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sábado, 9 de março de 2024

 


“I want to write a novel about Silence," he said; “the things people don’t say.”

― Virginia Woolf

domingo, 4 de fevereiro de 2024


 How much better is silence; the coffee cup, the table. How much better to sit by myself like the solitary sea-bird that opens its wings on the stake. Let me sit here for ever with bare things, this coffee cup, this knife, this fork, things in themselves, myself being myself. 

Virginia Woolf, The waves

domingo, 28 de maio de 2023

Noite e dia


Os mais extravagantes pensamentos ocorrem na travessia de ruas transbordantes de gente, quando aquele que passa não tem destino certo. É assim também que a mente compõe toda sorte de configurações, soluções e imagens, quando se ouve música atentamente. Da aguda consciência de si mesma enquanto indivíduo, Mary passou a uma concepção sobre a ordem das coisas em que, como ser humano, cabia-lhe, por direito, a sua cota. Teve, a meio, uma visão; a visão formou-se, depois minguou. Quisera ter um lápis e um pedaço de papel para dar forma a essa concepção que se propusera espontaneamente enquanto descia a Charing Cross Road. Mas, se falasse a qualquer pessoa, a concepção poderia fugir-lhe. A visão parecia conter as linhas mestras da sua vida até a morte, de uma maneira satisfatória para o seu senso de harmonia. Necessitava apenas de um persistente esforço de pensamento, estimulado curiosamente pela multidão e pelo barulho, para subir até o pináculo da existência e ver tudo lá do alto, disposto e armado de uma vez por todas. Seu sofrimento, enquanto indivíduo, ficara para trás. Desse processo, para ela repleto de esforço, com transições infinitamente rápidas e drásticas de pensamento, a levar de uma crista a outra, e formando, assim, a sua concepção da vida neste mundo, desse processo umas poucas palavras articuladas lhe escaparam, murmuradas entre dentes: — Não é a felicidade, não é a felicidade.

Virgínia Woolf, Noite e dia 

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Retrato 3


E a mim que ali me sentava, no pátio da Pousada Francesa, pareceu que o segredo da existência nada era senão um esqueleto de morcego no armário; e que nada era o enigma senão o entrecruzamento de uma teia de aranha; tão sólida ela parecia ser. Ela estava no sol, sentada. Não usava chapéu. A luz a fixava. Não havia sombra. Seu rosto era amarelo e vermelho; e arredondado; uma fruta num corpo; outra maçã, só que não no prato. Seios que se formaram no seu corpo com a dureza de maçãs sob a blusa.

Eu a observava. Sua pele vibrou como se uma mosca tivesse andado nela. Alguém passou; vi as folhas estreitas das macieiras tremerem vibradas por seu olhar. Sua rudeza, sua crueldade, era como casca grossa com líquen, e ela era, perenemente e inteiramente resolvido, o problema da vida.

Virgínia Woolf, Contos completos, p. 351

sexta-feira, 23 de agosto de 2013




Quando eu estava escrevendo aquela resenha, descobri que, se fosse resenhar livros, ia ter de combater um certo fantasma. E o fantasma era uma mulher, e quando a conheci melhor, dei a ela o nome da heroína de um famoso poema, “O Anjo do Lar”. Era ela que costumava aparecer entre mim e o papel enquanto eu fazia as resenhas. Era ela que me incomodava, tomava meu tempo e me atormentava tanto que no fim matei essa mulher. Vocês, que são de uma geração mais jovem e mais feliz, talvez não tenham ouvido falar dela – talvez não saibam o que quero dizer com o Anjo do Lar. Vou tentar resumir. Ela era extremamente simpática. Imensamente encantadora. Totalmente altruísta. Excelente nas difíceis artes do convívio familiar. Sacrificava-se todos os dias. Se o almoço era frango, ela ficava com o pé; se havia ar encanado, era ali que ia se sentar – em suma, seu feitio era nunca ter opinião ou vontade própria, e preferia sempre concordar com as opiniões e vontades dos outros. E acima de tudo – nem preciso dizer – ela era pura. Sua pureza era tida como sua maior beleza – enrubescer era seu grande encanto.
Naqueles dias – os últimos da rainha Vitória – toda casa tinha seu Anjo. E, quando fui escrever, topei com ela já nas primeiras palavras. Suas asas fizeram sombra na página; ouvi o farfalhar de suas saias no quarto. Quer dizer, na hora em que peguei a caneta para resenhar aquele romance de um homem famoso, ela logo apareceu atrás de mim e sussurrou: “Querida, você é uma moça. Está escrevendo sobre um livro que foi escrito por um homem. Seja afável; seja meiga; lisonjeie; engane; use todas as artes e manhas de nosso sexo. Nunca deixe ninguém perceber que você tem opinião própria. E principalmente seja pura”.
 E ela fez que ia guiar minha caneta.
 E agora eu conto a única ação minha em que vejo algum mérito próprio, embora na verdade o mérito seja de alguns excelentes antepassados que me deixaram um bom dinheiro – digamos, umas quinhentas libras anuais? –, e assim eu não precisava só do charme para viver.
 Fui para cima dela e agarrei-a pela garganta. Fiz de tudo para esganá-la. Minha desculpa, se tivesse de comparecer a um tribunal, seria legítima defesa.
 Se eu não a matasse, ela é que me mataria.
Arrancaria o coração de minha escrita. Pois, na hora em que pus a caneta no papel, percebi que não dá para fazer nem mesmo uma resenha sem ter opinião própria, sem dizer o que a gente pensa ser verdade nas relações humanas, na moral, no sexo.
E, segundo o Anjo do Lar, as mulheres não podem tratar de nenhuma dessas questões com liberdade e franqueza; se querem se dar bem, elas precisam agradar, precisam conciliar, precisam – falando sem rodeios – mentir.
Assim, toda vez que eu percebia a sombra de sua asa ou o brilho de sua auréola em cima da página, eu pegava o tinteiro e atirava nela.
Demorou para morrer. Sua natureza fictícia lhe foi de grande ajuda.
É muito mais difícil matar um fantasma do que uma realidade.
Quando eu achava que já tinha acabado com ela, sempre reaparecia sorrateira.
No fim consegui, e me orgulho, mas a luta foi dura; levou muito tempo, que mais valia ter usado para aprender grego ou sair pelo mundo em busca de aventuras. Mas foi uma experiência real; foi uma experiência inevitável para todas as escritoras daquela época. Matar o Anjo do Lar fazia parte da atividade de uma escritora.
 Mas continuando minha história: o Anjo morreu, e o que ficou?
 Vocês podem dizer que o que ficou foi algo simples e comum – uma jovem num quarto com um tinteiro. Em outras palavras, agora que tinha se livrado da falsidade, a moça só tinha de ser ela mesma. Ah, mas o que é “ela mesma”? Quer dizer, o que é uma mulher? Juro que não sei. E duvido que vocês saibam. Duvido que alguém possa saber, enquanto ela não se expressar em todas as artes e profissões abertas às capacidades humanas. E de fato esta é uma das razões pelas quais estou aqui, em respeito a vocês, que estão nos mostrando com suas experiências o que é uma mulher, que estão nos dando, com seus fracassos e sucessos, essa informação da maior importância.


Virgínia Woolf, Profissões para mulheres e outros artigos feministas

domingo, 19 de maio de 2013

O fascínio do poço


Devia ter grande profundidade - certamente não dava para ver o fundo. Ao redor da beira, tão espessa era a fímbria de juncos, que seus reflexos criavam uma escuridão semelhante à de águas insondáveis. Havia alguma coisa branca lá no meio, contudo. A grande fazenda, a menos de dois quilômetros, estava para ser vendida e uma pessoa zelosa, a não ser que fosse, por brincadeira, um garoto, tinha fincado um dos cartazes que anunciavam a venda, com cavalos de tração, novilhas e implementos agrícolas, num toco de árvore bem ao lado do poço. O anúncio branco refletia-se no centro da água que, quando o vento soprava, dava a impressão de ondular e encrespar-se como uma peça de roupa ao ser lavada. As grandes letras vermelhas nas quais Moinho Romford estava impresso na água ficavam à tona. E havia vestígios de vermelho no verde que ondulava de lado a lado nas margens.

Se nos sentássemos entre os juncos e olhássemos para o poço - não se sabem bem o quê, mas os poços exercem um curioso fascínio -, as letras pretas e vermelhas e o branco papel pareciam ralamente jazer na superfície, ao passo que por baixo seguia uma profunda vida subaquática semelhante ao ruminar, ao remoer da mente. Muitas, muitas pessoas devem ter ido ali sozinhas, de tempos em tempos, de era em era, para deixar cair seus pensamentos na água e lhe indagar qualquer coisa, tal como faziam as pessoas agora, nesse fim de tarde de verão. Talvez esta fosse a razão da fascinação do poço - que ele continha em suas águas todas as espécies de queixas, confidências, fantasias, não em voz alta nem em forma impressa, mas sim em estado líquido, a flutuarem, quase desencarnadas, umas sobre as outras. Por entre elas nadaria um peixe, para que um junco, com sua lâmina, o cortasse em dois; ou a lua, com sua placa de brancura, as aniquilaria. O encanto do poço é que os pensamentos tinham sido ali deixados por pessoas que partiram para longe e, sem seus corpos, tais pensamentos vagavam livremente, amistosos e comunicativos, para dentro e para fora das águas comuns a todos.

Entre esses pensamentos líquidos, alguns pareciam conservar-se unidos e - por um simples momento - constituir pessoas reconhecíveis. Divisava-se então um rosto rubro e barbado que se abaixava sobre o poço para nele beber. Estive aqui em 1851, após o calor da Grande Exposição. Vi a rainha inaugurá-la. E a voz soltava um riso leve, despreocupado e fluido, como se o homem tivesse se livrado de suas botas de elástico nos lados e posto ali na beira do poço seu chapéu. Meu Deus, como estava quente!  E agora tudo se foi, tudo se esboroou decerto, pareciam dizer os pensamentos, ao oscilar por entre o juncal. Mas eu era uma namorada, começava outro pensamento, deslizando sobre aquele num ordeiro silêncio, como peixes que ao se agrupar não se estorvam. Era ainda moça; costumávamos descer da fazenda até aqui (o anúncio de venda refletia-se na superfície da água), no verão de 1662. Os soldados nunca nos viram da estrada. Fazia muito calor. Deitávamo-nos bem à vontade. Ela estava escondida com seu amado nos juncos, rindo para dentro do poço e nele furtivamente introduzindo ideias de amor eterno, de ardentes beijos e desespero. Já eu era felicíssimo, disse outro pensamento, resvalando animadamente por cima do desespero da moça (pois ela tinha se afogado). Costumava pescar aqui. Nunca pegamos a carpa-gigante, porém a vimos uma vez - no dia em que Nelson lutou em Trafalgar. Estava ali sob o salgueiro - dou a minha palavra! Que colosso que era! dizem que jamais foi pescada. Ai, ai de mim, suspirou uma voz, a se esgueirar por sobre a do rapaz. Voz assim tão tristonha devia vir bem lá do fundo do poço, pois alteando-se ela se sobrepunha às demais, como uma concha suspende tudo que encontra numa vasilha com água. Essa era a voz que todos nós desejávamos ouvir. As outras, sem exceção, suavemente deslizaram para a beira do poço afim de ouvir a voz que - parecendo tão triste - devia com certeza saber a razão de tudo isso. Pois todas elas também queriam saber.

Chegando-se mais perto do poço, os juncos eram afastados para poder se ver mais fundo, através dos reflexos, através das faces, através das vozes, até o fundo em si mesmo. Mas lá, por baixo do homem que estivera na Exposição; da moça que se afogara; do rapaz que vira o peixe; e da voz que exclamava ai, ai de mim! Sempre havia todavia algo mais. Sempre outra face, outra voz. Um pensamento vinha e cobria outro. Pois, embora haja momentos em que uma concha se mostra a ponto de suspender todos nós à luz do dia, com nossos pensamentos e anseios e indagações e confissões e desilusões, de algum modo a concha deixa alguma coisa escapar e uma vez mais nós escorremos de volta pela beira do poço. E uma vez mais todo seu centro é coberto pelo reflexo do cartaz que anuncia a venda da Fazenda e Moinho Romford. É por isso talvez que gostamos de nos sentar para contemplar os poços.


Virgínia Woolf, O fascínio do poço
(V. Woolf, Contos Completos, p.323-325 - Tradução: Leonardo Fróes)

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Virgínia Woolf, Um teto todo seu

... Enquanto ponderava, eu tinha estado inconscientemente traçando, em meu desânimo, em meu desespero, um quadro, no lugar em que, como meu vizinho, deveria estar escrevendo uma conclusão. Estivera desenhando um rosto, um corpo. Eram o rosto e o corpo do professor Von X., empenhado em escrever sua obra monumental intitulada A inferioridade mental, moral e física do sexo femininoEle não era, em meu desenho, um homem atraente para as mulheres. Era de compleição pesada; tinha uma grande papada; para contrabalançar, olhos muito pequenos e rosto muito vermelho. Sua expressão sugeria que estava trabalhando sob alguma emoção que o fazia, ao escrever, espetar a caneta no papel como se estivesse matando algum inseto nocivo, mas, mesmo depois de tê-lo matado, isso não o satisfazia; precisava continuar a matá-lo; e ainda assim, persistia alguma causa para a raiva e a irritação. Seria sua esposa?, indaguei a mim mesma, examinando meu desenho. Estaria ela apaixonada por um oficial da cavalaria? Seria o oficial da cavalaria esbelto e elegante e coberto de astracã? Teria ele sido alvo, em seu berço — para adotar a teoria freudiana —, do riso de alguma menina bonita? Pois nem em seu berço, pensei, o professor não poderia ter sido uma criança atraente. Qualquer que fosse a razão, o professor ganhara uma aparência muito zangada e muito feia em meu esboço, enquanto escrevia seu grande livro sobre a inferioridade mental, moral e física das mulheres. Desenhar figuras é uma forma ociosa de concluir uma manhã de trabalho improfícuo. Entretanto, é em nosso ócio, nos nossos sonhos, que a verdade submersa às vezes vem à tona. Um exercício muito elementar de psicologia, que não deve ser honrado com o nome de psicanálise, mostrou-me, ao examinar meu caderno de anotações, que o esboço do professor zangado fora feito com raiva. A raiva se apossara de meu lápis, enquanto eu sonhava. Mas o que estaria a raiva fazendo ali? Interesse, confusão, divertimento, tédio — todas essas emoções eu conseguia rastrear e nomear à medida que se sucediam por toda a manhã. A raiva, a serpente negra, estivera emboscada entre elas? Sim, dizia o esboço, estivem. Ele me remeteu evidentemente àquele livro, àquela frase que havia despertado o Demônio: a afirmação do professor sobre a  inferioridade mental, moral e física das mulheres. Meu coração tinha dado um salto. As faces inflamaram-se. Eu enrubescera  de raiva. Por tolo que fosse, não havia nisso nada de especialmente notável. Não gostamos que nos digam que somos por natureza inferiores a um homenzinho — olhei para o estudante a meu lado — que respira com dificuldade, usa uma gravata comprada pronta e não se barbeia há duas semanas. A gente tem certas vaidade tolas. É apenas a natureza humana, refleti, e comecei a rabiscar rodas de carroça e círculos sobre o rosto do professor enraivecido até ele se parecer com uma moita queimando ou um cometa flamejante — de qualquer modo, uma aparição sem aspecto ou  significação humanos. O professor, agora, não era mais que um feixe de madeira ardendo no topo do Hampstead Heath. Logo minha própria raiva foi explicada e desfeita, mas restou a curiosidade. Como explicar a raiva dos catedráticos? Por que estariam zangados? Sim, pois, quando se tratava de analisar a impressão deixada por esses livros, havia sempre um elemento de calor. Esse calor assumia muitas formas; mostrava-se na sátira, no sentimento, na curiosidade, na reprovação. Mas havia um outro elemento muitas vezes presente e que não podia ser imediatamente identificado. Raiva, denominei-o. Mas era uma raiva que se tornara secreta e se misturara com todo tipo de outras emoções. A julgar por seus efeitos singulares, era uma raiva disfarçada e complexa, não raiva simples e franca.

Qualquer que seja a razão, todos esses livros, pensei, inspecionando a pilha sobre a escrivaninha, são imprestáveis para meus fins. Quer dizer, eram imprestáveis cientificamente, embora, em termos humanos, estivessem repletos de ensinamentos, interesse, tédio e fatos muito curiosos sobre os hábitos das ilhoas de Fiji. Tinham sido escritos à rubra luz da emoção, e não à branca luz da verdade. Portanto, deviam ser devolvidos à mesa central e repostos cada qual no próprio alvéolo do imenso favo de mel. Tudo o que eu havia recuperado do trabalho daquela manhã fora o dado sobre a raiva. Os professores — assim eu os tinha agrupado — estavam enraivecidos. Mas por quê?, perguntei a mim mesma depois de devolver os livros, por quê?, repeti, de pé sob a colunata, entre os pombos e as canoas pré-históricas, por que estariam zangados? E, formulando para mim mesma essa pergunta, fui-me afastando à procura de um local onde almoçar. Qual é a natureza real do que, por ora, chamo de raiva deles?, indaguei. Aí estava um quebra-cabeça que duraria todo o tempo que se leva para ser servido num pequeno restaurante das proximidades do Museu Britânico. Algum freguês anterior tinha deixado a edição do meio-dia do jornal vespertino sobre uma cadeira e, enquanto esperava ser atendida, comecei displicentemente a ler as manchetes. Uma manchete de tipos muito grandes atravessava a página. Alguém marcara um grande tento na África do Sul. Manchetes menores anunciavam que Sir Austen Chamberlain estava em Genebra. Um cutelo com fios de cabelo humano fora encontrado num porão. O senhor juiz. . . tecera comentários no Tribunal de Divórcios sobre o descaramento das mulheres. Espalhadas por todo o jornal vinham outras notícias. Uma atriz de cinema fora lançada de um pico na Califórnia e deixada suspensa no ar. O tempo ia ficar nublado. O mais transitório dos visitantes deste planeta, pensei, que apanhasse esse  jornal não poderia deixar de perceber, mesmo a partir desse testemunho disperso, que a Inglaterra está sob o domínio de um patriarcado. Ninguém de posse de suas faculdades poderia deixar de detectar a dominação do professor. Dele eram o poder, o dinheiro e a influência. Era ele o proprietário do jornal e seu redator e redator-assistente. Ele era o ministro do Exterior e o juiz. Era o jogador de críquete, era o proprietário dos cavalos de corrida e dos iates. Era o diretor da empresa que paga duzentos por cento a seus acionistas. Deixava milhões para instituições de caridade e universidades que ele mesmo dirigia. Ele suspendia a atriz de cinema no ar. Ele irá determinar se os fios de cabelo no cutelo são humanos; é ele quem irá absolver ou condenar o assassino, e enforcá-lo ou dar-lhe a liberdade. Com exceção da neblina, ele parecia controlar tudo. E mesmo assim, estava com raiva. Eu sabia que ele estava com raiva devido a esse sinal. Quando li o que escreveu sobre as mulheres, pensei não no que ele dizia, mas nele mesmo. Quando um argumentador argumenta desapaixonadamente, pensa apenas na argumentação, e o leitor não consegue deixar de pensar também no argumento. Se ele tivesse escrito imparcialmente sobre as mulheres, se tivesse usado provas inquestionáveis para estabelecer sua argumentação e não tivesse demonstrado sinal algum de desejar que o resultado fosse uma coisa e não outra, ninguém teria ficado com raiva também. Ter-se-ia aceitado o fato, como se aceita o fato de que a ervilha é verde e o canário, amarelo. Pois que seja assim, eu teria dito. Mas eu ficara com raiva porque ele estava com raiva. E, no entanto, parecia absurdo, pensei, virando as páginas do jornal vespertino, que um homem com todo esse poder ficasse enraivecido. Ou será que a raiva, indaguei-me, é de algum modo o duende familiar que acompanha o poder? Os ricos, por exemplo, estão sempre zangados por suspeitarem que os pobres querem apoderar-se de sua riqueza. Os professores ou patriarcas, como talvez fosse mais exato chamá-los, talvez estivessem zangados em parte por essa razão, mas em parte por outra situada de modo um pouco menos óbvio na superfície. É possível que não estivessem em absoluto "com raiva"; de fato, muitas vezes, talvez fossem enaltecedores, dedicados e exemplares nas relações da vida privada. Possivelmente, quando o professor insistia com ênfase demais na inferioridade das mulheres, não estava preocupado com a inferioridade delas, mas com sua própria superioridade. Era isso que ele estava protegendo de modo um tanto exaltado e com excessiva ênfase, pois era para ele uma joia do mais raro valor. A vida, para ambos os sexos — e olhei para eles a abrirem caminho, às cotoveladas, pela calçada —, é árdua, difícil, uma luta perpétua. Ela exige coragem e força gigantescas. Mais que tudo, talvez, sendo, como somos, criaturas da ilusão, ela exige autoconfiança. Sem a autoconfiança, somos como bebês no berço. E como podemos gerar essa qualidade imponderável, e apesar disso tão inestimável, da maneira mais rápida? Pensando que as outras pessoas são inferiores a nós mesmos. Sentindo que temos alguma superioridade inata — pode ser riqueza ou posição social, um nariz afilado ou o retrato de um avô pintado por Romney —, pois não há limite para os patéticos recursos da imaginação humana. . . sobre as outras pessoas. Daí a enorme importância para um patriarca que tem que conquistar, que tem que dominar, de sentir que um grande número de pessoas, a rigor, metade da raça humana lhe é por natureza inferior. De fato, essa deve ser uma das principais fontes de seu poder. Mas deixem-me voltar o foco dessa observação para a vida real, pensei. Será que ela ajuda a explicar alguns daqueles quebracabeças psicológicos que se observam à margem da vida cotidiana? Será que explica meu assombro do outro dia, quando Z, um sujeito extremamente humano, o mais despretensioso dos homens, pegando um livro de Rebecca West e lendo-lhe um trecho, exclamou: "Essa rematada feminista! Ela diz que os homens são esnobes!"? A exclamação, para mim tão surpreendente — pois por que seria a srta. West uma rematada feminista, por fazer uma afirmação possivelmente verdadeira, se bem que pouco elogiosa, sobre o sexo oposto? —, não era simplesmente o brado da vaidade ferida: era um protesto contra alguma violação de seu poder de acreditar em si mesmo. Em todos esses séculos, as mulheres têm servido de espelhos dotados do mágico e delicioso poder de refletir a figura do homem com o dobro de seu tamanho natural. Sem esse poder, a Terra provavelmente ainda seria pântano e selva. As glórias de todas as nossas guerras seriam desconhecidas. Estaríamos ainda rabiscando os contornos de cervos em restos de ossos de carneiro e trocando lascas de sílex por peles de carneiro ou outro qualquer ornamento singelo que agradasse a nosso gosto não sofisticado. Super-Homens e Dedos do Destino jamais teriam existido. O czar e o cáiser nunca teriam portado ou perdido coroas. Qualquer que seja seu emprego nas sociedade civilizadas, os espelhos são essenciais a toda ação violenta e heroica. Eis por que tanto Napoleão quanto Mussolini insistem tão enfaticamente na inferioridade das mulheres, pois, não fossem elas inferiores, eles deixariam de engrandecer-se. Isso serve para explicar, em parte, a indispensável necessidade que as mulheres tão freqüentemente representam para os homens. E serve para explicar quanto se inquietam ante a crítica que elas lhes fazem, como é impossível para a mulher dizer-lhes que esse livro é ruim, esse quadro é fraco, ou seja lá o que for, sem magoar muito mais e despertar muito mais raiva do  que um homem formulando a mesma crítica. É que, quando ela começa a falar a verdade, o vulto no espelho encolhe, sua aptidão para a vida diminui. Como pode ele continuar a proferir julgamentos, civilizar nativos, fazer leis, escrever livros, arrumar-se todo e deitar falação nos banquetes, se não puder se ver no café da manhã e ao jantar com pelo menos o dobro do seu tamanho real? Assim refleti eu, esfarelando o pão e mexendo o café e olhando vez por outra para as pessoas na rua. A visão no espelho é de suprema importância, pois insufla vitalidade, estimula o sistema nervoso. Retirem-na, e o homem pode morrer, como o viciado em drogas privado de sua cocaína. Sob o feitiço dessa ilusão, pensei, olhando para fora da janela, metade das pessoas na calçada segue para o trabalho. Elas põem chapéus e casacos pela manhã sob sua agradável luminosidade. Começam o dia confiantes, revigoradas, acreditando-se desejadas no chá da sra. Smith; dizem a si mesmas, ao entrarem na sala: Sou superior à metade das pessoas aqui, e é assim que falam, com aquela autoconfiança e aquela auto-segurança de tão profundas conseqüências na vida pública e que conduziram a atitudes tão curiosas à margem da própria vontade.


Virgínia Woolf, Um teto todo seu

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Felicidade

Quando Stuart Elton se dobrou para tirar de sua calça, com um peteleco, um fio branco, o gesto banal, seguido como foi por um deslizamento e avalanche de sensação, assemelhou-se a uma pétala de rosa caindo, e Stuart Elton, ao se endireitar para retomar a conversa com mrs. Sutton, sentiu-se constituído de pétalas, muitas, firme e compactamente sobrepostas umas às outras, e todas avermelhadas, todas de lado a lado aquecidas, todas colorizadas por esse inexplicável brilho. Caiu pois uma pétala, assim que ele se dobrou. Nunca havia sentido isso – não  - quando era jovem, e agora, aos quarenta e cinco anos, bastou ele se dobrar para tirar um fio da calça para que impetuosamente isso descesse a vará-lo, essa bela e ordeira percepção de vida, esse deslizamento, essa avalanche de sensação, estar em sintonia com o todo, quando voltou a se aprumar recomposto -  mas o que era que ela estava dizendo?

Mrs. Sutton (arrastada pelos cabelos ainda por cima dos restolhos e pelos altos e baixos da terra lavrada da meia-idade em princípio) estava dizendo que empresários lhe haviam escrito e até marcado encontros com ela, mas que nada dera em nada. Tudo para ela se tornava assim tão difícil porque não tinha ligações normais com o teatro, já que seu pai e toda a sua família eram pessoas simples do interior. (Foi então que Stuart Elton tirou o fio da calça.) Ela parou; sentiu-se reprovada. Mas Stuart Elton, sentiu também, quando o viu dobrar-se, tinha o que ela queria. E, quando ele se reergueu, procurou desculpar-se – dizendo que falava muito de si – e acrescentou:
“ você me parece ser, de longe, a pessoa mais feliz que eu conheço”.
O que soava em curiosa harmonia com o que ele tinha pensado e com a impressão de suave deslizamento de vida seguido de reajuste ordeiro, a impressão da pétala caindo e de uma rosa completa. Mas seria isso “felicidade”? Não. A palavra tão grande não parecia encaixar-se, não parecia referir-se àquele estado de ser que espiralava em lâminas rosadas em torno de uma Luz refulgente. Fosse como fosse, disse mrs. Sutton, de todos os seus amigos ele era o que ela mais invejava. Ele parecia ter tudo; ela, nada. Ambos contaram – cada qual tinha dinheiro bastante; ela, um marido e filhos; ele, sua solteirice; ela estava com trinta e cinco anos; ele, com quarenta e cinco; ela nunca adoecera na vida e ele, como disse, era efetivamente mártir de alguma complicação interna – sonhava o dia todo em comer lagosta, mas não podia nem tocar em lagosta. Ora essa! Ela exclamou, como se enfiasse os dedos nalguma. Para ele, até sua própria doença era motivo de riso. Seria isso contrabalançar as coisas, ela perguntou? Seria senso de proporção, seria? Seria o quê, perguntou ele, sabendo muito bem o que ela queria dizer, mas acautelando-se diante dessa mulher insensata e destrutiva com seus modos estouvados, seu vigor e seus dissabores, que gostava de um rolo e travava escaramuças, que era capaz de abater e desfazer essa própria fruição tão valiosa, essa percepção do existir – duas imagens lhe vieram de relance e simultaneamente à cabeça – uma bandeira ao vento, uma truta num rio – equilibradas, balançadas, num fluxo de sensação límpida fresca clara luminosa lúcida tilintante invasiva que como o ar ou o rio mantinha de tal modo aprumado que, caso ele movesse a mão, caso se dobrasse ou dissesse qualquer coisa, desalojaria a pressão dos inumeráveis átomos de felicidade que se uniam para suspendê-lo de novo.
“Você não liga para nada”, disse mrs. Sutton. “Não se altera com nada”, ela disse desajeitadamente, lambuzando-o à volta de respingos e sobras como um homem que aqui e ali bota massa tentando assentar tijolos, enquanto ele permanecia lá bem calado, bem reservado, bem secreto; tentando extrair alguma coisa dele, uma pista, uma chave, uma orientação, invejando-o, indignando-se com ele e sentindo que, se ela, com seu alcance emocional, sua paixão, sua capacidade, suas prendas, tivesse isso acrescido a si, poderia ser de imediato a própria rival de mrs. Siddons. Ele não lhe diria; devia dizer-lhe.
“Hoje à tarde fui a Kew”, ele disse, dobrando o joelho para dar-lhe um peteleco de novo, não porque ali houvese um fio branco, mas para certificar-se, ao repetir o gesto, de que sua máquina, tal como estava, estava em ordem.
Assim alguém, perseguido numa floresta por lobos, rasgaria pedaços da própria roupa e quebraria uns biscoitos para atirá-los às infelizes feras, sentindo-se quase mas não de todo seguro em seu alto e veloz protegido trenó.
Acossado pela esfomeada alcateia que lhe vinha no encalço, preocupando-se agora com o pedacinho de biscoito que lhes tinha jogado – com aquelas palavras “Hoje à tarde fui a Kew”  -  Stuart Elton se lançou diante dos lobos em desabalada carreira para um regresso a Kew, ao pé de magnólia, ao lago, ao rio, levantando bem a mão para espantá-los. Em meio às feras ( pois o mundo parecia repleto de uivantes lobos agora), lembrou-se de pessoas que lhe faziam convites para almoçar ou jantar, ora aceitos, ora não, e da impressão que lá tivera, na faixa ensolarada de grama em Kew, de completo domínio, de ser tão simples manejar a bengala quanto escolher isso ou aquilo, ir ali ou acolá, quebrar biscoitos em pedaços e arremessá-los às feras, ler tal coisa, olhar tal outra, encontrar qualquer um ou uma, alojar-se em aposentos de algum bom companheiro – “A Kew sozinho?”, repetiu mrs. Sutton. “Só você mesmo?”
Ah, a loba gritou no seu ouvido. Ah! Suspirou ele, enquanto por um instante pensava no ah suspirado nessa tarde à beira do lago, perto de uma mulher que bordava um pano branco debaixo de uma árvore e gansos que bamboleavam passando, pois ele tinha suspirado ao ver a cena de sempre, namorados de braços dados, lá onde havia agora essa paz, a saúde que tinha sido uma vez lá ruína temporal desespero; assim de novo essa loba mrs. Sutton o fazia lembrar-se; sozinho sim; toalmente sozinho; mas ele se refez, como havia então se refeito quando os jovem passam, agarrando-se a isso, a isso, fosse lá o que isso era, e apertando-o contra si para seguir em frente, com pena deles.
“totalmente sozinho”, repetiu mrs. Sutton. E disse que era isso que ela não podia entender, num desesperado arremesso de sua cabeça coroada por cabelo escuro brilhante – ser feliz estando totalmente só.
“Sim”, ele disse.
Na felicidade há sempre essa exaltação espantosa. Não é animação; nem arroubo; nem louvor, celebridade ou saúde (ele não conseguia andar três quilômetros sem se sentir estafado), é um estado místico, um transe, um êxtase que, embora ele fosse ateu, cético, não batizado e tudo mais, tinha, suspeitava, certa afinidade com o êxtase que transformava homens em padres, que levava mulherees no vigor da mocidade a se arrastar pelas ruas com rufos engomados que mais pareciam ciclames rodeando seus rostos e lhes empedrava os olhos e os lábios; mas com uma diferença; àqueles, isso aprisionava;  a ele punha em liberdade. Deixava-o livre de toda dependência de qualquer um e qualquer coisa.
Mrs. Sutton também sentia isso, enquanto esperava que ele falasse.
Sim ele iria parar o seu trenó e saltar, deixar que os lobos se ajuntassem todos em volta, fazer afagos nos seus pobres e rapaces focinhos.
“Kew estava uma beleza – cheio de flores – magnólias azaleias”, ele nunca conseguia se lembrar dos nomes e disse assim para ela.
Não era nada que eles pudessem destruir. Não; mas se era algo que vinha de modo tão inexplicável assim, assim poderia ir-se, como ele havia sentido ao sair de Kew, ao subir a pé beirando o rio até Richmond. Um galho, por que não?, poderia a cor se alterar; o verde tornar-se azul; ou uma folha estremecer; e isso já seria bastante; sim; já seria bastante destroçar-se, despedaçar-se, destruir a fundo essa espantosa coisa o milagre, esse tesouro que foi dele tinha sido dele era dele deveria ser sempre dele, pensou ficando impaciente e ansioso e sem pensar em mrs. Sutton deixou-a bruscamente e andou atravessando a sala para apanhar um cortador de papel. Sim; tudo bem. Ele ainda o tinha.


Felicidade, Virgínia Woolf

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

A dama no espelho: reflexo e reflexão



Ninguém deveria deixar espelhos pendurados em casa, assim como não se devem deixar abertos talões de cheques ou cartas que confessem algum crime horroroso. Era impossível não olhar, naquela tarde de verão, no grande espelho que havia no vestíbulo, pendurado para fora. Pura combinação do acaso. Da profundeza do sofá na sala de visitas, podiam-se ver não só, refletidos no espelho italiano, a mesa de tampo de mármore que estava em frente, mas também uma nesga do jardim além. Podia-se ver uma longa trilha de grama que se estendia entre moitas de flores altas até ser cortada em ângulo pela moldura dourada.

Estando a casa vazia, sentia-se alguém, sendo esse alguém a única pessoa na sala de visitas, como um desses naturalistas que, cobertos de capim e folhas, deitam para observar os animais mais tímidos - texugos, lontras, martins-pescadores - e, por não serem vistos, podem se mover à vontade. Nessa tarde a sala estava cheia de tais criaturas tímidas, luzes e sombras, cortinas ao vento, pétalas caindo - coisas que nunca acontecem, ao que parece, se alguém estiver olhando. A velha e calma sala campestre, com seus rústicos tapetes e a lareira de pedra, suas estantes afundadas e os armários de laca, em vermelho e ouro, estava cheia dessas criaturas noturnas. Vinham elas em piruetas pelo assoalho, pisando delicadamente com pés bem levantados, caudas bem abertas e bicos alusivos bicando como se fossem grous ou garças ou grupos de elegantes flamingos cuja cor desbotou, ou leques de pavões raiados de prata. E havia também uns pontos negros e jatos obscuros, como se repentinamente uma siba impregnasse o ar de sépia; e a sala tinha suas paixões e invejas e raivas e mágoas a sobrepujá-la e encobri-la, como um ser humano. Nada continuava o mesmo em dois segundos juntos.

Mas, pelo lado de fora, o espelho refletia a mesa da entrada, os girassóis e a trilha do jardim com tanta fixidez e exatidão, que tais coisas pareciam mesmo estar lá, em sua inescapável realidade. Era um contraste estranho - aqui tudo mudado e lá, tudo parado. Era impossível não olhar de um para o outro. Enquanto isso, como todas as portas e janelas estavam abertas com o calor, havia um perpétuo som de suspirar e parar, a voz dos transientes, ao que parecia, e dos que se extinguem, indo e vindo como o fôlego humano, ao passo que no espelho as coisas tinham parado de respirar e jaziam imóveis no transe da imortalidade.

Meia hora antes a dona da casa, Isabella Tyson, tinha descido pela trilha de grama, com uma cesta, em seu leve vestido de verão, e sumiu, cortada pela moldura do espelho. Provavelmente fora ao jardim colher flores; ou, como parecia mais natural supor, colher alguma coisa leve e fantástica e rastejante e folhuda, uma clematite ou uma dessas elegantes ramagens de ipomeia que se enroscam em muros desgraciosos para aqui e ali desabrocharem em flores roxas e brancas. Sugeria ela a fantástica e trêmula ipomeia, mais do que o aprumado áster, a engomada zínia ou suas próprias e ardentes rosas, que se acendiam como lâmpadas nos postes retilíneos das roseiras. A comparação mostra quão pouco se sabia a respeito dela, depois de todos esses anos; pois é impossível qualquer mulher de carne e osso, de cinquenta e cinco ou sessenta anos, ser tomada realmente por ramalhete ou gavinha. Tais comparações não são apenas vãs e superficiais - pior que isso, chegam atá a ser cruéis por virem a se interpor tremendo, como a própria ipomeia, à verdade e aos olhos. Deve haver uma verdade; deve existir um muro. No entanto era estranho que, conhecendo-a depois de tantos anos, ninguém pudesse dizer qual a verdade referente a Isabella; frases como essas, sobre a ipomeia e a clematite, ainda tinham de ser feitas. No tocante aos fatos, tome-se por fato que ela era rica; que era uma solteirona; que comprara essa casa e com as próprias mãos juntara - não raro nos cantos mais remotos do mundo e a grande risco de picadas venenosas e doenças orientais - os tapetes, s cadeiras, os armários que agora levavam sua vida noturna diante dos olhos do observador. Parecia às vezes que os móveis sabiam mais sobre ela do que a nós, que aí nos sentávamos, que aí escrevíamos e que aí pisávamos com tanto cuidado, era permitido saber. Em cada um desses armários havia muitas gavetinhas, todas, com quase toda a certeza, contendo cartas em maços amarrados com elástico e perfumadas por ramos de lavanda ou folhas de rosa. Pois outro fato - se eram fatos que se queria - é que Isabella conhecera muitas pessoas, tinha tido muitos amigos; assim, alguém que tivesse a audácia de abrir uma gaveta para ler suas cartas encontraria vestígios de agitação sem conta, de compromissos a manter, de exprobações por o não ter feito, longas cartas de intimidade e afeição, cartas violentas de ciúme e censura, terríveis palavras finais de despedida - pois nenhum daqueles encontros e combinações de encontros levara a nada - ou seja, ela nunca se casara e no entanto, a julgar pela indiferença de máscara que lhe cobria o rosto, passara por um acúmulo de experiência e paixão vinte vezes maior do que o daqueles cujos amores são trombeteados para o mundo inteiro ouvir. Sob a tensão de pensar sobre Isabella, sua sala se tornava mais sombria e simbólica; os cantos pareciam mais escuros, as pernas das cadeiras e mesas, mais espichadas e hieroglíficas.

De súbito essas reflexões, sem que houvesse nenhum som, foram violentamente encerradas. Assomou ao espelho uma forma grande e negra que eclipsou tudo o mais; que espalhou sobre a mesa um monte de plaquinhas de mármore, raiadas de rosa e cinza, e se foi. Mas o quadro se alterou por completo. No primeiro momento, era irreconhecível, irracional e inteiramente desfocado. Não havia como relacionar tais plaquinhas a qualquer objetivo humano. Porém, depois, certo processo lógico começava pouco a pouco a entrar em ação a seu respeito, para ordená-las e arrumá-las e trazê-las no âmbito da experiência comum. Por fim se perceberia que não eram senão cartas. O homem tinha trazido o correio.

Sobre a mesa de tampo de mármore, lá estavam elas, todas a princípio pingando luz e cor, não digeridas nem assimiladas. E era estranho então ver como se contraíam, se harmonizavam, se compunham e se tornavam parte do quadro, recebendo aquela quietude e imortalidade que o espelho conferia. Jaziam investidas de uma nova realidade, de uma nova significação e também de mais peso, como se fosse necessário um formão para desalojá-las da mesa. E, quer isso fosse ou não fantasia, pareciam ter se tornado, não simplesmente um punhado de cartas eventuais, mas sim plaquinhas gravadas com a verdade eterna - sendo possível lê-las, saber-se-ia tudo que havia para ser sabido sobre Isabella, sim, e também sobre a vida. Dentro daqueles envelopes de aparência marmórea, as folhas deviam ser cortadas a fundo e densamente eivadas de sentido. Isabella viria para os apanhar um a  um, bem devagar, abri-los para ler com atenção, palavra por palavra, e depois, com um profundo suspiro de compreensão, como se ela já tivesse visto a essência de tudo, rasgar os envelopes em pedacinhos, amarrar as cartas juntas e fechar a chave da gaveta do armário, em sua determinação de ocultar o que não desejava que se tornasse notório.

Tal ideia servia como um desafio. Isabella não queria ser conhecida - mas não conseguiria mais escapar. Era absurdo, era monstruoso. Se ela sabia tanto e ocultava tanto, a alternativa que restava era abri-la à força com a primeira ferramenta de que se dispunha - a imaginação. Nesse exato momento, era preciso fixar a atenção nela. Era preciso retê-la, segurá-la ali onde estava. Recusar-se a continuar a ser descartado por dizeres e afazeres que a ocasião produzia - por jantares e visitas e conversas polidas. Era preciso pôr-se em sua pele, saber onde lhe apertava o sapato. A se tomar literalmente a frase, seria fácil ver os sapatos nos quais estava metida, lá embaixo no jardim, nesse momento. Eram muito estreitos e compridos e à moda - feitos do mais macio e flexível couro. Como tudo que ela usava, eram refinadíssimos. E ela haveria de estar na pona dos pés, sob a alta cerca-viva na parte mais baixa do jardim, erguendo a tesoura que trazia presa à cintura para cortar uma flor seca ou um galho que crescera demais. O sol lhe bateria, em cheio no rosto, nos olhos; mas não, no momento crítico um véu de nuvem cobriria o sol, tornando duvidosa a expressão de seus olhos - seria essa de ternura ou de troça, de fulgor ou de enfado? Podia-se ver apenas o indeterminado contorno de seu rosto fino e definhado a olhar para o céu. Ela esta pensando, talvez, que tinha de encomendar uma nova proteção para os morangueiros; que tinha de mandar flores à viúva de Johnson; que já era tempo de ir fazer uma visita aos Hippesleys em sua nova casa. Dessas coisas, com certeza, é que falava no jantar. Mas as coisas das quais ela falava no jantar eram cansativas. Seu modo mais profundo de ser é que se queria captar e converter em palavras, o modo que para o espírito é o que é a respiração para o corpo, o que se chama de felicidade ou infelicidade. À menção dessas palavras se tornava óbvio, decerto, que ela devia ser feliz. Era rica; era distinta; tinha muito amigos; viajava - comprava tapetes na Turquia e vasos azuis na Pérsia. Aleias de prazer por aqui e ali se aclaravam onde ela erguia a tesoura para podar ramos trêmulos, enquanto as nuvens rendadas lhe velavam a face.

Então com um brusco manejo da tesoura ela cortou o ramalhete de clematite, que caiu no chão. Ao cair, trouxe junto sem dúvida um pouco de luz também, permitindo penetrar ainda mais em sua vida e pessoa. Ternura e remorso enchiam-lhe a essa altura o espírito... Podar um ramo que crescera demais a entristecia, porque nele houvera vida e a vida lhe era cara. Sim, e, ao mesmo tempo, a queda do ramo sugeria que ela também haveria de morrer, que tudo era futilidade e evanescência das coisas. E mais uma vez então, agarrando-se a essa ideia com seu bom senso instantâneo, ela pensou que a vida a tinha tratado bem; sua queda, ainda que inevitável, seria para jazer na terra e suavemente  aprodrecer nas raízes das violetas. Assim pois, ali em pé, ela ficou pensando. Sem formular qualquer ideia precisa - porque era uma dessas pessoas cujas mentes têm pensamentos enredados em nuvens de silêncio -, via-se repleta de ideias. Sua mente era como sua sala, na qual as luzes avançavam e retrocediam, fazendo piruetas, dando passos delicados, desdobrando caudas e abrindo espaço a bicadas; todo seu ser era banhado, como de novo a própria sala, pela nuvem de algum conhecimento profundo, algum lamento não expresso, e ela se via então cheia de gavetas trancadas, recheada de cartas como seus armários. Falar de "abri-la à força" como se ela fosse uma ostra, aplicar-lhe qualquer ferramenta que não a mais maleável, a mais afiada e penetrante, seria absurdo e ímpio. Era preciso imaginar - ei-la que aparecia no espelho. E isso causava um sobressalto.

A princípio ela estava tão distante que era impossível vê-la com nitidez. Andava lenta e pausadamente, ora endireitando uma rosa, ora levantando um cravo para cheirá-lo, mas não parava nunca; e de instante a instante tornava-se maior no espelho, de modo a completar-se cada vez mais a pessoa em cuja mente se tentava entrar há algum tempo. Gradualmente o observador a examinava - ajustando as características que havia descoberto naquele corpo visível. Lá estavam seu vestido verde-cinza, seus sapatos compridos, sua cesta e algo que cintilava em seu pescoço. Tão devagar ela vinha que nem parecia desarranjar a própria imagem no espelho, mas tão-só lhe acrescentar algum elemento novo que suavemente se movia e alterava os demais objetos, como se lhes pedisse, com polidez, que dessem espaço para ela. E assim as cartas e a mesa e a trilha de grama e os girassóis, que se achavam à espera no espelho, apartavam-se abrindo caminho para admiti-la em seu meio. Finalmente lá esta ela, no vestíbulo. E ali parou completamente. Parou em pé junto à mesa. Parou sem nem se mexer. De imediato o espelho passou a verter por cima dela uma luz que a parecia fixar; deixando apenas a verdade. Era um fascinante espetáculo. Tudo de si caía - nuvens, vestido, cesta, diamante -, tudo que se havia chamado de trepadeira e ipomeia. Ali estava a parede dura por trás. Ali estava a própria mulher; desnuda e em pé na luz impiedosa. E nada havia. Isabella esta completamente vazia. Não tinha ideias. Não tinha amigos. Não se importava com ninguém. Quanto às suas cartas, não eram senão contas. Via-se, nisso que ela ali se plantava, angulosa e idosa, enrugada e veiada, com seu nariz empinado e estrias pelo pescoço, que nem sequer se preocupava em abri-las.

Ninguém deveria deixar espelhos pendurados em casa.


Virginia Woolf, A dama no espelho: reflexo e reflexão
Contos Completos, pág.312-321, Tradução: Leonardo Fróes

sábado, 4 de agosto de 2012

Azul e Verde



Verde


Os dedos de vidro pendurados apontam para baixo. A luz, ao deslizar pelo vidro, derrama uma poça verde. O dia inteiro os dez dedos do lustre derramam verde no mármore. As penas dos periquitos — seus gritos dissonantes — cortantes lâminas de palmeiras — verdes também; verdes agulhas reluzindo no sol. Mas não para o duro vidro de gotejar sobre o mármore; sobre a areia do deserto as poças ficam suspensas; por elas cambaleiam camelos; as poças se assentam no mármore; juncos as margeiam; e ervas se grudam nelas; aqui e ali uma flor branca; o sapo salta por cima; de noite as estrelas são afixadas intactas. Aproxima-se a noite, e o verde, varrido pela sombra, vai para cima da lareira; a superfície enrugada do oceano. Não há navios chegando; as ondas a esmo balançam sob o céu vazio. A noite avança; das agulhas agora pingam traços de azul. O verde ficou de fora.

Azul

O monstro de nariz achatado surge na superfície e esguicha por suas rudes narinas duas colunas de água que, de um branco ardente no centro, ao redor se espalham numa orla de borrifos azuis. A tela preta do seu couro é riscada por pinceladas azuis. Enchendo-se de água pela boca e as narinas, pesado de tanta água ele afunda, e o azul se fecha sobre ele, a procurar por artes mágicas os seixos polidos dos seus olhos. Lançado à praia ei-lo que jaz, rude, obtuso, soltando escamas secas e azuis. O azul metálico delas mancha na praia o ferro enferrujado. São azuis as nervuras do barco a remo que afundou. Sob os sinos azuis rola uma onda. Mas é diferente o da catedral, frio, cheio de incenso, um azul desmaiado, com véus de madonas.

Virginia Woolf , Contos Completos

*****

Blue and Green 

Green

The ported fingers of glass hang downwards. The light slides down the glass, and drops a pool of green. All day long the ten fingers of the lustre drop green upon the marble. The feathers of parakeets — their harsh cries — sharp blades of palm trees — green, too; green needles glittering in the sun. But the hard glass drips on to the marble; the pools hover above the dessert sand; the camels lurch through them; the pools settle on the marble; rushes edge them; weeds clog them; here and there a white blossom; the frog flops over; at night the stars are set there unbroken. Evening comes, and the shadow sweeps the green over the mantelpiece; the ruffled surface of ocean. No ships come; the aimless waves sway beneath the empty sky. It’s night; the needles drip blots of blue. The green’s out.

Blue

The snub-nosed monster rises to the surface and spouts through his blunt nostrils two columns of water, which, fiery-white in the centre, spray off into a fringe of blue beads. Strokes of blue line the black tarpaulin of his hide. Slushing the water through mouth and nostrils he sings, heavy with water, and the blue closes over him dowsing the polished pebbles of his eyes. Thrown upon the beach he lies, blunt, obtuse, shedding dry blue scales. Their metallic blue stains the rusty iron on the beach. Blue are the ribs of the wrecked rowing boat. A wave rolls beneath the blue bells. But the cathedral’s different, cold, incense laden, faint blue with the veils of madonnas.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Segunda ou Terça


 Preguiçosa e indiferente, arredando espaço de suas asas com a maior facilidade, e sabendo o caminho, a garça passa embaixo do céu por sobre a igreja. Branco e distante, absorto em si mesmo, infinitamente o céu cobre e descobre, fica e se afasta. Um lago? Apague logo sua margem! A montanha? Oh é perfeita - durando ao sol sua encosta. Ora desce, descai. E depois samambaias, ou penas brancas, incessantemente...

Desejando a verdade, à espera dela, destilando laboriosamente algumas palavras, desejando sem parar - (parte um grito da esquerda, depois outra à direita. Movem-se rodas que divergem. Ônibus se aglomeram em conflito) - sem parar desejando - ( O relógio assevera com doze badaladas distintas é meio-dia; escamas de ouro se desprendem da luz; crianças se embolam) – desejando eternamente a verdade. Vermelha é a cúpula; há moedas penduradas nas árvores; a fumaça se espicha pelas chaminés; clamam, berram , gritam “ferro à venda” – e a verdade?

Propagando-se até um ponto nos pés de homens e mulheres, com incrustações douradas ou negras – (Esse tempo nevoento – Açúcar? Não, obrigado – A comunidade do futuro) -, a luz do fogo se arremessa e avermelha toda a sala, exceto as figuras negras e seus brilhantes olhos, enquanto lá fora um carro carrega, miss Thingummy toma chá à sua mesa e casacos de pele são preservados em vidro...

Agitada, folha-luz, levada pelas esquinas, soprada por entre as rodas, salpicada de prata, em cãs ou fora da casa, juntada, espalhada, derramada em separadas escamas, varrida para lá e para cá, dilacerada, deprimida, reunida – e a verdade?

Agora refazer-se ao lado do fogo no quadrado branco de mármore. Vindas de ebúrneas profundidades, palavras soltam seu negrume ao se erguer, florescem, penetram. Caído o libro; na chama, na fumaça, nas fagulhas momentâneas – ou agora viajando, o quadrado de mármore pendente, por baixo minaretes e os mares da India, enquanto o espaço corre azul e as estrelas cintilam – a verdade? Ou, agora, satisfação com a reclusão?

Preguiçosa e indiferente a garça retorna; o céu cobre com véu suas estrelas; depois desnudá-las.


Virgínia Woolf

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Casa Assombrada

A qualquer hora que você acordasse havia alguma porta batendo. De quarto em quarto eles iam, e de mãos dadas, erguendo aqui, abrindo ali, certificando-se - um casal de fantasmas.

"Deixamos aqui", ela disse, E ele acrescentou: "Oh, mas aqui também!". "No andar de cima", murmurou ela. "E no jardim", sussurrou ele. "Silêncio", disseram ambos, "porque senão vamos acordá-los".

Mas não era que nos acordassem. Oh não. "Eles estão procurando; estão abrindo a cortina", bem que eu poderia dizer,e assim ler ainda uma ou duas páginas. "Agora acharam", saberia então com certeza, parando o lápis na margem. E aí, cansada de ler, poderia me levantar para ir ver com meus olhos a casa toda vazia, as portas todas abertas, só as pombas da mata borbulhando de contentamento e a zoada da máquina de debulhar que vem da fazenda. "Por que foi que entrei aqui? O que era que eu queria encontrar?" Minhas mãos estão vazias. "Talvez lá em cima?" As maçãs estavam no sótão. E assim de novo para baixo, o jardim tranquilo como sempre, só o livro que escorregou para a grama.

Na sala de visitas o encontraram porém. Sem que alguém pudesse vê-los jamais. As vidraças refletiam maçãs, refletiam rosas; todas as folhas eram verdes no vidro. A maçã se limitava a virar seu lado amarelo, se as folhas se mexessem na sala. Entretanto, no momento seguinte, se a porta fosse aberta, estendia-se no chão, descia pelas paredes, pendia do teto - o quê? Minhas mãos estavam vazias. A sombra de um tordo atravessou o tapete; dos poços de silêncio mais fundos a pomba da mata extraiu sua bolha de som. "Em segurança, em segurança", suavemente bate o pulso da casa. "O tesouro enterrado; o quarto..." para o pulso de repente. Oh, então era o tesouro enterrado?

Um momento depois a luz se apaga. Talvez lá fora no jardim? Mas as árvores protelam a escuridão por causa de um peregrino raio de sol. Tão fino, tão raro, cravado tão friamente sob a superfície, o raio que eu sempre procurei queimava além da vidraça. A morte era o vidro; a morte estava entre nós dois; primeiro indo à mulher, há centenas de anos, deixando a casa, lacrando todas as janelas; os quartos se escureciam. Ele as deixava, mulher e casa, ia para o Norte, ou para o Leste, viu o giro das estrelas no céu do sul; procurou pela casa, achou-a afundada na região dos Downs. "Em segurança, em segurança", batia alegremente o pulso da casa. "O tesouro é seu".

O vento ruge na alameda. As árvores encurvam, dobram-se de variadas maneiras. O luar se esparrama e respinga forte na chuva. Mas direto da janela vem o facho de luz. A vela queima tesa e quieta. Pervagando pela casa, abrindo as janelas, cochichando para não nos despertar, o casal de fantasmas procura sua alegria.

"Aqui nós dormimos", diz ela. E ele acrescenta: "Beijos sem conta". "Acordando de manhã..." com o prateado entre as árvores..." "Lá em cima..." "Lá no jardim..." "Quando o verão chegou..." "Na época de neve do inverno..." E bem ao longe as portas vão se fechando, batendo levemente com um coração a pulsar.

Eles chegam mais perto; param na entrada. O vento sopra, a chuva escorre prateada no vidro. Nossos olhos se toldam; não ouvimos passos ao lado; não vemos mulher alguma abrindo sua fantasmal vestimenta. Já ele protege o lampião com as mãos. "Olhem só", sussurra. "Dormem a fundo. Com amor nos lábios."

Dobrando-se, mantendo acima de nós seu lampião de prata, longa e profundamente eles olham. Longa é a pausa que fazem. O vento impele certeiro; a flama enverga fragilmente. Fachos fortes de luar cruzam pelo chão e a parede e, ao se encontrarem, mancham as faces que se dobram; as faces que ponderam; as faces que revistam os dormentes e buscam sua oculta alegria.

"Em segurança, em segurança", bate orgulhoso o coração da casa. "Muitos anos..." suspira ele. "De novo você me achou". "Aqui" murmura ela, "dormindo; no jardim, lendo; rindo, rolando maçãs no sótão. Foi aqui que nós deixamos nosso tesouro..." Dobrando-se, sua luz ergue em meus olhos as pálpebras. "Em segurança! em segurança! em segurança!, bate descontrolado o pulso da casa. E eu, depertando, grito: "Oh, é isto o seu - tesouro enterrado? A luz no coração".


Virgínia Woolf, Casa Assombrada

terça-feira, 10 de abril de 2012

Virgínia Woolf, Orlando

Para abrir a janela, pousou a mão no peitoril: e ela instantaneamente se coloriu de vermelho, azul e amarelo, como a asa de uma borboleta. Assim, os que gostam de símbolos e têm queda para decifrá-los poderiam observar que, embora as lindas pernas, o belo corpo e os ombros bem feitos estivessem todos decorados com as várias cores da luz heráldica, o rosto de Orlando, ao abrir a janela, estava iluminado apenas pelo próprio sol. Seria impossível encontrar mais cândido e mais sombrio rosto. Feliz a mãe que engendra, e mais feliz ainda o biógrafo que registra a vida de um homem assim. Nem ela nunca se atormentará, nem ele terá de invocar o auxílio de novelistas ou poetas. Irá de empresa em empresa, de glória em glória, de cargo em cargo, seguido pelo seu escriba, até alcançarem aquele assento que representa o auge de seu comum desejo. (...) O vermelho das suas faces era coberto de uma penugem de pêssego; a penugem do buço era  apenas um pouco mais densa que a das faces. Os lábios eram finos e levemente repuxados sobre dentes de uma deliciosa brancura de amêndoa. Nada perturbava o breve, tenso voo do sagitado nariz; o cabelo era escuro, as orelhas pequenas e bem unidas à cabeça. Mas, ai de mim, que esses catálogos de beleza juvenil não poderiam terminar sem a menção dos olhos e da testa!  Ai de mim que as pessoas  raramente nascem sem esses três atributos! - pois, ao olharmos para Orlando parado à janela, temos de reconhecer que possuía olhos como violetas encharcadas, tão grandes que a água parecia chegar às bordas e alargá-los; e uma testa como a curva de uma cúpula de mármore, apertada entre os dois brancos medalhões das têmporas. Se olharmos para a sua testa e para os seus olhos, cairemos em êxtase. Se olharmos para a sua testa e para os seus olhos, teremos de reconhecer mil coisas desagradáveis, que todos os bons biógrafos se esforçam por ignorar. Perturbavam-no espetáculos como o de sua mãe, uma belíssima dama de verde, que saía a dar de comer aos pavões, com Twitchett, sua aia, atrás de si; exaltavam-no certos espetáculos - os pássaros e as árvores; e faziam-no enamorar-se da morte - o céu da tarde, as gralhas de retorno. E assim, subindo-lhe pela escada em espiral até o cérebro (que era espaçoso), todos esses espetáculos - e também os ruídos do jardim, o martelo a bater, a madeira cortada -, começou aquele tumulto e confusão de paixões e emoções que um bom biógrafo sempre detesta. Mas, prosseguindo: Orlando encolheu lentamente o pescoço, sentou-se à mesa, e, com o ar semiconsciente de quem está fazendo o que faz todos os dias de sua vida a essa hora, sacou de um caderno com o título: AE Thelbert; Tragédia em Cinco Atos, e mergulhou na tinta uma velha e manchada pena de ganso.
Em breve, tinha enchido de versos mais de dez páginas. Era fluente, sem dúvida, mas era abstrato. O vício, o Crime, a Miséria eram as personagem de seu drama; havia reis e rainhas de territórios impossíveis; horrendas intrigas os abatiam; nobres sentimentos os inundavam; não se dizia uma palavra como ele mesmo a teria dito; mas tudo estava expresso com uma fluência e uma doçura que, levando em conta a sua idade - ainda não tinha dezessete anos - e que o século XVI tinha ainda alguns anos para rodar, eram bastante notáveis. Mas afinal fez uma pausa. Estava descrevendo, como todos os poetas jovens sempre descrevem, a natureza, e, para determinar precisamente um tom de verde, olhou (e nisso mostrou mais audácia que muitos) para a própria coisa, que era um loureiro por baixo da janela. Depois disso, naturalmente, não pôde mais escrever. Uma coisa é o verde na natureza; outra coisa, na literatura. Entre a natureza e as letras parece haver uma natural antipatia; basta juntá-las para que se estraçalhem. O tom verde que Orlando agora via estragou-lhe a rima, quebrou-lhe o metro. Além disso, a natureza tem suas manhas. Basta olhar pela janela as abelhas entre as flores, um cão que boceja, o sol que se põe, basta pensar " quantos pores de sol verei ainda", etc, etc. (o pensamento é demasiadamente conhecido para que valha a pena escrever mais), e deixa-se cair a pena, toma-se uma capa e sai-se do quarto, a largos passos, e tropeça-se numa arca pintada. Porque Orlando era um pouco desajeitado.
Evitou cuidadosamente encontrar qualquer pessoa. Stubbs, o jardineiro, vinha andando pelo caminho. Escondeu-se atrás de uma árvore, até que ele tivesse passado. Esgueirou-se por um portinha do muro do jardim. Ladeou estábulos, canis, destilarias, carpintarias, lavanderias, os lugares onde se fabricam velas de sebo, (... ) , cosem gibões, porque a casa era uma cidade ressoante de homens trabalhando em vários ofícios - e alcançou, sem ser visto, o caminho de fetos que subia pelo parque. Há, talvez, um parentesco entre as qualidades; uma arrasta outra consigo, e o biógrafo chamaria aqui a atenção para o fato de que esse desajeitamento acompanha muitas vezes o amor à solidão. Tendo tropeçado numa arca, Orlando gostava naturalmente de lugares solitários, de vastas perspectivas, e de sentir-se para sempre, sempre e sempre sozinho.
Assim, depois de um longo silêncio, "Estou só", exalou por fim, entreabrindo pela primeira vez os lábios nessa narrativa. Tinha caminhado muito depressa, trepando por entre fetos espinheiros, espantando cervos e pássaros silvestres, até um lugar coroado por um carvalho solitário. Estava muito alto; tão alto, na verdade, que dezenove condados britânicos podiam ser avistados a seus pés; e, nos dias claros, trinta ou talvez quarenta, se o ar estivesse muito limpo. Às vezes, podia-se ver o canal da Mancha, onda sobre onda. Podiam-se ver os rios e os barcos de passeio neles deslizando; e galeões partindo para o mar; e frotas com penachos de fumo, das quais vinha o surdo ribombo dos canhões; fortificações na costa; e castelos no meio dos prados; e aqui uma  atalaia, e ali uma fortaleza, e ainda alguma vasta mansão como a do pai de Orlando, amontoada como uma cidade no vale cercado de muralhas. Para leste, ficavam as agulhas de Londres e a fumaça da cidade; às vezes, bem na linha do horizonte, quando o vento soprava uma boa direção, até o escarpado topo e o perfil dentado de Snowdon apareciam, montanhosos, entre as nuvens. Por um momento Orlando esteve contando, mirando, reconhecendo. Aquela era a casa de seu pai; aquela, a de seu tio. Sua tia era dona daqueles três grandes torreões, lá entre as árvores. Suas eram a charneca e a floresta; o faisão e o cervo, o lobo, o texugo e a borboleta. 
Suspirou profundamente e arrojou-se - havia uma paixão em seus movimentos que justifica a palavra - ao chão, aos pés do carvalho. Sob toda essa transitoriedade do verão, gostava de sentir debaixo do seu corpo o espinhaço da terra - pois assim se lhe afigurava a dura raiz do carvalho; ou, por sucessão de imagens, o lombo de um grande cavalo que ia cavalgando; ou a cobertura de um navio agitado - qualquer coisa, na verdade, contando que fosse firme, pois sentia necessidade de alguma coisa a que pudesse amarrar seu incerto coração, o coração que dava arrancos no seu peito; o coração que parecia cheio de perfumadas e amorosas brisas, todas as  tardes, àquela hora, quando saía a passeio.  Amarrou-o ao carvalho, e, ao descansar ali, o tumulto que sentia, dentro e em redor de si, gradualmente serenou; as pequenas folhas pendiam, o cervo parava; estacionavam as pálidas nuvens estivais, seus membros pesavam no chão; e tão imóvel se quedou que pouco a pouco os cervos se foram aproximando, e as gralhas giravam em torno de si, e as andorinhas baixavam em círculos, e as libélulas passavam num disparo, como se toda a fertilidade e a amorosa atividade de uma tarde de verão se fossem tecendo qual uma teia de aranha em redor do seu corpo.

Virgínia Woolf, Orlando

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Vou até a prateleira. Se escolho, leio meio página de qualquer coisa. Não preciso falar. Mas escuto. Estou maravilhosamente alerta. Certamente não se pode ler sem esforço esse poema. Muitas vezes a página está decomposta e manchada de lama, rasgada e grudada por folhas fanadas, fragmentos de verbena ou gerânio. Para ler esse poema é preciso ter miríades de olhos, como um daqueles faróis que giram sobre as águas agitadas do Atlântico à meia-noite, quando talvez somente uma réstia de algas marinhas fende a superfície, ou subitamente as ondas se escancaram e delas emerge algum monstro. É preciso pôr de lado antipatias e ciúmes, e não interromper. É preciso ter paciência e infinito cuidado e deixar também que se desdobre o tênue som, seja o das delicadas patas de uma aranha sobre uma folha, seja o da risadinha das águas em alguma insignificante torneira. Nada deve ser rejeitado por medo ou horror. O poeta que escreveu essa página (que leio em meio a pessoas falando) desviou-se. Não há vírgula nem ponto-e-vírgula. Os versos não seguem a extensão adequada. Muita coisa é puro contrassenso. É preciso ser cético, mas lançar ao vento a prudência, e, quando a porta se abrir, aceitar resolutamente. Também, por vezes, chorar; também cortar implacavelmente com um talho de lâmina a fuligem, a casca e duras excreções de toda a sorte. E assim (enquanto falam) baixar nossa rede mais e mais fundo, e mergulhá-la docemente e trazer à superfície o que ele disse e o que ela disse, e fazer poesia.


Virgínia Woolf, As Ondas

domingo, 4 de setembro de 2011




Desenho: Michel Vilela
Musica: Marco Antonio Guimarães
Texto: Virginia Woolf

quarta-feira, 10 de novembro de 2010


"Atrás de nós, encontra-se o sistema patriarcal; a casa privada, com sua nulidade, sua imoralidade, sua hipocrisia, seu servilismo. Diante de nós está o mundo público, o sistema profissional, com sua possessividade, seu ciúme, sua belicosidade, sua ganância. O primeiro nos cala como escravas em um harém; o outro nos força a girar, como lagartas, da cabeça à cauda, dando voltas e voltas na amoreira, a árvore sagrada, da propriedade. É uma escolha de males. Cada um deles é ruim."

Virginia Woolf , "Three Guineas"


terça-feira, 9 de novembro de 2010

"Man At The Window",Gustave Caillebotte.
"Preciso de silêncio, e de estar sozinho, e de sair, e de guardar uma hora para refletir sobre o que aconteceu ao meu mundo. Mas já começam os sinais, os chamados, as tentativas de me atrair de volta. A curiosidade é eliminada só por pouco tempo. Não se pode viver fora da engrenagem mais do que talvez meia hora.

 Virginia Woolf,  "As Ondas"

Sandra Bierman


Como é bela a bondade em quem, pisando de leve, passa sorrindo pelo mundo!

Virgínia Woolf


sábado, 6 de novembro de 2010

Richard Diebenkorn

"Quão melhor é o silêncio; a xícara de café, a mesa. Quão melhor é sentar-me sozinho como a solitária ave marinha que abre suas asas sobre a estaca. Deixem-me ficar sentado aqui para sempre com coisas nuas, esta xícara de café, esta faca, este garfo, coisas em si, eu mesmo sendo eu mesmo. Não venham preocupar-me com suas alusões a que é tempo de fechar a casa e partir. Eu daria de boa vontade todo o meu dinheiro para que vocês não me perturbassem, mas me deixassem ficar aqui sentado, para sempre, silencioso e só.”

Virginia Woolf , "As Ondas"


quinta-feira, 1 de julho de 2010

arte: Svetlana Melik-Nubarova


Há quem procure o padre, outros refugiam-se na poesia, eu procuro os meus amigos.

Virgínia Woolf