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sexta-feira, 5 de abril de 2024


 Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

ai, palavras, ai, palavras,

sois de vento, ides no vento,

no vento que não retorna,

e, em tão rápida existência,

tudo se forma e transforma!


Sois de vento, ides no vento,

e quedais, com sorte nova!


Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

todo o sentido da vida

principia à vossa porta;

o mel do amor cristaliza

seu perfume em vossa rosa;

sois o sonho e sois a audácia,

calúnia, fúria, derrota…


A liberdade das almas,

ai! com letras se elabora…

E dos venenos humanos

sois a mais fina retorta:

frágil, frágil como o vidro

e mais que o aço poderosa!

Reis, impérios, povos, tempos,

pelo vosso impulso rodam…


Detrás de grossas paredes,

de leve, quem vos desfolha?

Pareceis de tênue seda,

sem peso de ação nem de hora…


e estais no bico das penas,

e estais na tinta que as molha,

e estais nas mãos dos juizes,

e sois o ferro que arrocha,

e sois barco para o exílio,

e sois Moçambique e Angola!

Ai, palavras, ai, palavras,

íeis pela estrada afora,

erguendo asas muito incertas,

entre verdade e galhofa,

desejos do tempo inquieto,

promessas que o mundo sopra…


Ai, palavras, ai, palavras,

mirai-vos: que sois, agora?


Acusações, sentinelas,

bacamarte, algema, escolta;

o olho ardente da perfídia,

a velar, na noite morta;

a umidade dos presídios,

a solidão pavorosa;

duro ferro de perguntas,

com sangue em cada resposta;

e a sentença que caminha,

e a esperança que não volta,

e o coração que vacila,

e o castigo que galopa…

Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

Perdão podíeis ter sido!


sois madeira que se corta,

sois vinte degraus de escada,

sois um pedaço de corda…

sois povo pelas janelas,

cortejo, bandeiras, tropa…

Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

Éreis um sopro na aragem…


sois um homem que se enforca!


Cecília Meireles, Romance das Palavras Aéreas

sábado, 26 de agosto de 2023

Reinvenção

 


A vida só é possível

reinventada.


Anda o sol pelas campinas

e passeia a mão dourada

pelas águas, pelas folhas...

Ah! tudo bolhas

que vem de fundas piscinas

de ilusionismo... - mais nada.


Mas a vida, a vida, a vida,

a vida só é possível

reinventada.


Vem a lua, vem, retira

as algemas dos meus braços.

Projeto-me por espaços

cheios da tua Figura.

Tudo mentira! Mentira

da lua, na noite escura.


Não te encontro, não te alcanço...

Só - no tempo equilibrada,

desprendo-me do balanço

que além do tempo me leva.

Só - na treva,

fico: recebida e dada.


Porque a vida, a vida, a vida,

a vida só é possível

reinventada.


Cecília Meireles

Biografia




Escreverás meu nome com todas as letras,

com todas as datas,

e não serei eu.


Repetirás o que ouviste,

o que leste de mim, e mostrarás meu retrato,

e nada disso serei eu.


Dirás coisas imaginárias,

invenções sutis, engenhosas teorias,

e continuarei ausente.


Somos uma difícil unidade,

de muitos instantes mínimos,

isso seria eu.


Mil fragmentos somos, em jogo misterioso,

aproximamo-nos e afastamo-nos, eternamente.

Como me poderão encontrar?


Novos e antigos todos os dias,

transparentes e opacos, segundo o giro da luz,

nós mesmos nos procuramos.


E por entre as circunstâncias fluímos,

leves e livres como a cascata pelas pedras.

Que mortal nos poderia prender?


Cecília Meireles

domingo, 9 de julho de 2023

 


Assim se forjam palavras,

assim se engendram culpados;

assim se traça o roteiro

de exilados e enforcados:

a língua a bater nos dentes...

Grandes medos mastigados...


O medo nos incisivos,

nos caninos, nos molares;

o medo a tremer nos queixos,

a descer aos calcanhares;

o medo a abalar a terra;

o medo a toldar os ares;


o medo a entregar amigos

à sanha dos potentados;

a fazer das testemunhas

algozes dos acusados;

a comprar os ouvidores,

os escrivães e os soldados...


Cecília Meireles

domingo, 6 de novembro de 2022

Realização da vida

 

Alessandro-Granata


Não me peças que cante,

pois ando longe,

pois ando agora

muito esquecida.

Vou mirando no bosque

o arroio claro

e a provisória

flor escondida.

E procuro minha alma

e o corpo, mesmo,

e a voz outrora

em mim sentida.

E me vejo somente

pequena sombra

sem tempo e nome,

nisto perdida,

– nisto que se buscara

pelas estrelas,

com febre e lágrimas,

e que era a vida.


Cecília Meireles: "Realização da vida"

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Onda

 




Quem falou de primavera

sem ter visto o teu sorriso,

falou sem saber o que era.


Pus o meu lábio indeciso

na concha verde e espumosa

modelada ao vento liso:


tinha frescuras de rosa,

aroma de viagem clara

e um som de prata gloriosa.


Mas desfez-se em coisa rara:

pérolas de sal tão finas

- nem a areia as igualara!


Tenho no meu lábio as ruínas

de arquiteturas de espuma

com paredes cristalinas...


Voltei aos campos de bruma,

onde as árvores perdidas

não prometem sombra alguma.


As coisas acontecidas,

mesmo longe, ficam perto

para sempre e em muitas vidas:


mas quem falou de deserto

sem nunca ver os meus olhos...

- falou, mas não estava certo.


Cecília Meireles

quarta-feira, 20 de abril de 2022

ROMANCE LIII ou DAS PALAVRAS AÉREAS



 Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

ai, palavras, ai, palavras,

sois de vento, ides no vento,

no vento que não retorna,

e, em tão rápida existência,

tudo se forma e transforma!

Sois de vento, ides no vento,

e quedais, com sorte nova!


Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

Todo o sentido da vida

principia à vossa porta;

o mel do amor cristaliza

seu perfume em vossa rosa;

sois o sonho e sois a audácia,

calúnia, fúria, derrota...


A liberdade das almas,

ai! com letras se elabora...

E dos venenos humanos

sois a mais fina retorta:

frágil, frágil como o vidro

e mais que o aço poderosa!

Reis, impérios, povos, tempos,

pelo vosso impulso rodam...


Detrás de grossas paredes,

de leve, quem vos desfolha?

Pareceis de tênue seda,

sem peso de ação nem de hora...

— e estais no bico das penas,

    e estais na tinta que as molha,

    e estais nas mãos dos juízes,

    e sois o ferro que arrocha,

    e sois barco para o exílio,

    e sois Moçambique e Angola!


Ai, palavras, ai, palavras,

íeis pela estrada afora,

erguendo asas muito incertas,

entre verdade e galhofa,

desejos do tempo inquieto,

promessas que o mundo sopra...


Ai, palavras, ai, palavras,

mirai-vos: que sois, agora?


— Acusações, sentinelas,

bacamarte, algema, escolta;

— o olho ardente da perfídia,

a velar, na noite morta;

— a umidade dos presídios,

— a solidão pavorosa;

— duro ferro de perguntas,

com sangue em cada resposta;

— e a sentença que caminha,

— e a esperança que não volta,

— e o coração que vacila,

— e o castigo que galopa...


Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

Perdão podíeis ter sido!

— sois madeira que se corta,

— sois vinte degraus de escada,

— sois um pedaço de corda...

— sois povo pelas janelas,

cortejo, bandeiras, tropa...


Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

Éreis um sopro na aragem...

— sois um homem que se enforca!


Cecília Meireles

domingo, 9 de janeiro de 2022

Recado aos amigos distantes



Meus companheiros amados,

não vos espero nem chamo:

porque vou para outros lados.

Mas é certo que vos amo.


Nem sempre os que estão mais perto

fazem melhor companhia.

Mesmo com sol encoberto,

todos sabem quando é dia.


Pelo vosso campo imenso,

vou cortando meus atalhos.

Por vosso amor é que penso

e me dou tantos trabalhos.


Não condeneis, por enquanto,

minha rebelde maneira.

Para libertar-me tanto,

fico vossa prisioneira.


Por mais que longe pareça,

ides na minha lembrança,

ides na minha cabeça,

valeis a minha Esperança.


- Cecília Meireles, do livro "Poemas" 1951.

Cânticos



IV 


Adormece o teu corpo com a música da vida. 

Encanta-te. 

Esquece-te. 

Tem por volúpia a dispersão. 

Não queiras ser tu. 

Quere ser a alma infinita de tudo. 

Troca o teu curto sonho humano 

Pelo sonho imortal. 

O único. 

Vence a miséria de ter medo. 

Troca-te pelo Desconhecido. 

Não vês, então, que ele é maior? 

Não vês que ele não tem fim? 

Não vês que ele és tu mesmo? 

Tu que andas esquecido de ti? 


Cecília Meireles


Pedido da rosa sábia

Konstantin Razumov 


Olha-me só este instante,

só este instante:

minha linguagem é este aroma,

esta cor, esta veludosa escultura.


Falo-te de mim porque não me fiz:

apareci.


É só por um minuto.

Eu sou a tua imagem reduzida

em tempo e dimensão.


Antes de me entenderes

terei desaparecido:

e não pelo ar ou pelo chão, somente.


domingo, 2 de janeiro de 2022



 Tu tens um medo

Acabar. 

Não vês que acabas todo o dia. 

Que morres no amor. 

Na tristeza. 

Na dúvida. 

No desejo. 

Que te renovas todo dia. 

No amor. 

Na tristeza 

Na dúvida. 

No desejo. 

Que és sempre outro. 

Que és sempre o mesmo. 

Que morrerás por idades imensas. 

Até não teres medo de morrer. 

E então serás eterno.


Cecília Meireles


terça-feira, 21 de setembro de 2021

daniel gerhartz


 Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

ai, palavras, ai, palavras,

sois de vento, ides no vento,

no vento que não retorna,

e, em tão rápida existência,

tudo se forma e transforma!


Sois de vento, ides no vento,

e quedais, com sorte nova!


Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

todo o sentido da vida

principia à vossa porta;

o mel do amor cristaliza

seu perfume em vossa rosa;

sois o sonho e sois a audácia,

calúnia, fúria, derrota…


A liberdade das almas,

ai! com letras se elabora…

E dos venenos humanos

sois a mais fina retorta:

frágil, frágil como o vidro

e mais que o aço poderosa!

Reis, impérios, povos, tempos,

pelo vosso impulso rodam…


Detrás de grossas paredes,

de leve, quem vos desfolha?

Pareceis de tênue seda,

sem peso de ação nem de hora…


e estais no bico das penas,

e estais na tinta que as molha,

e estais nas mãos dos juízes,

e sois o ferro que arrocha,

e sois barco para o exílio,

e sois Moçambique e Angola!

Ai, palavras, ai, palavras,

íeis pela estrada afora,

erguendo asas muito incertas,

entre verdade e galhofa,

desejos do tempo inquieto,

promessas que o mundo sopra…


Ai, palavras, ai, palavras,

mirai-vos: que sois, agora?


Acusações, sentinelas,

bacamarte, algema, escolta;

o olho ardente da perfídia,

a velar, na noite morta;

a umidade dos presídios,

a solidão pavorosa;

duro ferro de perguntas,

com sangue em cada resposta;

e a sentença que caminha,

e a esperança que não volta,

e o coração que vacila,

e o castigo que galopa…

Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

Perdão podíeis ter sido!


sois madeira que se corta,

sois vinte degraus de escada,

sois um pedaço de corda…

sois povo pelas janelas,

cortejo, bandeiras, tropa…

Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

Éreis um sopro na aragem…


sois um homem que se enforca!


Cecília Meireles, Romance das Palavras Aéreas

domingo, 15 de agosto de 2021

 

Ocean Breeze, de Paul Milner


Não faças de ti

Um sonho a realizar.

Vai.

Sem caminho marcado.

Tu és o de todos os caminhos.

Sê apenas uma presença.

Invisível presença silenciosa.

Todas as coisas esperam a luz,

Sem dizerem que a esperam.

Sem saberem que existe.

Todas as coisas esperarão por ti,

Sem te falarem.

Sem lhes falares.


Cecília Meireles

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Amém


arthur bragisnski

Hoje acabou-se-me a palavra,
e nenhuma lágrima vem.
Ai, se a vida se me acabara
também!

A profusão do mundo, imensa,
tem tudo, tudo – e nada tem.
Onde repousar a cabeça?
No além?

Fala-se com os homens, com os santos,
consigo, com Deus. . . E ninguém 
entende o que se está contando
e a quem. . .

Mas terra e sol, luas e estrelas
giram de tal maneira bem
que a alma desanima de queixas.
Amém. 


Cecília Meireles
In: Vaga Música

domingo, 13 de agosto de 2017

Epitáfio de navegadora




Se te perguntarem quem era
essa que às areias e gelos
quis ensinar a primavera;

e que perdeu seus olhos pelos
mares sem deuses desta vida,
sabendo que, de assim perdê-los,

ficaria também perdida;
e que em algas e espumas presa
deixou sua alma agradecida;

essa que sofreu de beleza
e nunca desejou mais nada;
que nunca teve uma surpresa

em sua face iluminada,
dize: "Eu não pude conhecê-la,
sua história está mal contada,

mas seu nome, de barca e estrela,
foi: "SERENA DESESPERADA".


Cecília Meireles
in Vaga Música

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Personagem

emile vernon

Teu nome é quase indiferente
e nem teu rosto mais me inquieta.
A arte de amar é exatamente
a de se ser poeta.

Para pensar em ti, me basta
o próprio amor que por ti sinto:
és a ideia, serena e casta,
nutrida do enigma do instinto.

O lugar da tua presença
é um deserto, entre variedades:
mas nesse deserto é que pensa
o olhar de todas as saudades.

Meus sonhos viajam rumos tristes
e, no seu profundo universo,
tu, sem forma e sem nome, existes,
silêncio, obscuro, disperso.

Teu corpo, e teu rosto, e teu nome,
teu coração, tua existência,
tudo – o espaço evita e consome:
e eu só conheço a tua ausência.

Eu só conheço o que não vejo.
E, nesse abismo do meu sonho,
alheia a todo outro desejo,
me decomponho e recomponho.

Cecília Meireles

domingo, 1 de novembro de 2015

vinho


A taça foi brilhante e rara,
mas o vinho de que bebi
com os meus olhos postos em ti,
era de total amargura.

Desde essa hora antiga e preclara,
insensivelmente desci
e em meu pensamento senti
o desgosto de ser criatura.

Eu sou de essência etérea e clara:
no entanto, desde que te vi,
como que desapareci...
Rondo triste à minha procura.

A taça foi brilhante e rara;
mas, com certeza enlouqueci.
E desse vinho que bebi
se originou minha loucura.


Cecília Meireles
Viagem, 1938



Mariska Karto


Moro no ventre da noite:
sou a jamais nascida.
E a cada instante aguardo vida.

As estrelas, mais o negrume
são minhas faixas tutelares,
e as areias e o sal dos mares.

Ser tão completa e estar tão longe!
Sem nome e sem família cresço,
e sem rosto me reconheço.

Profunda é a noite onde moro.
Dá no que tanto se procura.

Mas intransitável, e escura.

Estarei um tempo divino
como árvore em quieta semente,
dobrada na noite, e dormente.

Até que de algum lado venha
a anunciação do meu segredo
desentranhar-me deste enredo,

Arrancar-me á vagueza imensa,
consolar-me deste abandono,
mudar-me a posição do sono.

Ah, causador dos meus olhos,
que paisagem cria ou pensa
para mim, a noite densa?


Cecília Meireles
In Mar absoluto e Outros Poemas

domingo, 11 de janeiro de 2015

Desenho

 
Joanna Zjawinska.


Árvore da noite
Com ramos azuis
Até o horizonte.

Estendi meus braços,
E apenas achei
Nevoeiros esparsos.

O resto era sonhos
No profundo fim
Da vida e da noite.

A memória em pranto
Os ramos azuis
Fica procurando

E de olhos fechados
Vejo longe, sós,
Meus alados braços.

Ó noite, azul, árvore ...
Suspiro a subir
Muro de saudade!

Cecília Meireles
In Retrato Natural

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Apontamento

Bellarmine Miranda


Ó noite, ó noite, ó noite!
Luar e primavera
e os telhados cobrindo
sonhos que a vida gera!


Subo por essas horas
solitária e sincera,
e encontro, exausta e pura,
minha alma que me espera.


Cecília Meireles
In: Poesia Completa