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domingo, 18 de julho de 2010

Khaled Hosseini, O Caçador de pipas

Você perguntou sobre pecado e quero lhe dizer o que penso a este respeito. […]
- Pouco importa o que lhe diga esse mulá: existe apenas um pecado, um só. E esse pecado é roubar. Qualquer outro é simplesmente uma variação do roubo. Entende o que estou dizendo?
- Não, baba jan – respondi querendo desesperadamene entender. Não gostaria de desapontá-lo de novo. [...]
- Quando você mata um homem, está roubando uma vida – disse baba. – Está roubando da esposa o direito de ter um marido, roubando dos filhos um pai. Quando mente, está roubando de alguém o direito de saber a verdade. Quando trapaceia, está roubando o direito à justiça. Entende? [...]
- Não há ato mais infame do que roubar, Amir,- prossegiu ele. – Um homem que apropria do que não é seu, seja uma vida ou uma fatia de naan... Cuspo nesse homem... E se alguma vez ele cruzar o meu caminho, que Deus o ajude. Está entendendo? [...]
Fiquei olhando enquanto ele enchia o copo no bar e me perguntando quanto tempo ia se passar até que tivéssemos outra conversa como essa. A verdade é que sempre achei que baba me odiava um pouco. E por que não? Afinal, eu tinha matado a esposa que ele tanto amava, a sua linda princesa, não tinha? O mínimo que poderia ter feito era ter a decência de puxar um pouco mais a ele. Mas não puxei. Não mesmo. [...]
É claro que casar com uma poeta era uma coisa, mas ter um filho que preferia meter a cara em livros de poesia a ir caçar... bem, não era exatamente o que baba tinha imaginado, suponho eu. Um homem de verdade não lê poesia, e Deus permita que nunca venha a escrever versos! Homens de verdade – meninos de verdade – jogam futebol, exatamente como meu pai fazia quando jovem..

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Quando eu era pequeno, ele me pôs no colo, olhou bem dentro dos meus olhos e disse: “Existe apenas um pecado, um só. E esse pecado é roubar... Quando você mente, está roubando de alguém o direito de saber a verdade.” Não foram essas as palavras que ele me disse? E agora, quinze anos depois de eu o ter enterrado, acabo descobrindo que baba era um ladrão. Um ladrão da pior espécie, porque as coisas que roubou eram sagradas: de mim, o direito a ter um irmão; de Hassan, a própria identidade; e de Ali, a honra.

Khaled Hosseini, O Caçador de pipas

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Khaled Hosseini, O caçador de pipas

Uma multidão alvoraçada lotava o estádio Ghazi quando passava pelos túneis de acesso.
[...]
Lembrei de como o gramado era verdinho nos anos 1970, quando baba me trazia aqui para ver jogos de futebol. Agora o campo era um caos. Havia buraco e crateras por todo canto, com destaque para um ou dois bem profundos logo atrás das traves do gol.
[...]
Assim que o apito anunciou o fim do primeiro tempo, a encenação começou.Duas picapes vermelhas e empoeiradas, como aquelas que tinha visto circulando pela cidade desde que cheguei, entraram pelos portões do estádio. A multidão se levantou. Na cabine de uma das picapes, havia uma mulher usando uma burga verde, e, na outra, um homem de olhos vendados.
[...]
Terminada a oração, o clérigo pigarreou.
- Irmãos e irmãs! - bradou ele em farsi, e a sua voz ressoou por todo o estádio. - Estamos aqui hoje para executar um ato de shari'a; Estamos aqui hoje para fazer justiça. Estamos aqui hoje porque a vontade de Allah e a palavra do profeta Muhammad (que a paz esteja com ele) estão vivas e vigorosas no Afeganistão, nossa pátria amada.
Ouvimos o que Deus diz e obedecemos a Ele porque não passamos de criaturas humildes e impotentes diante de Sua grandeza. E o que é que Ele diz? Estou lhes perguntando: O QUE É QUE DEUS DIZ? Diz que todo pecador deve receber punição condizente com o pecado que cometeu. Essas palavras não são minhas, nem tampouco de meus irmãos. São as palavras de Deus! - bradou ele, apontando para o céu com a mão livre.
Minha cabeça latejava e o sol parecia ter ficado muito mais quente.
- Todo pecador deve receber punição condizente com o pecado que cometeu - repetia o clérigo ao microfone, erguendo a voz e pronunciando cada palavra bem devagar, de um jeito dramático. - E que punição, irmãos e irmãs, é condizente com o adultério? Como devemos punir aqueles que desonraram a santidade do casamento? Como devemos tratar aqueles que cuspiram na face de Deus? Que resposta devemos dar àqueles que atiraram pedras nas janelas da casa de Deus? DEVEMOS DEVOLVER AS PEDRAS QUE FORAM ATIRADAS POR ELES! - Desligou o microfone. Um murmúrio surdo se espalhou pela multidão.
Ao meu lado, Farid abanava a cabeça.
- E eles se dizem muçulmanos... - sussurrou.
Nesse momento, um homem alto, de ombros largos, desceu da picape. O seu surgimento provocou gritos e aplausos de uns poucos espectadores. Desta vez, porém, ninguém recebeu chicotadas por gritar alto demais. Os trajes brancos do sujeito grandalhão reluziam ao sol da tarde. A bainha da sua túnica se agitava com o vento e ele abriu os braços como Jesus na cruz. Saudou a multidão virando-se lentamente, fazendo um giro completo. Quando ficou de frente para o nosso setor, vi que estava usando óculos escuros redondos, como aqueles que John Lennon usava.
- Esse deve ser o nosso homem - disse Farid.
O talib alto, de óculos escuros, foi se dirigindo para uma pilha de pedras que tinham sido descarregadas da terceira picape. Pegou uma delas e exibiu-a para a multidão. O barulho praticamente cessou, sendo substituído por uma espécie de zumbido que foi se espalhando pelo estádio. Olhei à minha volta e vi que todos estavam estalando a lingua em sinal de desaprovação. Assumindo uma postura absurdamente parecida com a de um arremessador de beisebol no seu montículo, o talib atirou a pedra no homem de olhos vendados que estava em um dos buracos. Acertou em um dos lados da cabeça. A mulher recomeçou a gritar. A multidão fez um "oh!" assustado. Fechei os olhos e tapei o rosto com as mãos. Os "oh!" do público acompanhavam cada pedra arremessada, e aquilo durou ainda algum tempo. quando os gritos cessaram, perguntei a Farid se tinha terminado. Ele disse que não. Supus que as gargantas tivessem se cansado. Não sei por quanto tempo ainda fiquei ali, com o rosto coberto com as mãos. Só sei que, quando voltei a abrir os olhos, ouvi gente ao meu redor perguntando "Mord? Mord? Ele morreu?".
O homem dentro do buraco não passava, agora, de uma massa disforme, ensanguentada e em frangalhos. Tinha a cabeça pendida para frente, com o queixo encostando no peito. O talib de óculos como os de John Lennon estava olhando para um outro homem agachando junto ao buraco, jogando uma pedra para cima e voltando a apanhá-la com a mão. O sujeito agachado tinha uma das extremidades de um estetoscópio nos ouvidos e a outra encostada no peito do homem que estava no buraco. Tirou o estetoscópio dos ouvidos e abanou a cabeça para o talib de óculos escuros. A multidão soltou um gemido.
John Lennon voltou para o seu montículo.
Quando estava tudo terminado, depois que os cadáveres ensanguentados já tinham sido atirados na traseira das picapes vermelhas sem a menor cerimônia - um em cada veículo -, uns poucos homens armados de pás apressaram-se em tapar os buracos. Um deles tentou até encobrir as grandes manchas de sangue tirando terra sobre elas.
Alguns minutos mais tarde, os times voltaram a campo. E o segundo tempo do jogo já estava em andamento. 

Khaled Hosseini, O caçador de pipas

sábado, 10 de abril de 2010

Khaled Hosseini, O Caçador de Pipas



Eu me tornei o que sou hoje aos doze anos, em um dia nublado e gélido do inverno de 1975. Lembro do momento exato em que isso aconteceu, quando estava agachado por detrás de uma parede de barro parcialmente desmoronada, espiando o beco que ficava perto do riacho congelado. Foi há muito tempo, mas descobri que não é verdade o que dizem a respeito do passado, essa história de que podemos enterrá-lo. Porque, de um jeito ou de outro, ele sempre consegue escapar. Olhando para trás, agora, percebo que passei os últimos vinte e seis anos da minha vida espiando aquele beco deserto.[...]

O sol do início da tarde cintilava na água onde navegavam dezenas de barquinhos em miniatura, impulsionados por um ventinho ligeiro. Olhei então para cima e vi um par de pipas vermelhas planando no ar, com rabiolas compridas e azuis. Dançavam lá no alto, bem acima das árvores da ponta oeste do parque, por sobre os moinhos, voando lado a lado como um par de olhos fitando San Francisco, a cidade que eu agora chamava de lar. E, de repente, a voz de Hassan sussurou nos meus ouvidos: “ Por você, faria isso mil vezes!” Hassan, o menino de lábio leporino que corria trás das pipas como ninguém. [...]

“Há um jeito de ser bom de novo.” Ergui os olhos para as pipas gêmeas. Pensei em Hassan. Pensei em baba. Em Ali. Em Cabul. Pensei na vida que eu levava até que aquele inverno de 1975 chegou para mudar tudo. E fez de mim o que sou hoje.



Khaled Hosseini, O Caçador de Pipas