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segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Linhas Paralelas



Julgar é ato instintivo, ou, pelo menos, gesto irreprimível da consciência. Se geralmente o homem se dispensa do autojulgamento, é incurial que deixe de proferir sentença sobre o que os outros fazem ou deixam de fazer. Bem ou mal, benévola, correta ou iniquamente, todos decidem a respeito de tudo, do silêncio e do grito, do amor e do ódio, do sexo e da abstenção, da prudência e da audácia, da loquacidade e da discrição. Ainda que sob o disfarce da crítica ou debaixo de todas as ressalvas, os vereditos correm todos os sítios como alegria do espírito e necessidade dos temperamentos.

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Não eram ideias, nem religião, nem política, nem dinheiro, nem questões de liberdade, nem pontos de honra, nem covardia de déspotas, nem perseguições de trono, nem ódio de poderosos o que  obrigava Tote a fugir daquele modo. Vinha do fundo dos tempos, do princípio do infinito, do primeiro prazer do macho, da primeira queda da fêmea, a centelha que o flagiciava, centelha que surgiu antes da família, antes da sociedade, antes dos tabus, antes da inveja, antes da prepotência, antes dos príncipes, antes da riqueza, antes dos códigos, antes da hipocrisia, antes da glória. Essa chama faz história e sem ela, a história é intriga de anormais, trama política de lésbicos, acidente de eunucos, horror moral tecido nos espasmos da fria masturbação. Ela se desempenha no enxurro das nuvens, crepita nos raios do sol, treme nas gotas de orvalho, descansa no amarantino das sombras, dormita no imo das sementes, esconde-se na raiz das plantas, canta no néctar das flores, embriaga-se nos favos de mel, pulula e geme nos androceus da espécie humana.

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Na vida, as maldades somam acima do bem. Num átimo, toda uma existência perfeita pode dissolver-se ao assalto de uma perfídia. Nas encruzilhadas da existência se escondem, como cobras enroscadas em nichos de terra, as piores felonias, que agridem cegamente pelo prazer e pelo instinto de agredir. Os emboscadores de caminhos se ocultam até atrás de palavras e de sombras. Uma aparência é suficiente para protegê-los e entrincheirá-los. O simples viver feliz, ainda que longe da toca venenosa, constitui razão para excitá-los e depravá-los ainda mais. A ventura alheia, rara entre os homens, prêmio de sacrifícios e de méritos, ofende a inferioridade de seus destinos e o agigantado de sua covardia e de suas infâmias.”

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O complexo da culpa o impelia para o imprevisível, para um amanhã escondido nas  brumas do tempo, oculto pelos desvios da sorte. E ele ia desempenhar a arriscada missão de dar valentia ao filho, convencido de que agia com prudência, cumprindo religioso dever paterno. Sepultado no remorso de haver falhado por medo, persuadia-se de que, para não perder o filho ou para que ele não se visse colhido por igual fado, devia preencher todos os claros de sua coragem, tornando-a compacta e ardorosa, premunida contra sustos e titubeios. Confusamente, ambicionava engendrar o terror dos eventos, o castigo das ciladas, o senhor dos elementos, o exemplo dos homens. Sem capacidade de percepção, pretendia realizar  o que Deus não realizava ou corrigir o que Deus fazia imperfeito. A insânia tomava o lugar da Providência. A vida é tão louca que até os bons são loucos, ainda que por acaso. (...) ...ia, por novo amor, tresloucado que andava, precipitá-lo em caminhos cujos riscos era defeso adivinhar. A proteção do pai abastado e auto-suficiente cedia lugar aos cuidados de um pai que, mais do o que o filho, necessitava de atenções.

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O firmamento não o deixou fugir. Ao estampido ensurdecedor, seguiram-se golpes incontáveis e ininterruptos, desferidos do teto sagrado sobre sua cabeça e seu corpo. Era a chuva. Não era, propriamente, a chuva. Era uma chuva terrível, medonha, que desabava como forças líquidas em decidido ataque. Não chovia. Tombava um assalto, uma investida, um massacre de esguichos e golfões de água copiosa e desarrazoada.
Os rimbombos, rolantes como a calúnia e a maledicência , não cessavam. A abóbada estralejava, seguidamente , com brados precípites e multíssonos, uns dominando os outros em violência e terror. A eletricidade das nuvens descarregava clarões cegadores, acompanhados de louco e raucitroante alarido, este a correr desenfreado pela esfera, numa estupefaciente gama de choques aterradores.
Os relâmpagos continuavam estribilhando sibilos horritroantes. O Aguaceiro despencava impiedoso. Rolava, verticalmente, das nuvens unidas e solidárias. O despejamento era torrencial. Flagiciavam jatos duros e contínuos. Nas alturas, não havia peneiramento, nem interferência dos ventos. Os cântaros inesgotáveis e irados precipitavam fios caudalosos, para atingir alguém, para doer em alguém.

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Parecia amor de herói, de louco, de mártir: perdia a esperança e o objeto e, em vez de perecer, exibia mais fervor e feracidade.
A oposição era seu incentivo. A rejeição era sua incandescência. O repúdio era seu fôlego. A recusa era sua volúpia. A negativa era sua juventude. A repulsa era sua inspiração. A contradição era sua força. A humilhação era sua eternidade. Nascera num relâmpago, no doirado faiscamento de uma agrura natatória, como remate e prêmio de uma aventura temerária, e adquirira a natureza dos fenômenos que o homem não doma, duradouro como os evos e excitado como os vulcões ativos.

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Juntos, um sobre o outro, ou um contra o outro, o amor e o não são monstros da alma. A vida, sob o signo deles, com eles reunidos em belicoso consórcio, corresponde à mais desconcertante nascente de impulsões e bravezas. No reino deles, endoidece a razão, endoidece a vontade, endoidecem os sentidos. Demite-se a consciência do bem, do remorso da calma e do bom senso, queimando as flores da mocidade e as esperanças de quem sofre. Nesse governo malsão, um rosário tem a inspiração e a mesma embriaguez de um copo de cachaça. Honra é pretexto e sofisma é sabedoria. Luz é sombra e desconfiança é ciência. Maldição pode ser bênção. Insulto pode ser paz. Delírio faz lei e ódio distribui justiça. Vingança é remédio e crime é salvação.

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"A natureza também se exalta de cismas, de arroubos e sofrimentos. Como uma pessoa imóvel, existe, em sua fisionomia de pessoa impensante, em sua forma de matéria bruta, eterno objeto da inteligência humana, a profundidade de um nervo que freme e de um peito que estua. Na realidade , porém, aos olhos de quem sabe ver as coisas, é ilusória sua aparência inanimada. Suas vozes, sua fecundidade, suas agonias, seus amores, suas alegorias, seus frutos, seus perfumes, suas brenhas, seus remédios e a perenidade de seus espasmos criativos, independem do homem e da ciência, testemunham a espantosidade de suas sensações e de sua esplêndiada versatilidade. Possui dons que contemplam os atos mundos, as nuvens que cochilam, os ventos que zinem, as aves que lutam com as amplidões; donas que esperam os séculos que flanam, os mistérios que governam o infinito, sem sair do lugar; dons que escutam o atrôo das faíscas, o ruído de passos humanos, as crepitações e os soluços do amor irredutível; dons que meditam nas folhas que caem amarelas como ideologias caducas e nos galhos que se erguem ousados como interrogações de sábios iconoclastas."



Souza Neto, Linhas Paralelas

domingo, 7 de outubro de 2012

MikaelAlbrecht

Pelas sendas do infinito, no perpétuo rodízio de entes indetíveis, se reencontravam o dia e a noite, mundos maravilhosos semeados no universo para utilidade da vida e glória de quem os criou, cada qual levando, para a suma apoteose, sobrepujanças de atração e de beleza, supremacias de força e de inspiração.
O dia é extrovertido e grandíloquo como o sol e a primavera, cheio de verbos, de tumulto, de quedas que abalam e de subidas que pasmam. As luzes inaugurais, primícias de otimismo contagiante, abrem os horizontes, desvelam as amplidões, descerram os cenários de torneios e de lutas, rasgam os longes de extasiamento e de jornadas. Os fulgores de pino, raios de maturidade sã e viril, explodem os júbilos da fecundação vitoriosa e vertem nitenes promessas de amor e de conquista, inspirando a alegria dos audazes e revigorando a coragem da esperança e do trabalho.
O cair da tarde é limitativo. As primeiras sombras abreviam os panoramas, fecham as linhas das paisagens, reduzem as curvas dos espaços. Impõem-se as aparências no amortecimento das alturas, na constrição dos desmesuramentos, no achatamento das altitudes, na confusão das vistas e das figuras.
A noite é concentrada, medidativa, tímida, prenhe de reticência, de sutilezas, de subentendidos, de suaves mistérios e de balsâmico silêncio. Em seu reinado, parece que a terra perde a voz, a eloqüência e o vigor, ficando apenas com a sensibilidade, o tato e os suspiros.
A lenta mão da sombra, avançando devagarinho, mais branda que o roçar do veludo, leve como o eco de uma prece, começava a tingir os ares com tamanha arte que se diria um mistério. Sumiam-se as claridades tão preguiçosamente, tão saudosamente e tão gravemente que um nobre palor se demorava suspenso no firmamento. Era pausada e majestática a descida do sol, que parecia maior, inflamado de violeta, abatido por um desmaio de pompa e de sangue, lembrando um imponente bota-fora das artes supremas. Tinha-se a impressão de que um deus de luzes fantásticas e de cores deslumbrantes, por desígnio absoluto da natureza, marchava agônico para um abismo sideral, reagindo com todos os seus recursos, com todos os talentos, com todas as lágrimas e com todas as tintas , sem todavia escapar da imolação, a um tempo bela e comovente. Exalando vapores ternos e irisados, afogar-se-ia, afinal, sem dor na alcova estonteandte de uma lei sublime e onipotente, que o ressuscitaria , vivaz e esplendoroso, forjando auroras, criando manhãs, inventando alegrias, aligeirando os homens, fazendo histórias e civilizações.


Souza Neto, Linhas Paralelas

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Souza Neto, Linhas Paralelas


...não escutavam sequer o ruído das rápidas passadas. Não se perguntavam o que os tangia aloucados. Iam. Iam juntos, porém somente Ana se unia por solidariedade, por profunda e misteriosa solidariedade. Conheceram-se quase meninos e Ana, que sempre estivera longe dele, posto que sob o mesmo teto, recusando os favos de seu coração, ia agora unida ele, não por amor, mas por um sentimento indenominável, audaz como o amor, leal como o amor, terrível como o amor.
[...]
O olhar de Tote!... arma bigúmea. Aquele olhar faiscava, ameaçava, apostrofava, intimidava o ódio, a inveja e a vingança. Raciocinava, distinguia o perigo, media o adversário, discernia os golpes, adivinhava as ciladas, perscrutava as intenções, avaliava a agressão, sugeria a defesa, circundava o espaço dos lanços e esgueiramentos. Aliava-se às grandes mãos de Tote, altipotentes, esmagadoras, abertas como nanoplas flexíveis, fechadas como tenazes de malhar. Manzorras, mãos pensantes e caritativas, que apagavam incêndios, que domavam potros, que abaionetavam caudais, que não batiam por crueza. Punhos férreos, incansáveis no trabalho, implacáveis nos combates. Mãos longas e humanas, mãos tristes, que não conheciam o amor nem o êxtase dos carinhos epidérmicos. Mãos de labor, só para o labor; mãos de bravo, só para a bravura. Mãos que não faziam romance, mas que faziam história.
[...]
Sua vida e a de Ana semelhavam duas estranhas linhas paralelas, paralelas que nunca estiveram na mesma direção, que não podiam correr no mesmo rumo, quase constituindo um singular paralelismo sem paralelas, uma espécie de paralelismo em que os traços, eqüidistantes, andavam em sentido oposto, um indo enquanto o outro vinha, aquele voltando quando este ia; em que, guardando a mesma distância, uma ponta passava pela outra como o sim passa pelo não, sem jamais se entenderem, uma sempre a esperar que, na passagem, no cruzamento, a outra a compreendesse e que, unidas, identificadas, o não transfeito em sim, nunca mais se separassem.

Souza Neto, Linhas Paralelas

terça-feira, 26 de janeiro de 2010



Somam-se os vícios. Associam-se as virtudes. 
As paixões, entretanto, se excluem. Uma substitui as outras. 
Um amor não existe ao lado de outro amor. 
Um proscreve os demais. 
Não há coração com duas idéias fixas. 
É inconcebível a convivência de duas obsessões.



Souza Neto, Linhas Paralelas