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domingo, 3 de fevereiro de 2013

Jack Kerouac, Viajante Solitário


O vagabundo possui dois relógios que não se podem comprar na Tiffany’s, em um pulso o sol, no outro a lua, as mãos são feitas de céu.

Escuta! Escuta! Os cães ladram
Os mendigos estão chegando na cidade;
Uns esfarrapados, outros em trapos
E alguns em becas de veludo

A Era do Jato crucifica o vagabundo, como pode ele saltar em um cargueiro a jato? Será que Louella Parsons é simpática para com os vagabundos? Henry Miller permitiria que os vagabundos nadassem em sua piscina. – E Shirley Tempole, para quem o vagabundo deu o Pássaro Azul? Será que as jovens Temples não possuem mais pássaros azuis?
Hoje em dia o vagabundo precisa se esconder, e há cada vez menos lugares para isso, os tiras estão à sua procura, chamando todos os carros, chamando todos os carros, vagabundos avistados nas imediações de Bird-in-Hand – Jean Valjean curvado sob o peso do saco de candelabros, gritanto para a a rapaziada, “Está aqui a alma de vocês, a alma de vocês!”. Beethoven era um vagabundo que se ajoelhava e escutava a luz, um vagabundo surdo que não podia ouvir as lamúrias dos outros vagabundos. – Einstein, o vagabundo com o suéter roto de gola alta de lã de ovelha; Bernard Baruch, o vagabundo desiludido sentado em um banco de parque esperando John Henry, esperando alguém muito louco, esperando o épico persa.
Sergei Esenin fou um grande vagabundo que se aproveitou da revolução russa para cair fora e beber “suco de batata” pelas aldeias atrasadas da Rússia (seu poema mais famoso se chama Confissões de um vadio), no momento em que estavam derrubando o czar, ele declarou: “neste exato momento estou com vontade de mijar ao luar pela janela”. É o vagabundo sem ego que algum dia dará à luz uma criança. – Li Po foi um vagabundo poderoso. – O ego é o maior dos vagabundos – viva o ego vagabundo! Cujo monumento algum dia será uma caneca de café de folha-de-flandres dourada.
Jesus era um estranho vagabundo que caminhava sobre a água.
Buda também foi vagabundo que não prestava atenção nos outros vagabundos.
O chefe Rain-In-The-Face* (literalmente, chuva-no-rosto), mais estranho ainda. –
W.C. Fields – seu nariz vermelho explica o significado do mundo triplo, Grande Veículo, Veículo Menos, Veículo de Diamante.

O VAGABUNDO NASCE DO ORGULHO, não tem nada a ver com uma comunidade, mas consigo próprio e com os outros vagabundos e talvez com um cão. – Vagabundos pelos aterros da linha férrea  à noite fervendo imensas canecas de café. – Altiva era a maneira como o vagabundo cruzava por  uma cidade, entrando pelas portas dos fundos, onde tortas esfriavam nos parapeitos das janelas, o vagabundo era um leproso mental, não precisava esmolar para comer, donas-de-casa possantes e ossudas do Oeste conheciam sua barba tilitante e sua toga esfarrapada, venha e pegue! Mas orgulho é orgulho, ainda assim, às vezes havia algum aborrecimento quando ela anunciava venha e pegue, e hordas de vagabundos surgiam, dez ou vinte de uma só vez, e ficava um bocado difícil alimentar todos eles; às vezes os vagabundos não tinham consideração, mas não sempre, só que, quando isso acontecia, eles perdiam o orgulho, se tornavam vadios – migravam para a Bowery em Nova York, para a Scollay Square em Boston, para a Pratt Street em Baltimore, para a Madison Street em Chicago, para a 12th Street em Kansas City, para a Larimer Street em Denver, para a South Main Street em Los Angeles, para a Third Street no centro de San Francisco, para a Skid Road em Seatle (todas elas “areas pestilentas”).
(...)
Os vagabundos da América que ainda conseguem viajar de maneira saudável e mantêm em boa forma, podem se esconder em cemitérios e beber vinho em bosques de árvores fúnebres e mijar e dormir em cima de pedaços de papelão e quebrar garrafas nas tumbas e não dar a menor bola nem se aterrorizar com os mortos, conseguem se manter sérios e bem-humorados na noite vasculhada por policiais e até se divertir deixando restos de seu piquenique entre as lajes cinzentas da Morte Imaginada, amaldiçoando o que julgam ser dias duros, mas Oh, o pobre vagabundo dos bairros sórdidos! Lá está ele dormindo em uma soleira, com as costas contra a parede, a cabeça caída, com a palma da mão direita para cima, como se esperando receber algo da noite, e a outra mão pendente, forte, firme, como as mãos de Joe Louis, patético, tornado trágico por circunstâncias inevitáveis – a mão como a de um mendigo, suspensa no ar como os dedos formando uma sugestão que revela o que ele deseja e merece receber, moldando o gesto da esmola, o polegar quase tocando na ponta dos dedos, como se na ponta da língua ele estivesse prestes a dizer dormindo e com esse gesto o que não pode dizer acordado: Por que me tiraram isso, por que não posso respirar na paz e suavidade da minha própria cama e sou obrigado a esperar aqui, nesses trapos anônimos e repugnantes, nesse portal humilhante, sentado à espera de que as rodas da cidade se movimentem?”, e mais: “Não quero estender minha mão, mas durante o sono estou desamparado, não posso endireitá-la, aproveitem a oportunidade para ver minha súplica, estou sozinho, estou doente, estou morrendo – vejam minha mão virada, desvendem o segredo de meu coração humano, me dêem o que preciso, me dêem a mão, me levem para as montanhas de esmeralda além da cidadade, me conduzam a um lugar seguro, sejam bondosos, bacanas, sorriam – estou estou cansado demais de todo o resto, estou farto, desisto, entrego os pontos, quero ir para casa, me leve para casa, Oh irmãos da noite – me leve para casa, me tranque em segurança, me levae para onde tudo seja paz e amizade, para a vida familiar, minha mãe, meu pai, minha irmã, minha mulher e você meu irmão, você meu amigo – mas não há esperança, nenhuma esperança, nenhuma esperança, eu acordo e seria capaz de dar um milhão de dólares para estar na minha própria cama – Oh Senhor, salve-me!”. Em estradas perversas, atrás de tanques de gasolina onde cães assassinos rosnam por trás de cercas de aramae farpado, viaturas policiais surgem subitamente como carros em fuga de um crime mais secreto, mais nocivo do que as palavras possas exprimir.
As florestas estão cheias de guardas.


Jack Kerouac, Viajante Solitário

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Jack Kerouac, On the road




(...)
Assim, na América, quando o sol se põe e eu sento no velho e arruinado cais do rio olhando os longos, longos céus acima de Nova Jersey, e posso sentir toda aquela terra rude se derramando numa única, inacreditável e elevada vastidão até a Costa Oeste, e toda aquela estrada seguindo em frente, todas as pessoas sonhando nessa imensidão, e em Iowa eu sei que agora as crianças devem estar chorando na terra onde deixam as crianças chorar, e essa noite as estrelas vão aparecer, e você não sabe que Deus é a Ursa Maior? E a estrela do entardecer deve estar morrendo e irradiando sua pálida cintilância sobre a pradaria antes da chegada da noite completa que abençoa a terra, escurece todos os rios, recobre os picos e oculta a última praia e ninguém, ninguém sabe o que vai acontecer a qualquer pessoa, além dos desamparados andrajos da velhice, eu penso em Dean Moriarty; penso até no velho Dean Moriarty, o pai que jamais encontramos; eu penso em Dean Moriarty.


Jack Kerouac, On the road

domingo, 23 de dezembro de 2012




(...) A minha vida é uma lenda vasta e insana e imensa sem começo nem fim, que nem o Vazio – que nem o Samsara – Mil lembranças retornam como tiques o dia inteiro perturbando a minha mente ativa com espasmos quase musculares de vividez e recordações – Cantando Loch Lomond com um sotaque fajuto de inglês enquanto eu aqueço o meu café no crepúsculo frio e cor-de-rosa.

Jack Kerouac, Anjos da desolação

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Jack Kerouac, Anjos da desolação

(...)

Hozomeen, Hozomeen, mais bela montanha que eu já vi, como um tigre às vezes listrado, riachos banhados em sol e escarpas ensombrecidas que rabiscam linhas sinuosas à Luz do Dia, sulcos verticais e elevações e rachaduras Bu!, bum, magnífica montanha Prudente, ninguém nunca ouviu falar a respeito, e ela só tem 2.400 metros de altura, mas que horror quando eu vi aquele vazio pela primeira vez na primeira noite da minha estada no Desolation Peak acordando de nevoeiros densos de 20 horas para uma noite salpicada de estrelas assomada pelo Hozomeen com os dois pontos agudos dele, bem no preto da minha janela – o Vazio, toda vez que eu pensava no Vazio eu via o Hozomeen e entendia – por mais de 70 dias eu tive que olhar para ele.

É, porque eu pensei, em junho, que eu pegaria carona até o alto e chegaria no Skagit Valley no noroeste de Washington para o meu trabalho de vigia de incêndio “Quando eu chegar no topo do Desolation Peak e todo mundo for embora de mula e eu ficar sozinho eu vou ficar cara a cara com Deus ou Tathagata e descobrir de uma vez por todas qual é o significado de toda essa existência todo esse sofrimento e de todo esse vaivém inútil” mas em vez disso eu fiquei cara a cara comigo mesmo, sem álcool, sem drogas, sem nenhuma chance de fingir... mas cara a cara comigo Odioso Duluoz e muitas vezes eu pensei em morrer, suspirar de tédio ou pular da montanha, mas os dias, não as horas se arrastavam e eu não tinha coragem para um salto desses, eu tinha que esperar e ver a cara da realidade – e até que enfim ela apareceu naquela tarde de 8 de agosto enquanto eu estava zanzando nas alturas do jardim alpino na estradinha amarela que eu tanto havia pisoteado, com a minha lamparina a óleo inclinada quase até o chão dentro da cabana com janelas para todos os lados e um telhado de pagode e para-raios, enfim apareceu para mim, depois até das lágrimas, do ranger de dentes, e do assassinato de um rato e da tentativa de homicídio de um outro, algo que eu nunca tinha feito na minha vida (matar animais mesmo roedores), e veio nessas palavras: O vazio não é afetado por altos e baixos, meu Deus olha só para o Hozomeen, por acaso ele está preocupado ou chorando? Por acaso ele se curva diante das tempestades ou rosna quando o sol brilha ou suspira na sonolência do dia que acaba? Por acaso ele sorri? Ele não nasceu de tumultos pirados e chuvas de fogo e agora não é o Hozomeen e nada mais? Por que eu deveria ser doce ou amargo se ele não é nenhum dos dois? – Por que eu não posso ser como o Hozomeen e ó clichê ó velho clichê grisalho da mente burguesa “aceite a vida como ela é” –
Foi aquele biógrafo alcoólatra, W. E. Woodward, que disse, “Não há nada na vida afora o viver” – Mas Deus, como estou de saco cheio! Mas o Hozomeen também está de saco cheio? E eu estou de saco cheio de palavras e de explicações. O Hozomeen também?


Aurora boreal
no Hozomeen –
O vazio silencia

(...)


– Minha canção devoradora a parte descarrilhada levando tudo numa broa – parta você também pode voar e verdejar – céu lua sal arrancado nas marés da noite chega mais, balança no ombro gramado, rola a pedra do Buda por cima do celeiro enevoado rosa dividido do Pacífico – Ó pobre pobre pobre esperança humana, ó mofado quebrando a ti espelho a ti sacudiu patna watalaka – e muito mais – Ping.


Jack Kerouac, Anjos da desolação
Tradução de Guilherme da Silva Braga

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012




"– Aguenta aí, Jack, segue adiante, e tudo é um sonho, uma ilusão, um clarão, um olhar triste, um mistério lúcido de cristal, uma palavra – Segura firme, cara, recupera o teu amor pela vida e desce dessa montanha para simplesmente ser – ser – ser a fertilidade infinita da mente da infinitude, sem comentários, reclamações, críticas, julgamentos, juras, ditados, estrelas cadentes do pensamento, é só deixar fluir, agora, seja você mesmo, seja você o que você é, isso é tudo o que sempre é – A Esperança é uma palavra que nem um monte de neve – Essa é a Grande Sabedoria, esse é o Despertar, esse é o Vazio – Então cala a boca, vive, viaja, te aventura, abençoa e não te arrepende – Ameixas, ameixas, come as tuas ameixas – E você tem existido para sempre, e vai existir para sempre, e todas as pancadas do teu pé cansado nas portas inocentes do armário foram apenas o Vazio fingindo ser um homem que fingia não conhecer o Vazio –
Voltei para casa um novo homem.
Tudo o que eu preciso fazer é esperar 30 longos dias para descer da rocha e mais uma vez viver a doce vida – sabendo que ela nunca é doce nem amarga mas apenas do jeito que é, e é assim mesmo – "


Jack Kerouac, Anjos Desolados

domingo, 9 de dezembro de 2012

Jack Kerouac, Anjos da Desolação

Parte um - A desolação solitária

(..)Argh, e eu lembro dos doces dias em casa que eu não apreciei enquanto eu podia – naquela época, quando eu tinha 15, 16 anos, tarde era sinônimo de biscoitos Ritz Brothers e creme de amendoim e leite, na velha mesa redonda na cozinha, e os meus problemas de xadrez ou partidas de beisebol autoinventadas, já que o sol alaranjado de Lowell em outubro caía oblíquo pela varanda e pelas cortinas da cozinha e desenhava um retângulo preguiçoso cheio de poeira e nele o meu gato ficava lambendo as patas com uma língua de tigre e dentes de agulha, todo sofrido e acometido pelo pó, meu Deus – então agora com as minhas roupas sujas e rasgadas eu sou um mendigo na Cordilheira das Cascatas e tudo o que eu tenho em termos de cozinha é esse fogão doido e surrado com rachaduras de ferrugem na chaminé – sim, com aniagem velha enfiada entre o cano e o teto para manter os ratos longe à noite – dias longínquos quando eu podia simplesmente ir e dar um beijo ou na minha mãe ou no meu pai e dizer “Eu gosto de você porque um dia eu vou ser um velho mendigo desolado e vou acabar sozinho e triste” – Ó Hozomeen, as rochas cintilam no sol poente, os parapeitos da fortaleza impenetrável erguem-se como Shakespeare no mundo e por quilômetros ao redor nada conhece o nome de Shakespeare, do Hozomeen ou o meu –

Fim da tarde há muito tempo em casa, e até em tempos mais recentes na Carolina do Norte quando, para lembrar da infância, comi biscoitos Ritz e creme de amendoim e tomei leite às quatro, e joguei o jogo de beisebol na minha escrivaninha, e tinha escolares com sapatos riscados indo para casa que nem eu, esfomeados (e eu faria para eles Bananasplits especiais do Jack, só seis míseros meses atrás) – Mas aqui no Desolation o vento rodopia, desolado de 39 música, chacoalhando as vigas do teto, progenitando a noite – As sombras morceguísticas gigantes das nuvens pairam acima da montanha.

Logo o escuro, logo os pratos limpos, a refeição comida, esperando por setembro, esperando pela descida de retorno ao mundo.

**

Enquanto isso os pores do sol são bobos loucos cor de laranja surtando na escuridão, e ao longe no Sul em direção aos pretendidos braços amáveis de señoritas, pilhas rosadas de neve esperam aos pés do mundo, em cidades com raios de prata generalizados – o lago é uma panela dura, cinza, azul, esperando nas profundezas enevoadas para quando eu andar no bote de Phil – A Jack Mountain como sempre recebe o galardão da nuvenzinha na base metida, com mil campos de futebol americano nevados e confusos e rosados, aquele abominável homem de neve inimaginável petrificado de cócoras na serra – O Golden Horn ao longe ainda está dourado no Sudeste cinza – A silhueta monstruosa da Sourdough sobranceia o lago – Nuvens mal-humoradas escurecem para fazer bordas de fogo na forja onde a noite é martelada, montanhas enlouquecidas marcham em direção ao pôr do sol como cavalheiros bêbados em Messina quando Ursula era bela, eu poderia jurar que o Hozomeen ia se mexer se a gente desse um jeito de convencer ele mas ele passa a noite comigo e logo quando as estrelas choverem nos campos nevados ele vai estar rosa de orgulho e todo preto e destrumbicado ao Norte onde (logo acima dele toda noite) a Estrela Polar reluz em tons de laranja-pastel, verde-pastel, laranja-férreo, azul-férreo, com a azurita indicando augúrios constelativos da maquiagem dela que você poderia pesar na balança do mundo dourado –

O vento, o vento –

E lá está a minha pobre escrivaninha humana esforçada onde eu passo tanto tempo sentado durante o dia, virado para o Sul, os papéis e os lápis e a xícara de café com galhinhos de abeto alpino e uma estranha orquídea das alturas murchável em um dia – meu chiclete Beechnut, minha bolsinha de tabaco, pós, pobres revistas pulp que eu tenho que ler, vista para o Sul para todas aquelas majestades nevadas – A espera é longa.


Jack Kerouac, Anjos da Desolação

domingo, 2 de setembro de 2012

Jack Kerouac, Viajante solitário




Que vitória, a vitória de Cristo! Vitória sobre a loucura; a doença da espécie humana. “Matem-no!”
[...]
Cristo em Sua agonia, rogai por mim.
A estátua mostra Seu corpo pendendo da cruz pelas mãos pregadas, com a perfeita inclinação do corpo dada pelo artista, escultor devoto que trabalhou com todo seu coração, com a compaixão e tenacidade de um Cristo – um meigo, quem sabe índio, católico espanhol do século 15, entre ruínas de adobe e barro e a fétida fumaça de meio milênio indígena na América do Norte, vislumbrou esse statuo del Cristo e o instalou na nova igreja que, hoje, na década de 50, passados quatro ou cinco séculos, partiu parte do telhado onde algum Michelangelo espanhol pintou querubins e figuras angelicais para a inspiração dos que olhavam para o alto nas manhãs dominicais enquanto o bondoso padre explicava detalhes das leis religiosas.


Jack Kerouac, Viajante solitário

domingo, 22 de maio de 2011

Renoir

“- comparado a Renoir também, cuja pintura de uma tarde francesa era estupendamente colorida, como as tardes de domingo de nossos sonhos de infância – rosas, púrpuras, vermelhos, volteios, dançarinos, mesas, bochechas coradas e gargalhadas.”

Jack Kerouac

sábado, 21 de maio de 2011

Jack Kerouac, Viajante solitário

Você já viu um enorme cargueiro deslizar pelas águas da baía em uma tarde de sonhos e enquanto estende o olhar ao longo de todo o convés de ferro em busca de pessoas, marinheiros, fantasmas que devem estar manobrando esse navio onírico que singra tão suavemente pelas águas do porto com sua proa de aço e o focinho apontando para os quatro Ventos do Mundo e não vê nada, ninguém, vivalma?
E lá segue ele em plena luz do dia, triste casco desolado latejando tenuemente, rangendo e rugindo incompreensivelmente na casa das máquinas, resfolegando, movendo suavemente sua gigantesca hélice traseira submersa, abrindo caminho em direção ao alto-mar, eternidade, estrelas do louco sextante do imediato na abóbada rósea da noite manzanilhana caem longe da costa desse triste mundo da beira-mar – em direção aos cais de outras baías de pescadores, mistérios, noites opiáceas nos reinos da vigia, estreitas ruas principais do Curdo. – De repente, meu Deus, você se dá conta de que estava olhando para uns pequenos pontos brancos imóveis no convés, entre o convés principal e os alojamentos, e lá estão eles... diversos tripulantes de casaco branco, eles estavam o tempo inteiro recostados, imóveis como peças fixas do próprio navio nas escotilhas do corredor da cozinha . – É depois do jantar, o resto da tripulação ronca bem alimentada em beliches de sonecas intermitentes – eles mesmos grandes vigilantes do mundo enquanto deslizam em direção ao Tempo, nenhum vigia do navio pode evitar ser ludibriado e perscrutado muito antes de perceber que eles são humanos, são a única coisa viva à vista.

Jack Kerouac, Viajante solitário

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Jack Kerouac, Viajante solitário

Finalmente as chuvas de outono, noites inteiras de chuvas torrenciais sopradas pelo vento enquanto deitava aquecido como uma torrada dentro do meu saco de dormir, e claros dias outonais gélidos e turbulentos, com vento forte, nevoeiros céleres, nuvens velozes, brilho de sol súbito, luz pristina em retalhos da montanha, e meu fogo crepitando enquanto eu exulto e canto a toda voz. – Do lado de fora da minha janela um esquilo varrido pelo vento está sentado nas patas traseiras sobre uma rocha, mãos unidas, mordisca uma espiga de aveia que segura entre as patas – pequeno senhor de tudo o que inspeciona.
Pensando nas estrelas noite após noite começo a perceber que “as estrelas são palavras” e todos os incontáveis mundos da via Láctea são palavras, e esse mundo também o é. E percebo que não importa onde eu esteja, seja em um quartinho repleto de ideias ou nesse universo infinito de estrelas e montanhas, tudo está na minha mente. Não há necessidade de solidão. Por isso, ame a vida pelo que ela é não forme ideias preconcebidas de espécie alguma em sua mente.
Que estranhos e doces pensamentos brotam nas solidões montanhosas! – Certa noite percebi que, quando tratamos as pessoas com compreensão e estímulo, uma expressão de humildade estranha e infantil lhes perspassa os olhos envergonhados, não importa o que estivessem fazendo, não estavam certas de que fosse correto – cordeirinhos espalhados por toda a face desta terra.
Visto que, ao compreender que Deus é tudo, você percebe que deve amar tudo por pior que seja, em última análise nada é bom nem mau (pense na poeira), é apenas o que é, ou seja, o que se faz parecer. – Uma espécie de drama para ensinar algo a alguma coisa, alguma “substância menosprezada do mais divino dos shows”.
E percebi que não era necessário me esconder na desolação e que podia aceitar a sociedade para o que desse e viesse, como uma esposa – vi que, se não fosse pelos seis sentidos, visão, audição, olfato, tato, gosto e pensamentos, a individualidade disso tudo, que é não-existente, simplesmente não haveria nenhum fenômeno para apender, na verdade não haveria seis sentidos nem individualidade. O medo da extinção é muito pior do que a extinção (a morte). – Perseguir a extinção no velho sentido nirvânico do budismo é em última análise uma bobagem, como os mortos indicam no silêncio de seu sono bem-aventurado na Mãe Terra que, de qualqer maneira, é um Anjo suspenso no Céu.
Eu simplesmente me deitava nos campos da montanha ao luar, com a cabeça na grama, e ouvia o reconhecimento silencioso das minhas angústias passageiras. – Sim, desse modo, tentar atingir o Nirvana quando você já está nele, atingir o topo de uma montanha quando já está lá e tem apenas que permanecer – assim, permanecer na bem-aventurança nirvânica é tudo o que tenho a fazer, que você tem a fazer, sem esforço, sem caminho realmente, sem disciplina, mas apenas saber que tudo é vazio e desperto, uma visão e um filme na mente universal de Deus (alaya-vijnana) e permanecer mais ou menos sabiamente em meio a isso. – Porque o silêncio em si é o som dos diamantes que podem cortar tudo, o som da vacuidade sagrada, o som da extinção e da bem-aventurança, esse silêncio de cemitério que é como o silêncio do sorriso de um bebê, o som da eternidade, da beatitude na qual certamente é preciso acreditar, o som de jamais-houve-nada-senão-Deus (que em breve eu ouviria em uma ruidosa tempestade no Atlântico). – O que existe é Deus em Sua Emanação, o que não existe é Deus na Sua serena Neutralidade, o que nem existe nem não existe é a divina e imortal aurora primordial do Céu Pai (este mundo neste exato instante). – Por isso eu disse: - “Permaneça nisso, aqui não existem dimensões para quaisquer das montanhas ou mosquitos ou vias lácteas inteiras de mundos”.
Porque sensação é vazio, envelhecimento é vazio. – tudo é apenas a Dourada Eternidade da Mente de Deus; por isso pratique a bondade e a compreensão, lembre que os homens não são responsáveis por si mesmos, por sua ignorância e maldade, se deve ter pena deles, Deus se compadece porque o que há para dizer a respeito de qualquer coisa visto que tudo é apenas o que é, livre de interpretações? – Deus não é “aquele que alcança”, ele é o “viajante” naquilo em que tudo é, o “que subsiste” – uma lagarta, mil cabelos de Deus. – Portanto, saiba sempre que isto é apenas você, Deus, vazio, desperto e eternamente livre como os incontáveis átomos da vacuidade em todos os lugares.
Decidi que, quando retornasse ao mundo lá embaixo, tentaria manter minha mente límpida em meio às obscuras ideias humanas que fumegam como fábricas no horizonte através do qual eu caminharia, em frente...
Em setembro, quando desci, um gélido aspecto dourado surgira na floresta como um augúrio de frios repentinos, geadas e eventuais nevascas uivantes que cobririam meu barraco por completo a não ser que aqueles ventos do topo do mundo a conservassem intacta. Quando cheguei à curva da trilha onde meu barraco desapareceria e eu desceria até o lago para encontrar o barco que me levaria dali para casa, me virei e abençoei o Desolation Peak [pico da desolação] e o pequeno pagode no cume e agradeci a eles pelo abrigo e pela lição que me ensinaram.

Jack Kerouac, Viajante solitário

quarta-feira, 4 de maio de 2011




O amor é o cemitério populoso da podridão.
O leite derramado dos heróis.
Destruição de lenços de seda pela tempestade de pó.
Carícia de heróis vendados presos nos postes.
Vítimas de assassinatos aceitas nesta vida.
Esqueletos trocando dedos e juntas.
A carne trêmula dos elefantes da gentileza sendo despedaçada pelos abutres.
Concepções de rótulas delicadas.
Medo de ratos espalhando bactérias.
Fria Esperança da Gólgota pela Esperança do Ouro.
Úmidas folhas de outono contra o casco dos barcos.
As delicadas imagens de cola do cavalo marinho.
Morte por longa exposição à desonra.
Seres assustadores encantadores ocultando seu sexo.
Pedaços da essência do Buda congelados e fatiados microscopicamente em Morgues do Norte.
Pomos do pênis a ponto de semear.
Mais gargantas cortadas que grãos de areia.
Como beijar minha gata na barriga.
A suavidade de nossa recompensa.


Jack Kerouac, in "Mexico City Blues"

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Jack Kerouac, Viajante Solitário

“Na verdade, não sou um beat, mas sim um estranho e solitário católico, louco e místico... Planos finais: solidão eremítica nas florestas, escrever tranquilamente na velhice, vaga esperança do Paraíso (como, de resto, todo mundo)...
Queixa favorita sobre o mundo contemporâneo: o desprezo jocoso das pessoas “respeitáveis”.... que, por não levarem nada a sério, estão destruindo velhos sentimentos humanos, mais antigos do que a Time Magazine... Dave Garroways rindo-se de pombas brancas...
(...)
Viajante Solitário é uma coleção de textos publicados e inéditos conectados por um tema comum: viagens.
As viagens percorrem os Estados Unidos do sul para a costa leste, costa oeste, o noroeste distante, México, Marrocos, Paris, Londres, os oceanos Atlântico e o Pacífico a bordo de navios, e as várias pessoas e cidades interessantes encontradas nesses lugares.
Trabalhos em ferrovias, no mar, misticismo, trabalho na montanha, lascívia, solipsismo, auto-indulgência, drogas, igrejas, museus de artes, ruas urbanas, um apanhado geral da vida vivida por um vagabundo sem grana e educado de forma independente, indo a lugar algum.
Seu objetivo e propósito é simplesmente poesia, ou descrição natural.

- “O mundo pode ser louco, até que finalmente a gente possa compreender que, “oh, bem, na verdade tudo é tão repetitivo”

- “Ah, América, tão imensa, tão triste, tão negra, você é como as filhas de um verão seco que se tornaram quebradiças antes do final de agosto, você não tem conserto, todos que você vê, não há nada além da desesperança seca e soturna, o conhecimento da morte iminente, o sofrimento da vida presente, luzes natalinas não vão salvá-lo nem a ninguém, de nada adianta acender enfeites de natal em um arbusto, morto em agosto à noite, e lhe dar o aspecto de outra coisa qualquer, que espécie de Natal é esse que você celebra no vazio?... nessa nuvem nebulosa?”


-" O próximo touro! – Primeiro os velhos garotos juntam o sangue com pás, jogam em um carrinho de mão e saem de cena. O alisador da arena retorna calmamente com seu ancinho. – 'Olé', garotas jogam flores para o assassino de animais de colete bordado. E eu vi como todo mundo morre e ninguém vai se importar, senti como é horrível viver apenas para morrer, como um touro encurralado em uma arena humana estridente.


Jack Kerouac, Viajante Solitário

domingo, 21 de novembro de 2010

Jack Kerouac, On the Road (1957)



I had nothing to offer anybody except my own confusion.
  • The one thing that we yearn for in our living days, that makes us sigh and groan and undergo sweet nauseas of all kinds, is the remembrance of some lost bliss that was probably experienced in the womb and can only be reproduced (though we hate to admit it) in death. 
  • I like too many things and get all confused and hung-up running from one falling star to another till I drop. This is the night, what it does to you. I had nothing to offer anybody except my own confusion. 
 
What's heaven? What's earth? All in the mind.
  • The car was swaying as Dean and I both swayed to the rhythm and the IT of our final excited joy in talking and living to the blank tranced end of all innumerable riotous angelic particulars that had been lurking in our souls all our lives.
  • What difference does it make after all? — anonymity in the world of men is better than fame in heaven, for what's heaven? what's earth? All in the mind.
  • So in America when the sun goes down and I sit on the old broken-down river pier watching the long, long skies over New Jersey and sense all that raw land that rolls in one unbelievable huge bulge over to the West Coast, and all that road going, all the people dreaming in the immensity of it, and in Iowa I know by now the children must be crying in the land where they let the children cry, and tonight the stars'll be out, and don't you know that God is Pooh Bear? the evening star must be drooping and shedding her sparkler dims on the prairie, which is just before the coming of complete night that blesses the earth, darkens all rivers, cups the peaks and folds the final shore in, and nobody, nobody knows what's going to happen to anybody besides the forlorn rags of growing old, I think of Dean Moriarty, I even think of Old Dean Moriarty the father we never found, I think of Dean Moriarty, I think of Dean Moriarty.


The only people for me are the mad ones, the ones who are mad to live, mad to talk, mad to be saved, desirous of everything at the same time, the ones that never yawn or say a commonplace thing, but burn, burn, burn like fabulous yellow roman candles exploding like spiders across the stars and in the middle you see the blue centerlight pop and everybody goes "Awww!"



Jack Kerouac, On the Road (1957)

domingo, 31 de outubro de 2010

Jack Kerouac, Big Sur



Ah, life is a gate, a way, a path to Paradise anyway, why not live for fun and joy and love...

* Ah, life is a gate, a way, a path to Paradise anyway, why not live for fun and joy and love or some sort of girl by a fireside, why not go to your desire and LAUGH...

* Everything is the same, the fog says 'We are fog and we fly by dissolving like ephemera,' and the leaves say 'We are leaves and we jiggle in the wind, that's all, we come and go, grow and fall' — Even the paper bags in my garbage pit say 'We are mantransformed paper bags made out of wood pulp, we are kinda proud of being paper bags as long as that will be possible, but we'll be mush again with our sisters the leaves come rainy season' — The tree stumps say 'We are tree stumps torn out of the ground by men, sometimes by the wind, we have big tendrils full of earth that drink out of the earth' — Men say 'We are men, we pull out tree stumps, we make paper bags, we think wise thoughts, we make lunch, we look around, we make a great effort to realise everything is the same.'

* I feel guilty for being a member of the human race.


Jack Kerouac, Big Sur (1962)

sexta-feira, 22 de outubro de 2010



* And I will die, and you will die, and we all will die, and even the stars will fade out one after another in time.

* But O Sarina come with me to my bed of woes, let me love you gently in the night, long time, we got all night, till dawn, till Juliet's rising sun and Romeo's vial sink, till I have slaked my thirst of Samsara at your portal rosy petal lips and left saviour juice in your rosy flesh garden to melt and dry and ululate another baby for the void, come sweet Sarina in my naughty arms, be dirty in my clean milk, and I'll detest the defecate I leave in your milky empowered cyst-and-vulva chamber, your cloacan clara file-hool through which slowly drool the hall-gyzm, to castles in your hassel flesh and I'll protect you trembling thighs against my heart and kiss your lips and cheeks and Lair and love you everywhere and that'll be that...



*There's your Karma ripe as peaches.


* I could give you a list a mile long of the homosexuals in the arts but there's no point in making a big tzimis about a relatively harmless and cool state of affairs — Each man to his own tastes.

* Everything is going to the beat — It's the beat generation, it be-at, it's the beat to keep, it's the beat of the heart, it's being beat and down in the world and like oldtime lowdown and like in ancient civilizations the slave boatmen rowing galleys to a beat and servants spinning pottery to a beat...


Jack Kerouac, Desolation Angels (1965)


quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Jack Kerouac, Some of the Dharma


* My witness is the empty sky.


* A man who allows wild passion to arise within, himself burns his heart, then after burning adds the wind that thereto which ignites the fire again, or not, as the case may be.


* Literature is no longer Necessary Teaching is left.


Jack Kerouac, Some of the Dharma

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Bowery Blues




The story of man
Makes me sick
Inside, outside,
I don't know why
Something so conditional
And all talk
Should hurt me so.

I am hurt
I am scared
I want to live
I want to die
I don't know
Where to turn
In the Void
And when
To cut
Out

For no Church told me
No Guru holds me
No advice
Just stone
Of New York
And on the cafeteria
We hear
The saxophone
O dead Ruby
Died of Shot
In Thirty Two,
Sounding like old times
And de bombed
Empty decapitated
Murder by the clock.

And I see Shadows
Dancing into Doom
In love, holding
TIght the lovely asses
Of the little girls
In love with sex
Showing themselves
In white undergarments
At elevated windows
Hoping for the Worst.

I can't take it
Anymore
If I can't hold
My little behind
To me in my room

Then it's goodbye
Sangsara
For me
Besides
Girls aren't as good
As they look
And Samadhi
Is better
Than you think
When it starts in
Hitting your head
In with Buzz
Of glittergold
Heaven's Angels
Wailing

Saying

We've been waiting for you
Since Morning, Jack
Why were you so long
Dallying in the sooty room?
This transcendental Brilliance
Is the better part
(of Nothingness
I sing)

Okay.
Quit.
Mad.
Stop.

Jack Kerouac

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Jack Kerouac, On the road

Fomos a Nova York - as circunstâncias, já esqueci, eram duas garotas negras -, mas não havia garotas lá; tínhamos marcado um encontro para jantar e elas não apareceram. Fomos até o estacionamento, onde Dean tinha algumas coisas a fazer - mudar de roupa no barraco dos fundos e se ajeitar um pouco em frente a um espelho rachado, coisas assim, e logo caímos fora. E foi nessa noite que Dean conheceu Carlo Marx. Algo verdadeiramente extraordinário aconteceu quando Dean conheceu Carlo Marx. Duas cabeças iluminadas como eram, eles se ligaram no ato. Um par de olhos penetrantes relampejou ao cruzar com dois outros olhos penetrantes - o santo vagabundo de mente sombria que é Carlo Marx. Daquele momento em diante quase não vi mais Dean, e fiquei um pouco magoado também.
As energias deles entraram em fusão; comparado a eles, eu não passava de um paspalho, era incapaz de acompanhar aquele ritmo. Começa então o louco redemoinho de tudo o que ainda estava por vir; e ele misturaria todos meus amigos e o pouco que restava da minha família numa gigantesca nuvem de poeira pairando sobre a Noite Americana. Carlo falava a Dean sobre Old Bull Lee, Elmer Hassel e Jane; Lee no Texas (...), Hassel na ilha de Riker, Jane vagando pelo Times Square (...), com sua bebezinha nos braços e acabando em Bellevue. E Dean falou para Carlo sobre desconhecidos do Oeste como Tommy Snark, o craque manco das mesas de bilhar, viciado no baralho e veado abençoado. Falou também sobre Roy Johnson, Big Ed Dunkel, seus amigos de infância, seus companheiros da rua, suas inumeráveis garotas e orgias e fotos pornográficas, seus heróis, heroínas, aventuras. Eles vararam as ruas juntos absorvendo tudo com aquele jeito que tinham no começo, e que mais tarde se tornaria muito mais melancólico, perceptivo e vazio. Mas essa época eles dançavam pelas ruas como piões frenéticos e eu me arrastava na mesma direção como tenho feito toda minha vida, sempre rastejando atrás de pessoas que me interessam, porque, para mim, pessoas mesmo são os loucos, os que estão loucos para viver, loucos para falar, loucos para serem salvos, que querem tudo ao mesmo tempo agora, aqueles que nunca bocejam e jamais falam chavões, mas queimam, queimam, queimam como fabulosos fogos de artifício explodindo como constelações em cujo centro fervilhante - pop! - pode-se ver um brilho azul e intenso até que todos "aaaaaaah!. Como é mesmo que eles chamam esses garotos na Alemanha de Goethe? Desejando ardorosamente aprender como escrever tão bem quanto Carlo, Dean, como é fácil imaginar, começou a envolvê-lo com aquela alma insinuante e amorosa que só mesmo um verdadeiro vagabundo poderia ter. "Carlo, agora deixe que eu  fale, o que eu tenho a te dizer é o seguinte..." Não os vi por umas duas semanas, durante as quais eles selaram sua amizade numa proporção tão intensa quanto seu diálogo diabólico que virava a noite e emendava o dia.
Chegou então a primavera, época ideal para cair na estrada, e todos neste bando disperso começaram a se preparar para algum tipo de viagem. Eu estava ocupadíssimo com meu romance, mas quando já estava na metade, depois de uma viagem ao Sul com minha tia para visitar meu irmão Rocco, senti que estava pronto para tomar o rumo do Oeste pela primeiríssima vez.

Jack Kerouac, On the road

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Jack Kerouac, Os subterrâneos

- Dançando, eu havia apagado a luz, de modo que, no escuro, dançando, beijei-a – foi estonteante, ao ritmo da dança, o começo, o começo de sempre de amantes beijando-se em pé numa sala escura a sala sendo da mulher e o homem cheio de planos – terminando depois em danças loucas ela no meu colo ou na minha coxa enquanto eu a jogava para o lado para trás ela equilibrando-se pendurada no meu pescoço os braços dela que viriam a aquecer-me tanto a mim que naquele instante estava só quente –
E logo soube que ela não acreditava em nada e não tinha tido ninguém para acreditar em nada – mãe negra morreu de parto dela – pai meio índio cherokee desconhecido um vagabundo que caminhava jogando os sapatos rasgados através das planícies cinzentas no outono com um sombrero preto e cachecol cor-de-rosa de cócoras em frente à fogueira assando salsichas jogando fora na escuridão latas vazias de vinho Tokay “ôôô Calexico!”
Rapidamente mergulhei, mordi, apaguei a luz, escondi meu rosto envergonhado, fiz amor com ela tremendamente por causa da carência de amor há um ano quase e a necessidade me empurravam para o chão – nossos pequenos acordos no escuro, coisas que no duro não deviam jamais ser ditas – pois foi ela que depois me disse “Os homens são tão malucos, querem a essência, a mulher é a essência, lá está ela bem na mão deles mas eles saem correndo construindo grandes estruturas abstratas”. - “Você quer dizer que eles deviam era ficar em casa com a essência, ou seja passar o dia inteiro deitados à sombra de uma árvore com a mulher mas Mardou isso é uma velha ideia minha, uma ideia linda, eu nunca ouvi ninguém exprimir ela melhor e nem sonhei” – “Em vez disso eles saem por aí correndo e ficam achando que a mulher é um prêmio e não um ser humano, ora cara eu posso estar metida nessa merda também mas eu não tenho nada a ver com isso” (naquele tom doce e culto e hip da nova geração). – E assim tendo agora a essência do amor dela eu construo grandes estruturas verbais, e ao fazer isso traio a essência – contando histórias fofocas pendurando na corda do mundo esses lençóis íntimos - e os dela, os nossos, nos dois meses inteiros de nosso amor (eu pensei) só lavados uma vez sendo ela uma linda subterrânea que passava os dias sonhando que ia levá-los à lavadeira mas de repente já estamos no fim de uma tarde fria e é tarde demais e os lençóis estão cinzentos, lindos para mim – porque macios. Mas não posso nessa confissão trair o mais íntimo, as coxas, o que as coxas contêm – e no entanto escrever para quê? – as coxas contêm a essência – e no entanto eu sei que devo ficar lá e de lá eu vim e pra lá um dia hei de voltar, mas assim mesmo tenho que sair correndo por aí e construir construir – para nada – poemas de Baudelaire –
Nunca nem uma vez ela usou a palavra amor, bem naquele primeiro momento depois da nossa dança louca quando a carreguei ainda no meu colo solta até a cama e lentamente pousei-a, deixei-me encontrá-la, o que ela adorou, e tendo vivido toda a sua vida sem sexo (fora a primeira conjugalidade aos quinze anos de idade e que por algum motivo a consumiu e depois nunca mais) (Ah a dor de contar esses segredos que é tão importante contar, senão para quê escrever ou viver) agora “casus in eventu est” mas gostando de me perder a cabeça levemente egomaniacamente como se após umas poucas cervejas. –Deitado pois no escuro, macio, cheio de tentáculos, à espera, até o sono chegar – assim de manhã acordo do grito dos pesadelos de cerveja e vejo a meu lado a negra de lábios entreabertos dormindo, e pedacinhos de enchimentos de travesseiros nos cabelos negros dela, sinto quase repulsa, percebo que animal eu sou por sentir algo semelhante a repulsa, uva corpinho docenu sobre lençóis inquietos da turbulência da véspera, os barulhos da Heavenly Lane, penetrando de fininho pelas janelas cinzentas, um dia de juízo final cinzento de agosto então eu tenho vontade de sair de repente para “voltar pro meu trabalho” a quimera de não quimera porém a consciência organizada e progressiva do trabalho e dever que eu havia criado e desenvolvido em mim mesmo em casa (em South San Francisco?) humilde embora seja, os confortos de lá também, a solidão que eu queria e agora não suporto. – Levantei e comecei a me vestir, pedir desculpas, ela deitada como uma mumiazinha no lençol virando os olhos castanhos sérios para mim, como olhos observadores de índio na floresta, com cílios castanhos se erguendo de repente com cilios negros para revelar súbitos olhos fantasticamente brancos com o íris castanho reluzente no centro, a seriedade do rosto dela acentuada pelo toque levemente oriental como de um nariz de lutador de Box e as bochechas ligeiramente inchadas de sono, como o rosto de uma linda máscara de pórfiro encontrada há muito e asteca. – “Mas por que você tem que sair tão depressa, como se quase histérico ou preocupado?” - “Bem eu tenho que ir eu tenho trabalho a fazer e tenho que acordar direito – ressaca – “ e ela mal acordada ainda, e aí eu saio de fininho com umas poucas palavras quando ela quase adormece de novo e eu passo uns dias sem vê-la -
O machão adolescente tendo feito sua conquista mal se preocupa em casa com a perda do amor da donzela conquistada, a linda moça dos cílios negros - não é confissão. - Foi numa manhã que eu dormi no Adam que eu a vi de novo, eu estava para me levantar, bater umas coisas à máquina e tomar café na cozinha o dia inteiro porque naquela época trabalho, trabalho era no que eu mais pensava, amor não - não a dor que me impele a escrever isto  mesmo sem eu querer, a dor, que não será apagada pelo ato de escrever e sim acentuada, mas que será redimida, e se ao menos fosse uma dor digna que pudesse ser colocada em outro lugar que não essa sarjeta negra de vergonha e perda e loucura barulhenta na noite e pobre suor na minha testa - Adam levantando para ir ao trabalho, eu também, me lavando, mastigando conversa fiada, quando o telefone tocou e era Mardou, que estava indo para a terapia, mas precisava de um trocado para o ônibus, morava logo ali perto, "Tudo bem pinta aqui mas rápido que eu estou indo pro trabalho ou então deixo o dinheiro com o Leo" - "Ah ele está aí?" - "Está." - na minha mente pensamentos machos de transar de novo e de realmente curtir vê-la de novo de repente, como se eu achasse que ela não havia gostado da primeira noite (sem razão nenhuma para achar isso, antes do sexo ela havia deitado no meu peito comendo a fritada chinesa e me curtindo com os olhos brilhantes de alegria) (que hoje à noite meu inimigo devora?) ideia que me faz largar minha testa quente usada numa mão cansada - ó amor, fugiste de mim - ou será que telepatias se cruzam empaticamente na noite? - Cacoetes que surgem para que o amante frio de lascívia mereça o sangrar quente do espírito - assim ela veio, às oito da manhã, Adam foi pra o trabalho e nós ficamos sozinhos e imediatamente ela enroscou-se no meu colo, por convite meu, na poltrona grande e começamos a falar, ela começou a contar a história dela e eu liguei (no dia cinzento) a lâmpada vermelha fraca e assim começou nosso verdadeiro amor -.

Jack Kerouac, Os subterrâneos

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Jack Kerouac, Visions of Cody

I accept lostness forever.

* It no longer makes me cry and die and tear myself to see her go because everything goes away from me like that now — girls, visions, anything, just in the same way and forever and I accept lostness forever.

* I'm writing this book because we're all going to die — In the loneliness of my life, my father dead, my brother dead, my mother far away, my sister and my wife far away, nothing here but my own tragic hands that once were guarded by a world, a sweet attention, that now are left to guide and disappear their own way into the common dark of all our death, sleeping in me raw bed, alone and stupid...

* The mad road, lonely, leading around the bend into the openings of space towards the horizon Wasatch snows promised us in the vision of the West, spine heights at the world's end, coast of blue Pacific starry night — nobone halfbanana moons sloping in the tangled night sky, the torments of great formations in mist, the huddled invisible insect in the car racing onwards, illuminate. — The raw cut, the drag, the butte, the star, the draw, the sunflower in the grass — orangebutted west lands of Arcadia, forlorn sands of the isolate earth, dewy exposures to infinity in black space, home of the rattlesnake and the gopher the level of the world, low and flat: the charging restless mute unvoiced road keening in a seizure of tarpaulin power into the route.

Jack Kerouac, Visions of Cody (1960)