidade do repouso, guardando com penosa e eriçada vigilância a imobilidade que bem sabem não pode durar. Dewey Dell inclina-se, puxa o cobertor debaixo das mãos e estende-o ate o queixo, alisando-o, estirando-o até que fique bem macio. Depois, sem olhar Pai, ela contorna a cama e sai do quarto. Vai ao encontro de Peabody, a um lugar onde passa, em pé «a penumbra, fitar-lhe as costas com tal expressão que, sentindo seus olhos e voltando-se, ele dirá: "Não fique as sim tão desgostosa. Ela era velha e estava doente. Sofria mais do que se podia imaginar Não ia ficar boa. Vardaman está crescendo e, como você, tomará conta de todos. Eu, em seu lugar, não ficaria tão desgostoso. Acho que é melhor ir aprontar o jantar. Não preciso fazer muita coisa. Mas eles têm de comer". E ela, olhando-o, parece dizer: "O senhor bem que podia me ajudar, se quisesse. Se soubesse. Eu sou eu e o senhor é o senhor e eu sei e o senhor não sabe e o senhor podia fazer muito por mim se quisesse e se o senhor quisesse então eu lhe contaria e então ninguém precisaria ficar sabendo exceto o senhor e eu e Darl". Pai está em pé ao lado da cama, de braços pendentes, encurvado, imóvel. Leva a mão à cabeça, puxa o cabelo, ouvindo a serra. Aproxima-se e esfrega a mão, a palma e as costas da mão na coxa, e depois põe a mão no rosto e no dorso do cobertor, onde estão as mãos dela. Toca o cobertor como viu Dewey Dell fazer, tentando alisá-lo até o queixo, mas, em vez disso, enrugando-o. Procura alisá-lo de novo, desajeitadamente; a mão trapalhona como uma garra alisa as rugas que ele fez e que continuam a emergir debaixo da mão, com perversa ubiquidade, de forma que, por fim, ele desiste; a mão tomba na ilharga e ele volta a esfregar palma e costas da mão na coxa. O som da serra ronca com firmeza dentro do quarto. Pai respira com um som tranquilo e rascante, mastigando o tabaco contra as gengivas. "Seja o que Deus quiser", diz. "Agora posso comprar a dentadura." O chapéu de Jewel pende mole sobre seu pescoço, escorrendo água sobre o empapado saco de aniagem amarrado ao ombro, enquanto ele, enterrando os pés na valeta lamacenta, levanta o eixo com um pedaço de pau escorregadio e podre, que usa como alavanca. Jewel, eu digo, ela está morta, Jewel. Addie Bundren morreu. 

*

Vardaman

Então eu começo a correr. Corro para os fundos e chego ao canto do alpendre e paro. Então começo a chorar. Eu posso sentir onde o peixe estava na poeira. Está cortado agora em pedaços, em pedaços de coisas que não são peixe, e não tenho sangue nas mãos e no macacão. Ainda não tinha acontecido isto. Isto nunca tinha acontecido. E agora ela está tão longe que eu não posso alcançá-la. As árvores parecem galinhas quando se revolvem na poeira fria, nos dias quentes. Se eu saltar pelo alpendre, cairei no lugar onde o peixe estava, o peixe que não é mais peixe, cortado que foi em pedaços. Posso ouvir a cama e o rosto dela e eles todos e posso sentir o chão estalar quando ele caminha, ele que veio e fez isto. Ele que veio e fez isto quando ela estava boa, mas ele veio e fez isto. "O gordo filho da puta." Salto o corrimão, na carreira. O topo do celeiro emerge, em curva desgraciosa, do crepúsculo. Se eu saltar, posso atravessá-lo como a senhora de maiô cor-de-rosa do circo, e penetrar no cheiro quente, sem precisar esperar. Minhas mãos agarram os arbustos; debaixo dos meus pés, as pedras e a terra escorregam. Agora posso respirar outra vez, no cheiro quente. Entro na cavalariça, (tentando tocar nele, e então posso chorar mas engulo o choro. Assim que ele para de dar coices, eu posso chorar, eu consigo chorar. "Ele matou-a. Ele matou-a." A vida corre embaixo de sua pele, debaixo de minha mão, corroído pelas manchas, cheirando em meu nariz onde a coceira começa a se transformar em choro, engolindo o choro, e então eu posso respirar, contendo o choro. Tudo isto faz barulho. Posso cheirar a vida correndo embaixo de minhas mãos, subindo pelos meus braços, e então cu posso sair da cavalariça. Não consigo encontrá-lo. No escuro, na poeira, nas paredes, não consigo encontrá-lo. O choro faz muito barulho. Eu queria que não fizesse tanto barulho. Então eu o encontro na cocheira, no pó, e cruzo o pátio, na carreira, e entro na estrada, o pau balançando em meu ombro. Eles me olham enquanto eu subo, e começam a recuar aos saltos, rolando os olhos, resfolegando, puxando as rédeas que os prendem. Eu bato. Posso ouvir o pau batendo; posso ver o pau atingir-lhes as cabeças, as rédeas, falhando às vezes, enquanto eles recuam e tentam soltar-se, mas eu estou contente. "Você matou minha mãe!" O pau quebra-se; eles corcoveiam e resfolegam, suas patas batem surdas no chão; surdas, porque vai chover e o ar está vazio para receber chuva. Mas o pedaço de pau que me restou ainda é comprido. Corro em volta, enquanto eles resfolegam e saltam e puxam as rédeas, e eu bato.

"Você matou-a!" Bato neles, bato, eles giram em longa investida, e o carro gira sobre as duas rodas até ficar imóvel, como se cravado ao chão, e os cavalos param, imóveis, como se pregados pelas patas traseiras ao centro de uma prancha giratória. Corro sobre a poeira. Não consigo ver, correndo como estou na poeira absorvente, onde o carro desaparece, inclinado sobre as duas rodas. Bato, o pau fere o chão, ressalta, fere a poeira e, depois, sobe novamente, e a poeira absorvente corre pela estrada, mais depressa que um automóvel por ali passando. E outra vez posso chorar, olhando o pau. Está quebrado em minha mão, um pau comprido agora reduzido a um pedaço de lenha para o fogão. Atiro-o fora e posso chorar. Agora o choro não faz muito barulho. A vaca está à porta do estábulo, ruminando. Quando me vê entrar no pátio, ela muge, a boca cheia de um verde gotejante, a língua gotejando. "Não vou ordenhar você. Não quero fazer isto para eles," Ouço-a virar-se quando passo. Quando me viro, ela está bem atrás de mim, soprando seu hálito doce, quente, pesado. "Já não falei que não vou ordenhar?" Ela me empurra, resfolegando. Geme por dentro, com a boca fechada. Levanto a mão e praguejo contra ela, como Jewel faz. "Dê o fora." Abaixo a mão e corro para ela. Ela retrocede com um pulo, gira e para, observando-me. Muge. Dirige-se à vereda e para ali, olhando o alto da vereda, O estábulo está escuro, quente, cheiroso, silencioso. Posso chorar em paz, olhando o cimo da colina. Cash aparece na colina, coxeando por causa da queda que sofreu da igreja. Olha, embaixo, a nascente, depois a estrada, em cima, e embaixo, de novo, o estábulo. Desce pela vereda, rígido, olha as 'rédeas partidas e a poeira da estrada e em seguida a estrada, mais acima, onde a poeira desapareceu. "Acho que, a essa hora. passavam pela casa de Tull. É o que espero." Cash volta-se e sobe, coxeando, a vereda. "Maldito seja ele. Vou dar-lhe uma lição. Maldito seja." Não «atou chorando agora, Não sou nada. Dewey Dell aparece na colina e me chama. "Vardaman." Não sou nada. Estou tranquilo. "Venha cá, Vardaman." Agora posso chorar em paz, sentindo e ouvindo minhas lágrimas. "Então, não havia acontecido nada. Ainda não havia acontecido. Ele estava aqui, ali, estirado no chão. E agora ela se prepara para cozinhá-lo." Escureceu. Posso ouvir o bosque, o silêncio: eu os conheço. Mas os sons não são de coisa viva, nem sequer dele. É como se a escuridão o retirasse de sua integridade, espalhando seus elementos desconjuntados — sopros e ruídos de cascos; cheiros de carne fresca e de cabelo cheirando a amoníaco; a ilusão de uma totalidade coordenada com pele malhada e ossos fortes sob os quais, isolado e secreto e familiar, há um ser diferente de meu ser. Eu o vejo dissolver-se — pernas, um olho assustado, manchas escuras semelhantes a frias labaredas — e flutuar na escuridão, em caldo evanescente; nem um, nem outro; um e outro, os dois e, no entanto, nenhum deles. Posso vê-lo, ouvi-lo a recompor-se, acariciando, modelando sua rude forma — machinho, anca, espádua e cabeça; cheiro e som. Não tenho medo. "Cozido e comido. Cozido e comido." 

*

Terras duras para o homem. Muito duras. Doze quilômetros do suor de alguém, tirado da terra do Senhor, onde o mesmíssimo Senhor lhe disse para mourejar. Em parte alguma deste mundo pecador um homem honesto, trabalhador, pode tirar proveito. Os que lucram são os donos de negócios da cidade, que não suam, que vivem do suor alheio. Não os que trabalham duro, não os lavradores. Às vezes eu penso porque continuamos insistindo. É porque há uma recompensa para nós no alto, onde eles não podem levar seus automóveis e coisa que o valha. Ali, todos os homens são iguais, e Deus tomará dos que têm para dar aos que não têm. Parece, no entanto, que teremos de esperar muito por isso. Não é direito que um homem obtenha recompensa por sua boa conduta depois de virar pó e de enterrar seus mortos. Rodamos o resto do dia e chegamos, ao cair da noite, na fazenda de Samson, e vemos, então, que a ponte também desapareceu na enxurrada. Nunca se viu o rio tão cheio e a chuva não parou de cair ainda. Os velhos daqui nunca viram coisa semelhante, nem ouviram falar, que se lembrem. Sou o eleito do Senhor, pois Ele castiga as pessoas a quem ama. Mas o diabo me leve se Ele não escolheu maneiras estranhas de demonstrar amor. Mas agora posso mandar colocar os dentes. Será um conforto. Sem dúvida. 

*

Um dia nós conversávamos. Ela nunca foi muito religiosa, nem mesmo depois daquela reunião ao ar livre, no verão, quando o Irmão Whitfield lutou com seu espírito, levou-a à parte e combateu o orgulho em seu coração mortal, e eu lhe disse muitas vezes: "Deus lhe deu filhos para confortá-la em sua miséria e como penhor de Seu próprio sofrimento e amor, pois no amor você os concebeu e os trouxe à luz." Eu disse isto porque ela não tinha seu amor por Deus e seus deveres para com Ele em muita conta, e tal comportamento não lhe agrada. Eu disse: "Ele nos deu o dom de elevar nossas vozes em louvor de sua glória imortal", porque, segundo creio, há mais alegria no céu por um pecador arrependido do que por uma centena de pessoas que nunca pecaram. E eu disse: Minha vida diária é o reconhecimento e expiação de meu pecado", e frisei: "Quem é você para dizer o que é pecado é o que não é pecado? O Senhor é quem julga; compete-nos apelar à Sua misericórdia e ao Seu santo nome em benefício dos nossos Irmãos mortais", porque só ele pode ver no fundo dos corações, e embora a vida de uma mulher pareça direita aos olhos de todos, ela não tem certeza de não haver pecado em seu coração, a não ser que abra o coração ao Senhor e receba Sua graça." Eu disse: "O fato de ser fiel ao seu mando não é sinal de que não existe pecado em seu coração, e as durezas de sua vida não significam também que a graça do Senhor a esteja absolvendo." E ela disse: "Conheço meu próprio pecado. Sei que mereço castigo. Não o lamento." E eu disse: "É por orgulho que você quer julgar o pecado e a salvação em lugar do Senhor. É nosso fado mortal sofrer e elevar nossas vozes em Seu louvor, pois Ele é que julga o pecado e oferece a salvação mediante provações e atribulações, desde o princípio dos séculos amém. Não, você não pode julgar, sobretudo agora depois que o Irmão Whitfield, um santo homem que respira o hálito de Deus, orou por você e lutou como nenhum outro poderia lutar, a não ser ele", eu disse. Porque não nos compete julgar nossos pecados ou saber o que é pecado aos olhos do Senhor. Ela tem tido uma vida atormentada, mas assim é a vida das mulheres. Mas a gente pensaria, pela maneira como ela falava, que sabia mais acerca de pecado e salvação do que o próprio Deus Nosso Senhor, do que os que trabalham e lutam para tirar o pecado deste mundo dos homens. Quando o único pecado que ela cometeu foi o de ser parcial para com Jewel, que nunca a amou — e por isso foi castigada —, em prejuízo de Darl, que foi tocado pela graça de Deus e julgado esquisito por nós, mortais, e que a queria de verdade. Eu disse: "Eis o seu pecado. E também o seu castigo. Jewel é o seu castigo. Mas onde está sua salvação? E veja que a vida é muito curta para se conquistar a graça eterna. E Deus é um Deus ciumento. Ele, e não nós, é quem julga e oferece recompensa." "Eu sei", ela disse. "Eu..." E então ela parou, e eu disse: "Sabe o quê?" "Nada", ela disse. "Ele é minha cruz e será minha salvação. Ele me salvará da água e do fogo. Mesmo que eu já esteja dormindo o sono eterno, ele me salvará."

"Como é que você tem a certeza disso, sem ter aberto seu coração a Deus e erguido a voz em Seu louvor?", eu disse. Então, percebi que ela não se referia a Deus. Percebi que, levada pelo orgulho que havia em seu coração, ela falara de forma sacrílega. E eu me ajoelhei ali mesmo. Pedi-lhe para se ajoelhar também e abrir o coração e expulsar dele o demônio do orgulho e entregar-se à misericórdia do Senhor. Mas ela não quis. Continuou sentada, perdida na sua vaidade e no seu orgulho, que lhe tinham fechado o coração a Deus e posto, em Seu lugar, aquele rapaz mortal, cheio de egoísmo. Rezei por aquela pobre mulher cega como nunca tinha orado por mim e por minha família.

*

Addie

A tarde, quando a escola fechava e o último aluno saia com seu narizinho sujo, em vez de ir para casa eu descia a colina até a fonte, onde podia ficar tranquila e odiá-los. Tudo ali era tranquilo, com a água fluindo e rumorejando e o sol caindo oblíquo nas árvores e o calmo odor das folhas úmidas e meio podres e da terra nova, principalmente no início da primavera, quando, então, era pior. Eu só me lembrava, então, de como meu pai costumava dizer que a verdadeira razão de se viver era preparar-se para ficar morto durante muito tempo. E quando eu descobria que tinha de olhar para eles, dia após dia, cada um, homem e mulher, com seus segredos e egoísmos, o sangue de um alheio ao sangue de outro e diferente do meu; e pensava que aquela seria a única maneira de eu me preparar para morrer, eu odiava, então, meu pai por me haver concebido. Eu fazia tudo para apanhá-los em falta e chicoteá-los. Quando o chicote tombava, eu o sentia em minha cama; quando fazia vergões e inchava a pele, era meu sangue que corria, e eu pensava, a cada golpe do chicote: "Agora vocês têm consciência de minha pessoa. Agora eu sou alguma coisa em suas vidas secretas e egoístas, eu que marquei seus sangues com o meu, para todo o sempre." De modo que aceitei Anse. Eu o vi passar pela escola três ou quatro vezes, antes de saber que fazia uma volta de seis quilômetros para me ver. Observei, então, como ele começava a ficar encurvado, embora sendo alto e moço, de tal maneira que já parecia um pássaro grande, encolhido no inverno, assim sentado no banco da carroça. Passava pela escola, a carroça estalando vagarosamente, e a cabeça virava-se, sem pressa, para olhar a porta da escola, enquanto a carroça passava, até que ele desaparecia na curva. Um dia eu fui à porta e fiquei ali quando ele passava. Ao me ver, olhou rapidamente para ou ira direção e não voltou a olhar a escola. No início da primavera era pior. Às vezes eu pensava que não ia aguentar aquilo, deitada na' cama a noite toda, com os patos selvagens voando para o norte e seus grasnidos chegando nítidos, altos e selvagens, como se saídos da escuridão selvagem, e durante o dia era como se eu mal pudesse esperar que o último aluno saísse, a fim de descer à fonte. Assim, quando ergui os olhos, aquele dia, e vi Anse de pé, em suas roupas domingueiras, amassando o chapéu nas mãos, eu disse: "Se há mulheres em sua casa, então por que diabo não lhe dizem para cortar o cabelo?" "Não tenho nenhuma", ele disse. Em seguida, acrescentou de súbito, fixando em mim os olhos que pareciam dois cães bravios em terreiro alheio: "Foi por isso que eu vim lhe ver." "E fazer você endireitar estes ombros", eu disse. "É verdade que não tem mulher? Mas deve ter uma casa. Disseram-me que você tem casa e uma boa fazenda. E vive sozinho, fazendo tudo sozinho, não é?" Ele continuava a me olhar, girando o chapéu nas mãos. "Uma casa nova", eu disse. "Você pretende casar-se?" E ele disse outra vez, olhando-me com firmeza: "Foi para isto que eu vim lhe ver." Mais adiante, confessou: "Não tenho parentes. De forma que, por este lado, você não terá preocupações. Não creio que você possa dizer o mesmo."

"Não. Eu tenho parentes. Em Jefferson." Seu rosto emsombreceu-se um pouco. "Bem, possuo uma pequena propriedade. Sou econômico, tenho nome limpo. Sei bem como são as pessoas da cidade, mas talvez, quando me ouvirem..." "Talvez o ouçam", eu disse. "Mas dificilmente falarão com você." Ele me observava o rosto. "Estão no cemitério." "Mas seus parentes vivos", ele disse. "Com certeza serão diferentes." "Serão mesmo?", eu disse. "Não sei. Nunca tive outros parentes." 

Desse modo, aceitei Anse. E quando soube que ia ter Cash, percebi que viver era terrível e que aquilo era a resposta. Então eu soube que palavras não têm importância; que palavras nunca exprimem o que tentam dizer. Quando ele nasceu, compreendi que a palavra maternidade foi inventada por alguém que precisava de uma palavra para justificar-se, pois os que têm filhos não se preocupam em arranjar palavra para isso. Eu soube que a palavra medo foi inventada por alguém que nunca teve medo; orgulho, por alguém que jamais teve orgulho. Compreendi, então, que a culpa não era de seus narizes sujos, mas de termos de trocar palavras que, como aranhas, pendiam das bocas, por um fio, oscilantes, sem nunca se tocarem; e que, somente por meio de golpes do chicote, meu sangue e o sangue deles poderiam fluir num fluxo único. Compreendi que minha solidão em verdade nunca fora violada, até que Cash chegou . Nem mesmo por Anse, à noite. Também ele tinha uma palavra. Amor, era como ele a chamava. Só que eu estava acostumada às palavras há muito tempo. Eu sabia que aquela palavra era como as outras: apenas uma forma de preencher uma lacuna; que, quando chegasse a ocasião adequada, não precisaríamos de uma palavra para isso, a exemplo de orgulho ou medo. Cash não precisou dizer-me a palavra, nem eu a ele, e eu pensava: "Anse que a diga, então, se quiser." Seria, portanto. Anse ou amor; amor ou Anse; pouco importava. Eu assim pensava, mesmo quando deitada no escuro, ao lado dele, e Cash dormindo no berço, ao alcance de minha mão. Eu pensava, também, que se ele acordasse chorando, teria que dar-lhe de mamar. Anse ou amor: pouco importava. Minha solidão fora violada e restabelecida inteiramente pela violação: tempo, Anse, amor, tudo o que quisessem, fora do circulo. Depois descobri que estava grávida de novo, que ia ter Darl. A principio, não quis acreditar. Pensei que ia matar Anse. Foi como se ele me tivesse enganado, oculto dentro de uma palavra, como atrás de um biombo de papel, a fim de me atingir pelas costas. Mas então percebi que tinha sido enganada por palavras mais velhas que Anse ou amor, e que a mesma palavra enganara Anse também, e que minha vingança seria a de nunca deixá-lo saber que eu tirava vingança. E quando Darl nasceu, eu exigi de Anse a promessa de me levar a Jefferson quando eu morresse, porque eu sabia que meu pai tinha razão, mesmo que não soubesse que tinha razão, da mesma forma que eu podia não ter sabido que estava enganada. "Bobagem", disse Anse. "Com apenas dois filhos, você e eu ainda temos muito que fazer." Ele não sabia, então, que estava morto. As vezes, deitada junto dele, no escuro, ouvindo a terra que era agora meu sangue e minha carne, eu pensava: "Anse. Por que Anse?

Por que você é Anse?" Eu pensava em seu nome até que, dentro em pouco, eu via a palavra tomar uma forma, a de um vaso, e eu o observava liquefazer-se e escorrer, qual melado frio escorrendo na escuridão para o vaso, até que o vaso ficava cheio e imóvel: uma forma cheia de expressão, mas tão sem vida quanto a moldura de uma porta vazia; e, a essa altura, eu descobria que havia esquecido o nome do vaso. Eu pensava: a forma de meu corpo onde eu era virgem é a forma de um... e eu não podia pensar Anse, não conseguia lembrar Anse. Não, porém, que eu fosse capaz de pensar em mim como tendo recobrado a virgindade, porque, agora, eu era três. E quando pensava Cash e Darl, dessa mesma maneira, até seus nomes morrerem para se solidificarem numa forma e depois se desvanecerem, eu dizia: "Muito bem. Não importa. Não importa os nomes que lhes deem." Assim, quando Cora Tull me disse que eu não era uma mãe de verdade, pensei em como as palavras sobem retas, numa linha tênue, rápida, inofensiva, enquanto as ações rastejam, pegadas à terra, de forma que, decorrido algum tempo, as duas linhas se distanciam tanto que uma pessoa não pode mais abrangê-las com as pernas; e que o pecado, o amor e o medo não passam de sons que as pessoas que nunca pecaram, amaram ou temeram, empregam para denominar o que nunca sentiram e não poderiam sentir, até que viessem a esquecer as palavras. Como Cora, que nem mesmo aprendeu a cozinhar. Ela me falava das obrigações que eu devia a meus filhos e a Anse e a Deus. Dei a Anse os filhos. Não os pedi. Nem mesmo pedi-lhe o que ele poderia ter-me dado: o não Anse. Era minha obrigação não lhe pedir isto, e esta obrigação eu cumpri. Eu seria eu mesma; eu o deixaria ser a forma e o eco de sua palavra. Isto ultrapassava o que ele pedia, pois ele não podia pedir tal coisa e, ao mesmo tempo, ser Anse, servindo-se de si próprio por meio de uma palavra. E, então, ele morreu. Ele não soube que estava morto. Deitada ao seu lado, na escuridão, ouvindo a terra escura falar do amor de Deus e de Sua beleza e de Seu pecado; ouvindo a mudez escura em que urnas palavras são os feitos, e outras palavras não são os feitos, são apenas os espaços vazios do que falta às pessoas, descendo como. gritos de gansos saídos da escuridão selvagem nas terríveis noites de outrora, à procura de ações, como órfãos a quem são apontados, numa multidão, dois rostos, e se diz: "Este é o seu pai. Aquela é sua mãe." Acreditei que havia encontrado. Julguei que a razão era a obrigação para com a coisa viva, para com o sangue terrível, esse fluxo vermelho e amargo que borbulha pela terra. Eu pensava no pecado como pensava nas roupas que vestíamos aos olhos do mundo, por motivos de compostura, uma vez que ele era ele e eu era eu; o pecado supremo e mais terrível, pois ele era o instrumento ordenado de Deus, que havia criado o pecado, para santificar o pecado que havia criado. E enquanto eu o esperava no bosque, enquanto o esperava até que ele me via, eu o imaginava vestido de pecado. Eu pensava que ele me imaginava também vestida de pecado, só que ele estava mais bonito, porque a roupa que havia substituído pelo pecado estava santificada. Eu pensava no pecado como roupas que removíamos a fim de modelar e represar o terrível sangue segundo o eco da palavra morta perdida no ar. Depois, voltava a deitar-me ao lado de Anse — mas sem lhe mentir; apenas me recusava, tal como havia recusado o seio a Cash e a Darl após a fase da amamentação —, ouvindo o discurso inaudível da terra escura. Eu nada escondia. Não procurava enganar ninguém. Não tinha maiores preocupações.

Limitava-me às cautelas que ele julgava necessárias à sua segurança, não à minha, já que eu usava roupas aos olhos do mundo. E, quando Cora me falou, eu pendei até que ponto as mais sublimes palavras mortas parecem perder o significado de seu som morto.

Depois, tudo terminou. Acabou no sentido de que ele foi embora e eu me dei conta de que, embora ainda o quisesse, não voltaria a vê-lo, jamais, 

aproximar-se rápido e furtivo ao meu encontro, nos bosques, vestido de pecado, como se levasse um galante terno que a rapidez de sua aproximação secreta já estivesse a entreabrir. Mas, para mim, não havia acabado. Quero dizer, acabado no sentido de começo e fim, porque, para mim não havia começo e fim de coisa alguma. Continuava a repelir Anse, não que pensasse agora, pela primeira vez, em furtar-me ao seu contato, mas como se isto houvesse sempre acontecido entre nós. Meus filhos eram só meus, do sangue selvagem que ferve na terra, meus e de tudo o que está vivo; de ninguém mais e de todos. Então eu descobri que ia ter Jewel. Quando recobrei o senso para ver o que havia acontecido, estava grávida há dois meses. Meu pai disse que a razão para se viver é preparar-se para ficar morto. Eu sabia, finalmente, o que ele queria dizer, e sabia, também, que ele não poderia ter sabido o que isto significava, porque um homem não entende de limpeza da casa no devido tempo. Portanto, limpei minha casa. Depois que Jewel nasceu — deitada junto à candeia, sustentando minha própria cabeça, eu vi o módico cortar e suturar, antes da criança chorar —, o sangue selvagem espalhou-se e cessou de ferver. Restou somente o leite, quente e tranquilo, e eu, deitada no silêncio vagaroso, também tranquila, aguardava a ocasião de limpar minha casa. Dei Dewey Dell a Anse, para compensar Jewel. Depois, dei-lhe Vardaman, para substituir o filho que lhe havia roubado. E agora ele tem três filhos que são seus e não meus. E então eu posso preparar-me para morrer. Certo dia, comecei a conversar com Cora. Ela rezou por mim, porque me julgava cega em relação ao pecado. Queria que eu me ajoelhasse e rezasse também, porque, para as pessoas que julgam o pecado apenas questão de palavras, a salvação também não passa de uma palavra.

*

Às vezes eu me pergunto se alguém tem o direito de dizer se um homem está maluco ou não. Às vezes eu penso que nenhum de nós é inteiramente louco ou inteiramente são, até que a maioria nos identifica de uma ou de outra maneira. Não importa muito a maneira como um homem age, e sim a maneira como a maioria das pessoas olha-o enquanto ele age. 

(....)

Mas não sei se alguém tem o direito de dizer se um homem está louco ou não está. É como se em cada homem houvesse uma personalidade à margem da sanidade ou da loucura, uma personalidade que observasse o são e o insano no homem com o mesmo horror e a mesma estupefação.

*

 Pai tinha aquele jeito característico, a um tempo humilhado e orgulhoso, que assumia sempre ao fazer uma coisa que tinha a certeza de desgostar Mãe. Tinha uma maleta na mão, e Jewel perguntou: "O que é?". Então, vimos que não era a maleta que o fazia parecer diferente; era sua cara, e Jewel disse: "Ele mandou pôr os dentes." Era verdade. Parecia ter agora mais uns trinta centímetros de altura, mantinha a cabeça aprumada, humilhado e ao mesmo tempo orgulhoso, e então nós a vimos atrás dele, carregando a outra maleta — uma mulher com jeito de pato, toda embonecada, com olhos saltados e duros, como se desafiassem todo mundo a dizer-lhe alguma coisa. Sentados, nós os observamos; Dewey Dell e Vardaman ficaram com as bocas meio-abertas e com as bananas meio comidas nas mãos, e ela se aproximando, atrás de Pat, olhando-nos como se nos desafiasse. E então eu vi que a maleta que ela trazia era um dos pequenos gramofones, Não havia dúvida: fechado como estava, parecia tão bonito quanto um quadro, e sempre que um novo disco chegasse pelo correio e a gente se sentasse, no inverno, para ouvi-lo, eu pensaria: "Que pena Darl não estar aqui para apreciá-lo também. Mas assim é melhor para ele. Este não e o seu mundo; sua vida é outra." "Apresento-lhe Cash e Jewel e Vardaman e Dewey Dell", diz Pai, com aquele seu jeito entre humilhado e orgulhoso, de dentadura nova e todo o resto, mas sem se atrever a nos olhar de frente. "Esta é Mrs. Bundren." 


William Faulkner, Enquanto agonizo


quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Adeus às armas



Não concordo com o que dizem por aí. O que fizemos neste verão não foi inútil.
Calei-me. Eu sempre me embaraçava com as palavras sagrado, glorioso, sacrifício e inútil. Nós as
tínhamos escutado muitas vezes, de longe, debaixo da chuva, quando só as palavras mais gritadas
eram ouvidas, e as tínhamos lido em proclamas pregados nas paredes, sobre outros proclamas. Mas
não víamos nada sagrado em torno, e as coisas gloriosas não mostravam glória nenhuma. Os
sacrifícios seriam como os dos matadouros de Chicago, só que lá fazem outra coisa com a carne que,
aqui, enterramos. Havia muitas palavras que já não suportávamos — e por fim só os nomes dos
lugares tinham dignidade. Certos números, nomes e datas eram tudo o que poderíamos pronunciar
com alguma significação. Palavras abstratas, como glória, honra, coragem, sagrado, eram obscenas,
ao lado dos nomes concretos das cidades e rios, dos números dos regimentos e das datas.


Ernest Hemingway, Adeus às armas

terça-feira, 28 de junho de 2016

A Queda, capítulo 2


Minha profissão satisfazia, felizmente, essa vocação das alturas. Ela me livrava de qualquer amargura em relação ao próximo, a quem eu sempre servia, sem nunca lhe dever nada.
Ela me colocava acima do juiz, que, por minha vez, eu julgava; acima do réu, que eu obrigava ao reconhecimento. Medite bem sobre isso, meu caro senhor: eu vivia impunemente.
Nenhum julgamento me dizia respeito, não me encontrava no palco do tribunal, mas em algum lugar nas galerias, como esses deuses que, de tempos em tempos, se fazem descer por meio de um maquinismo, para transfigurar a ação e dar-lhe sentido. Afinal, viver no alto ainda é a única maneira de ser visto e saudado pela maioria das pessoas.
Aliás, alguns de meus bons criminosos tinham, ao matar, obedecido ao mesmo sentimento.
A leitura dos jornais, na triste situação em que se encontravam, trazia-lhes, sem dúvida, uma espécie de infeliz compensação. Como muitos outros homens, eles já não suportavam o anonimato, e essa impaciência os havia, em parte, levado a lastimáveis extremos.
Em suma, para alguém se tornar conhecido, basta matar a porteira. Trata-se, infelizmente, de uma reputação efêmera, tantas são as porteiras que merecem e recebem uma facada. O crime está incessantemente em cena, mas o criminoso só figura fugazmente, para logo ser substituído.
Enfim, paga-se muito caro por estes breves triunfos. Pelo contrário, defender nossos infelizes aspirantes à fama resultava em ser verdadeiramente reconhecido, ao mesmo tempo e nos mesmos lugares, mas por meios mais econômicos. Isso animava-me também a envidar apreciáveis esforços para que eles sofressem a menor pena possível: a que sofriam, sofriam-na um pouco em meu lugar. A indignação, o talento, a emoção que eu despendia livravam-me, em compensação, de qualquer dívida em relação a eles. Os juízes condenavam, os réus expiavam e eu, livre de qualquer obrigação, isento tanto de julgamento quanto de sanção, eu imperava, livremente, numa luz edênica.
Na realidade, não seria isso o Éden, meu caro senhor: a vida bem engrenada? Foi assim a minha. Nunca tive necessidade de aprender a viver. A esse respeito, já sabia de tudo ao nascer.
Há pessoas cujo problema é resguardar-se dos homens ou, pelo menos, acomodar-se a eles.
Quanto a mim, a acomodação estava feita. Familiar quando era preciso, silencioso se necessário, capaz tanto de desenvoltura quanto de gravidade, estava sempre à altura. Dessa forma, era grande minha popularidade, e meus êxitos no mundo eu nem contava mais. Fazia boa figura, revelava-me simultaneamente incansável dançarino e erudito discreto, chegava a amar ao mesmo tempo, o que não é nada fácil, as mulheres e a justiça, praticava esportes e belas-artes. Em resumo: vou parar para que não me julgue imodesto. Mas imagine, eu lhe peço, um homem na força da idade, com a saúde perfeita, generosamente dotado, hábil tanto nos exercícios do corpo quanto da inteligência, nem pobre nem rico, de sono fácil, e profundamente satisfeito consigo mesmo, sem demonstrá-la, a não ser por uma alegre sociabilidade. Admitirá, então, que eu possa falar, com toda a modéstia, de uma vida bem-sucedida.
Sim, poucos seres terão sido mais integrados à natureza do que eu. Meu entendimento com a vida era total, eu aderia ao que ela era, de alto a baixo, sem nada recusar de suas ironias, de sua grandeza, nem de suas servidões. Particularmente a carne, a matéria, em resumo, o físico, que desconcerta ou desanima tantos homens no amor ou na solidão, dava-me, sem me escravizar, alegrias iguais. Fora feito para ter um corpo. Daí essa harmonia em mim próprio, esse autocontrole sem esforço que as pessoas sentiam e que, segundo confessavam, às vezes, ajudava-as a viver. Buscavam, pois, minha companhia. Muitas vezes, por exemplo, julgavam já me ter encontrado. A vida, seus seres e seus dons vinham ao meu encontro; eu aceitava essas homenagens com orgulho benevolente. Na verdade, à força de ser homem, com tanta plenitude e simplicidade, achava-me um pouco super-homem.
Era de origem honesta, mas obscura (meu pai era militar) e, no entanto, certas manhãs, humildemente o confesso, sentia-me um filho de rei ou uma sarça ardente. Tratava-se, repare bem, de algo bem diferente da certeza em que eu vivia de ser mais inteligente do que todo mundo. Tal certeza, aliás, não tem consequência, pelo fato de ser compartilhada por tantos imbecis. Não, por estar no auge, eu me sentia, hesito em confessá-la, um eleito. Eleito pessoalmente, entre todos, para este longo e constante êxito. Nisso residia, em suma, um efeito de minha modéstia. Negava-me a atribuir este êxito unicamente a meus méritos e não conseguia acreditar que a reunião, numa só pessoa, de qualidades tão diferentes e tão opostas resultasse de mero acaso. Eis por que, vivendo feliz, eu me sentia, de certo modo, autorizado a gozar esta felicidade por algum decreto superior. Se eu lhe disser que não tinha religião alguma, você compreenderá ainda melhor o que havia de extraordinário nessa convicção.
Extraordinária ou não, ela me ergueu durante muito tempo acima do tedioso dia a dia, e fiquei planando literalmente, durante anos, dos quais, para dizer a verdade, ainda tenho saudades. Planei até a noite em que... Mas, não, isso é outro assunto que deve ser esquecido. Aliás, talvez eu esteja exagerando. Sentia-me à vontade em tudo, é bem verdade, mas, ao mesmo tempo, nada me satisfazia. Cada alegria fazia com que desejasse outra. Ia de festa em festa. Chegava a dançar noites inteiras, cada vez mais louco com os seres e com a vida. Às vezes, já bastante tarde, nessas noites em que a dança, o álcool leve, meu modo desenfreado, o violento abandono de todos me lançavam a um arrebatamento ao mesmo tempo lasso e pleno, parecia-me no extremo da exaustão e no espaço de um segundo, compreender, enfim, o segredo dos seres e do mundo. Mas o cansaço desaparecia no dia seguinte e com ele o segredo; e eu me lançava outra vez com todo ímpeto. Assim corria eu, sempre pleno, jamais saciado, sem saber onde parar, até o dia, ou melhor, até a noite em que a música parou e as luzes se apagaram. A festa em que eu fora feliz...

Albert Camus
A Queda (Capítulo 2)

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015



"Cerca de um terço do sofrimento que devo suportar é inteiramente inevitável por ser inerente à própria condição humana. Representa o preço que todos temos que pagar pelo fato de sermos dotados de sensibilidade; embora sedentos de libertação, nos sujeitamos às leis naturais que nos obrigam a continuar caminhando (sem poder retroceder) através de um mundo inteiramente indiferente ao nosso bem-estar. Caminhando em direção à decrepitude e à certeza da morte. Os outros dois terços são 'confeccionados em casa' e o Universo os considera inteiramente supérfluos".

Aldous Huxley, in: "A Ilha", 1962

domingo, 11 de janeiro de 2015

Adeus às armas - Cap. I


No final do verão daquele ano, ocupávamos uma casa, numa aldeia, de onde, além do rio e da planície, víamos as montanhas. O leito do rio era coberto de cascalho e de pedras, que ao sol pareciam secos e esbranquiçados. A água era muito límpida, ligeira e bastante azul nos pontos mais fundos. As tropas passavam pela casa, seguindo estrada abaixo, e a poeira que erguiam salpicava as folhas das árvores. Também os troncos das árvores estavam empoeirados. As folhas caíram cedo naquele ano. Víamos as tropas em marcha pela estrada, a poeira se levantando e as folhas caindo ao sopro do vento, e, depois que os soldados passavam, a estrada ficava branca e nua, exceto pelas folhas.

A planície abundava de plantações; muitos pomares com árvores frutíferas e, para além da planície, as montanhas pardas e calvas. Havia luta nas montanhas, e, à noite, podíamos enxergar os clarões da artilharia. Na escuridão, pareciam os relâmpagos do verão, mas as noites eram frias e não havia aquela sensação de uma tempestade chegando.

Às vezes, na escuridão, ouvíamos o rumor de tropas em marcha logo abaixo da janela, com os canhões puxados por tratores. Havia muito tráfego à noite e muitas mulas nas estradas com caixas de munição em ambos os flancos de suas selas, e caminhões cinzentos, cheios de homens, alguns com a carga coberta de lona, desfilando lentamente. Havia ainda grandes canhões, que passavam de dia, puxados por tratores, os longos canos camuflados de arbustos e galhos cobertos de folhas, além de videiras sobre os tratores.

Olhando para o norte, víamos, além da planície, uma floresta de castanheiros; depois, a montanha, daquele lado do rio. Também houve muita luta pela posse daqueles morros, mas sem resultado; e no outono, com a chuva, caíram todas as folhas dos castanheiros. Os galhos estavam despidos e os troncos enegrecidos pela chuva. Os vinhedos tornaram-se também varas finas e desnudas, e por toda a região pairava a tristeza da chuva e da morte, algo típico do outono.

Havia névoa sobre o rio e nuvens na montanha distante. Os caminhões chapinhavam e espirravam lama, e os soldados passavam sujos de barro e molhados, em seus capotes; os rifles estavam encharcados, e, por debaixo dos capotes, as duas patronas de couro cinzento na frente do cinturão, bastante pesadas, com os cartuchos de 6.5 mm, alongados e finos, estufavam tanto suas silhuetas, que faziam os homens em marcha parecerem grávidos de seis meses.

Pequenos automóveis cinzentos passavam ligeiros. Na maioria das vezes, havia um oficial no assento do lado do motorista e outros no assento traseiro. Os automóveis espirravam mais lama do que os caminhões; e se um dos oficiais do banco traseiro fosse muito baixo e viesse entre dois generais, mesmo sendo tão pequeno que não conseguíssemos ver seu rosto, mas apenas o quepe e suas costas estreitas, e se esse carro, ainda, estivesse correndo mais do que os outros, provavelmente este oficial seria o rei. Ele fixara-se em Udine e passava por ali quase todo dia para checar pessoalmente como andavam as coisas. E as coisas iam mal.

No início do inverno, vieram as chuvas ininterruptas, e com as chuvas chegou o cólera. Felizmente a epidemia foi combatida a tempo, e apenas sete mil soldados morreram vítimas dela.

Ernest Hemingway, Adeus às armas

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Retrato do Artista Quando Jovem (trecho)


 
Aristóteles não definiu a piedade e o terror. Eu defini. Escuta…
A PIEDADE é o sentimento que faz parar o espírito na presença de algo que seja grave e constante no sofrimento humano e o une com o sofredor humano. O TERROR é o sentimento que detém o espírito na presença de seja lá o que for que seja grave e constante no sofrimento humano e o liga à sua causa secreta.
De fato, a emoção trágica é uma face olhando para dois lados, para o terror e para a piedade, pois que ambos são faces dela.
Repara bem que emprego o termo deter, ficar parado. Quero com isso significar que a emoção trágica é estática. Ou, antes, a emoção dramática é que o é. Os sentimentos excitados pela arte imprópria são cinéticos, desejo, ou repulsa. O desejo nos compele a possuir, a ir para alguma coisa; a repulsa nos compele a abandonar, a partir duma dada coisa. As artes que o excitam, pornográficas ou didáticas, são, por conseguinte, artes impróprias. A emoção estética (sempre emprego o termo geral) é, por conseguinte, estática. O espírito fica detido e suspenso acima do desejo e da repulsa.
O desejo e a repulsa excitados por meios estéticos impudicos não são realmente emoções estéticas, não só porque são cinéticas em caráter como também porque não são senão físicas. A nossa alma contrai-se ante aquilo que teme e responde ao estímulo daquilo que deseja por uma ação puramente reflexa do sistema nervoso. Nossas pálpebras fecham-se antes que estejamos cônscios de que a mosca está a ponto de entrar no nosso olho.
A beleza expressa pelo artista não pode despertar em nós uma emoção que é cinética, ou uma sensação que é puramente física. Ela desperta ou deve despertar, ou induz, ou deve induzir, um êxtase estético, uma piedade ideal ou um terror ideal, um êxtase que perdura, que se prolonga e que acaba, por fim, dissolvido pelo que chamo de ritmo de beleza.
O ritmo é a primeira relação formal estética duma parte com outra parte, em qualquer conjunto ou todo estético, ou dum todo estético para a sua parte ou para as suas partes ou duma parte para o todo estético do qual é parte.
Falar destas coisas, tentar compreender-lhes a natureza, e, tendo-a compreendido, procurar lenta, humilde e constantemente expressar (tornar a extrair da terra bruta ou do que dela procede, do som, da forma e da cor, que são as portas da prisão de nossa alma) uma imagem da beleza que chegamos a aprender — isto é arte.
Que é a arte? Que é que a beleza exprime? A arte é a disposição humana de matéria sensível ou inteligível para um fim estético.
Santo Tomás de Aquino diz que o belo é a apreensão do que agrada. Pulcra sunt quae visa placent.
Ele emprega a palavra visa para revestir as apreensões estéticas de todas as maneiras, seja através da vista ou do ouvido, seja através de qualquer outra perspectiva de apreensão. Esta palavra, conquanto seja vaga, é clara o suficiente para discernir o que haja de bom e de mau que excite o desejo e a repulsa. Significa certamente uma estase e não uma cinese. E relativamente ao real? Também produz uma estase do espírito.
Por conseguinte, estático, Platão, creio eu, disse que a beleza é o esplendor da verdade. Não acho que isso tenha um sentido, mas a verdade e a beleza são aparentadas. A verdade é contemplada pelo intelecto que é acalmado pelas mais satisfatórias relações do inteligível; a beleza é contemplada pela imaginação que é acalmada pelas mais satisfatórias relações do sensível. O primeiro passo na direção da verdade é compreender o escopo e o encaixe do intelecto mesmo, compreender o ato mesmo de intelecção. Todo o sistema de filosofia de Aristóteles repousa no seu livro de psicologia e esta, penso eu, no seu princípio de que o mesmo atributo não pode ao mesmo tempo e com a mesma conexão pertencer e não pertencer ao mesmo objeto. O primeiro passo na direção da beleza é compreender o limite e o escopo da imaginação, compreender o ato mesmo da apreensão estética.
Embora o mesmo objeto possa não ser bonito para toda a gente, toda gente pode admirar um objeto bonito, encontrar nele certas relações que satisfaçam e coincidam com os estágios próprios mesmos de toda apreensão estética. Tais relações do sensível, visíveis para mim através duma forma e para ti através doutras, devem ser, por conseguinte, as necessárias qualidades da beleza. Já agora podemos voltar ao nosso velho amigo Santo Tomás para outros dez vinténs de sabedoria.



James Joyce, Retrato do Artista Quando Jovem

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Adeus às armas (trecho)


“If people bring so much courage to this world the world has to kill them to break them, so of course it kills them. The world breaks every one and afterward many are strong at the broken places. But those that will not break it kills. It kills the very good and the very gentle and the very brave impartially. If you are none of these you can be sure it will kill you too but there will be no special hurry.”
― Ernest Hemingway, A Farewell to Arms

“Aos que trazem coragem a este mundo, o mundo precisa quebrá-los, para conseguir eliminá-los, e é o que faz. O mundo os quebra, a todos; no entanto, muitos deles tornam-se mais fortes, justamente no ponto onde foram quebrados. Então, aos que não se deixam quebrar, o mundo os mata”. Mata os muito bons, os muito meigos, os muito bravos - indiferentemente. Se não pertenceis a nenhuma desta categoria, morrereis da mesma maneira. Mas não haverá pressa nenhuma em matar-vos"

- Ernest Hemingway, Adeus às armas

sábado, 2 de agosto de 2014



— É bastante curioso, meu amigo, mas o senhor tocou num problema que há muito tempo me preocupa: a dificuldade de comunicação precisa entre o clero e os leigos. É uma dificuldade que, ao invés de diminuir, aumenta, e que inibe mesmo a intimidade purificante do confessionário. A raiz disso, penso eu, é esta: a Igreja é uma teocracia, governada por uma casta sacerdotal, da qual o senhor e eu somos membros. Temos uma linguagem própria — uma linguagem hierática, se quiser — formal, estilizada, admiravelmente adaptada a definições legais e teológicas. Infortunadamente, também temos uma retórica própria que, como a retórica do político, diz muito e comunica pouco. Mas não somos políticos. Somos professores — professores de uma verdade que afirmamos ser essencial para a salvação do homem. Contudo, como é que a pregamos? Falamos incessantemente de fé e esperança, como se estivéssemos empregando uma forma cabalística de encantamento. Que é a fé? Um salto no escuro para as mãos de Deus. Um ato inspirado da vontade, que constitui a nossa única resposta ao terrível mistério de se saber de onde viemos e para onde vamos. "Que é a esperança? A confiança de uma criança na mão que a afastará dos terrores que avançam no escuro. Pregamos o amor e a fidelidade, como se se tratasse de assunto de mesa de chá... E não de corpos a contorcer-se numa cama e de palavras ardentes em lugares escuros, e de almas atormentadas pela solidão e levadas à comunhão momentânea de um beijo. Pregamos a caridade e a compaixão, mas raramente dizemos o que significam: mãos que lidam em meio à sujeira de quartos de doentes, que limpam o pus de feridas sifilíticas. Falamos ao povo todos os domingos, mas nossas palavras não chegam até os que nos
ouvem, pois esquecemos a nossa língua materna.

Morris West, O advogado do diabo

segunda-feira, 9 de junho de 2014

O BOM LIVRO – uma bíblia laica


O bom livro é uma versão não religiosa da bíblia, inspirada em 2.500 anos de pensamento, ciência e literatura, ocidentais e orientais. O resultado é uma obra moderna, que se aproxima das sagradas escrituras na concepção e na tendência literária, mas que se afasta delas ao abranger uma tradição humanista mais antiga e vasta, de amplo escopo cultural e geográfico.
Textos imortais de Heródoto, Lucrécio, Confúcio, Mêncio, Sêneca, Cícero, Montaigne, Bacon, entre outros, foram editados, adaptados e reescritos por A.C. Grayling de modo a reproduzirem alguns dos livros mais emblemáticos da bíblia, como Gênesis e as Epístolas. Ao modernizar e laicizar a Bíblia, o filósofo britâncio mais lido da atualidade nos desafia a responder a uma das questões centrais de sua obra; num mundo cada vez mais laico, o que significa, hoje, ser Humano?

(...) vivemos em ações, não em anos; nos pensamentos, não na respiração; e devemos contar nosso tempo pelo palpitar do coração quando amamos e ajudamos, aprendemos e lutamos, e com nossos talentos realizamos o que possa aumentar as reservas de bem do mundo.

Gênesis

Capítulo I

9. o medo  domina as pessoas quando pouco entendem e precisam de lendas e contos simplórios que consolem e expliquem;
10. mas as lendas e a ignorância que lhes dá origem são morada de limitações e trevas;
11. o conhecimento é liberdade, liberdade frente à ignorância e seu filho, o medo; o conhecimento é luz e libertação;
12. o conhecimento de que o mundo contém a si mesmo, suas origens e o intelecto do homem,
13. de onde provém mais conhecimento e a esperança de ainda mais conhecimento.
14. ousa saber: tal é o lema do esclarecimento.

Capítulo 7

1. considera também: conhecemos os perfumes variados das coisas, e no entanto nunca vemos o aroma que toca nossas narinas;
2. com olhos não vemos o calor nem o frio, e no entanto os sentimos; não vemos as vozes dos homens, e no entanto as ouvimos; tudo é corpóreo,
3. todas as coisas são matéria ou da matéria surgem; o real é o material, visível e invisível igualmente.

Capítulo 11

26. o grande mandamento da natureza é que, em centenas de milhares de formas e maneiras, os sêmens fluam em abundância e superabundância,
27. que em sua estação flutuem no mar e no ar miríades de vidas possíveis; que homens e animais na estação se acasalem com seus pares, obedientes ao desejo;
28. a primavera vê os recém-nascidos virem à luz ou piarem no ninho pedindo alimento; e ao seio da mãe o infante se amamenta,
29. prova de que nenhuma lei ou loucura humana pode alterar o rio da vida, que sempre há de avançar poderosamente,
30. procurando todos os caminhos para o futuro, sem aceitar obstáculos nem impedimentos.
31. pois seu único monarca é a natureza, seu único guia é a mão da natureza, seu único fim é o cumprimento dos grandes imperativos da natureza.

SABEDORIA

Capítulo1

14. o sábio diz do que não ouviu: “não ouvi”;
15. e do que não viu: “não vi”.
16. o sábio reconhece a verdade.

Capítulo 2

9. o sábio prefere ser o último dos melhores do que o primeiro dos piores.

Capítulo 3

10. o sábio diz que nosso defeito é criar hábitos: pois o hábito é a marca de um mundo estereotipado,
11. e é apenas a imprecisão dos olhos que faz duas coisas parecerem iguais.
20. a filosofia pode nos ajudar a colher o que, não fora ela, poderia passar despercebido, pois a filosofia é o microscópio do pensamento;

Capítlo 11

14. passou por ti? Não detenha.

Capítulo 12

4. És ator num drama cujo autor és tu, mas também o são os assuntos além do teu controle.
11. lembra que o insulto vem não daquele que emprega palavras ruins ou desfere um soco, mas do princípio que representa tais coisas como insultuosas.
12. quando, portanto, alguém te provocar, certifica-te de que é tua própria opinião que te provoca.
13. tenta, portanto, em primeiro lugar, não te deixares levar pela aparência. Pois se ganhares tempo e postergares, mais facilmente terás comando sobre ti mesmo.



O BOM LIVRO – uma bíblia laica – A.C. Grayling, tradução Denise Bottmann, Editora objetiva, Rio de janeiro, 2011