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quarta-feira, 15 de novembro de 2023

O mundo de Sofia – Espinosa


– Mas você vai pelo menos responder a uma última pergunta. Imagine duas árvores bem antigas num grande jardim. Uma cresceu num local ensolarado, com acesso a um solo fértil e água em abundância. A outra, num solo estéril, sob a sombra. Qual delas, você acha, é a árvore maior? E qual delas terá dado mais frutos?

– Claro que a árvore que teve as melhores condições.

– Segundo Espinosa, essa é a árvore livre. Ela teve liberdade total para desenvolver suas possibilidades intrínsecas. Se, porém, se tratar de uma macieira, ela não terá tido possibilidade de dar peras ou ameixas. O mesmo vale para nós, seres humanos. Podemos retardar nosso desenvolvimento e nosso crescimento pessoal, por exemplo, devido a condições políticas. Pressões externas são capazes de nos tolher. Somente quando “libertamos” as possibilidades que nos são inatas é que vivemos como homens livres. Mas somos tão governados pelo nosso potencial interno e pelas circunstâncias exteriores quanto aquele menino da Idade da Pedra no vale do Reno, o leão na África ou a macieira no jardim.

– Já estou prestes a desistir.

– Espinosa enfatiza que somente um único ser é “causa completa e absoluta” de si mesmo e pode agir em total liberdade. Só Deus ou a natureza é a manifestação livre, “não causal”, desse processo. Um homem pode até aspirar à liberdade de viver imune às atribulações externas. Mas jamais vai experimentar de fato o “livre-arbítrio”. Não podemos determinar tudo que acontece com nosso próprio corpo, que é um modus do atributo extensão. E não possuímos uma “alma livre”, que de resto está aprisionada em um corpo mecânico.


Jostein Gaarder, O mundo de Sofia 

terça-feira, 30 de dezembro de 2014




"Tudo flui", dizia Heráclito. Tudo está em movimento, e nada dura para sempre. Por esta razão, “não podemos "entrar duas vezes no mesmo rio”. Isto porque quando entro pela segunda vez no rio, tanto eu como o rio estamos mudados.


Jostein Gaarder, O mundo de Sofia

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Nosso próprio tempo (...o homem está condenado à liberdade...)

- Você falava do existencialismo...
- Sartre disse: "O existencialismo é humanismo". Com isto ele queria dizer que o existencialismo tem como ponto de partida única e exclusivamente o homem. Talvez possamos acrescentar que o humanismo de Sartre vê  a situação do homem de uma maneira diferente e mais sombria do que o humanismo que conhecemos do Renascimento.
- E por quê?
- Kierkegaard e outros filósofos existencialistas de nosso século eram cristãos. Sartre, ao contrário, representava aquilo que podemos chamar de um existencialismo ateu. Podemos considerar sua filosofia uma análise impiedosa da situação humana quando "Deus está morto". A famosa expressão "Deus está morto" é de Nietzsche.
- Continue.
- Como em Kierkegaard, o conceito-chave por excelência na filosofia de Sartre é a palavra existência. Aqui, existência não significa simplesmente "estar vivo". As plantas e os animais também "existem" no sentido de que estão vivos, mas são poupados da indagação sobre o que isto significa. O ser humano é o único ser vivo consciente de sua existência. Sartre diz que as coisas físicas só são "em si", ao passo que o homem também é "para si". Ser uma pessoa, é, portanto, diferente de ser uma coisa.
- Concordo plenamente.
- Sartre afirma ainda que a existência do homem precede todo e qualquer sentido desta mesma existência. Em outras palavras, o fato de que sou é anterior à questão de saber o que sou. "A existência precede a essência", ele dizia.
- Isto parece um tanto complicado.
- Entendemos por "essência" aquilo que uma coisa realmente é, a "natureza" dessa coisa. Para Sartre, porém o homem não possui tal natureza. O homem precisa primeiro criar-se a si mesmo.
Ele precisa criar sua própria natureza, sua própria essência, já que ela não lhe é dada de antemão.
- Acho que entendo o que você quer dizer.
- Por toda a história da filosofia, os filósofos tentaram responder à pergunta sobre o que o homem é, ou o que é a natureza humana. Sartre, ao contrário, acha que o homem não possui esta "natureza" eterna a que se apegar. Por isso é que, para Sartre, não faz sentido perguntar pelo sentido da vida em geral. Em outras palavras, estamos condenados à improvisação. Somos como atores que são colocados num palco sem termos decorados um papel, sem um roteiro definido e sem um "ponto" para nos sussurrar ao ouvido o que devemos dizer ou fazer. Nós mesmos temos de decidir como queremos viver.
- De alguma forma isto também está certo. Se folhearmos a Bíblia, ou um livro de filosofia, teríamos dificuldade em encontrar uma fórmula sobre como devemos viver.
- Pronto, você entendeu. Mas Sartre diz que quando o homem percebe que existe e que um dia terá de morrer, e sobretudo quando não vê qualquer sentido nisto tudo, ele passa a experimentar o medo. Você deve se lembrar ainda de que o medo também era muito importante na descrição que Kierkegaard fez do homem numa situação existencial.
- Sim.
- Sartre também diz que o homem se sente alienado num mundo sem sentido. Quando descreve "a alienação" do homem, Sartre retoma os pontos centrais do pensamento de Hegel e de Marx. O sentimento do homem de ser um estranho no mundo, diz Sartre, leva a uma sensação de desespero, tédio, náusea e absurdidade.
- É muito comum a gente ouvir que fulano está "deprê", ou então que acha tudo "um saco".
- Sim. Sartre descreve o homem urbano do século xx. Você se recorda de que os humanistas do Renascimento tinham propagado em tom de triunfo a liberdade e a independência do homem. Para Sartre, a liberdade do homem era como uma maldição."O homem está condenado à liberdade", ele dizia. Condenado porque não se criou e, não obstante, é livre. E uma vez atirado ao mundo, passa a ser responsável por tudo o que faz.
- Sim. Afinal, não pedimos a ninguém para sermos criados como indivíduos livres.
- É exatamente este o ponto central em Sartre. Acontece que somos indivíduos livres e nossa liberdade nos condena a tomarmos decisões durante toda a nossa vida. Não existem valores ou regras eternas, a partir das quais podemos nos guiar. E isto torna mais importante nossas decisões, nossas escolhas. Sartre chama a atenção precisamente para o fato de o homem nunca poder negar sua responsabilidade pelo que faz. Por esta razão, não podemos simplesmente colocar de lado nossa responsabilidade e dizer que "temos" de ir trabalhar, ou então que "temos" de nos pautar por certas expectativas burguesas quanto ao modo como devemos viver. Aquele que assim procede mescla-se a uma massa anônima e se transforma em parte impessoal dela. Ele foge de si mesmo e se refugia na mentira. De outra parte, a liberdade do homem nos obriga a fazer de nós alguma coisa, a ter uma existência "autêntica" ou verdadeira.
- Entendo.
- O mesmo vale para as nossas decisões éticas. Nunca podemos responsabilizar a natureza e a fraqueza humanas, ou qualquer outra coisa, pelas decisões que tomamos.  (...)
- Apesar disso, deve haver limites para toda essa culpa que recai sobre os ombros do homem.
- Embora Sartre afirme que a vida não possui um sentido inato, isto não significa que para ele nada importa. Sartre não é um niilista.
- O que é isto?
- Alguém que acha que nada tem um sentido e que tudo é permitido. Sartre diz que a vida deve ter um sentido. Isto é um imperativo. Só que nós mesmos é que temos de criar este sentido para a nossa própria vida. Existir significa criar a sua própria vida.
- Você poderia explicar isso um pouco mais?
- Sartre tentou mostrar que a consciência não é nada até que perceba alguma coisa. Pois a consciência é sempre consciência de alguma coisa. E depende de nós, e também de nosso meio, o que seja esta "alguma coisa". Nós mesmos contribuímos para o que sentimos e percebemos, pois somos nós que escolhemos aquilo que nos é importante.
- Você teria um exemplo?
- Duas pessoas podem estar presentes num mesmo recinto e percebê-lo de maneira totalmente diversa. Isto porque deixamos nossa opinião ou nossos interesses agirem quando estamos percebendo o mundo à nossa volta. (...)
- Talvez a nossa própria vida influencie o modo como percebemos a coisa num recinto. Se uma coisa não me é importante, é provável que eu nem a perceba. E agora posso explicar por que cheguei tão atrasado.
- Você não disse que tinha sido de propósito?
- Primeiro me conte o que você viu quando entrou no café.
- A primeira coisa que eu vi foi que você não estava.
- Não é estranho que a primeira coisa que você viu neste local tenha sido justamente algo que não estava aqui?
- Pode ser, mas nós tínhamos combinado um encontro.
- Sartre usa justamente a ida a um café para explicar como nós "eliminamos" aquilo que não tem importância para nós.
- E você chegou atrasado só para me mostrar isto?
- Sim. Eu queria que você entendesse este ponto importante da filosofia de Sartre. Meu atraso pode ser considerado, portanto, parte de uma tarefa.
- Que loucura...

Jostein Gaarder, O mundo de Sofia

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Jostein Gaarder, O mundo de Sofia

ROMANTISMO


...o caminho do mistério aponta para dentro...


- O Romantismo durou tanto tempo assim?
- Ele começou em fins do século XVIII e durou até meados do século passado. Depois de 1850, não faz muito sentido falarmos de épocas inteiras que compreendiam igualmente a poesia, a filosofia, a arte, a ciência e a música.
- O Romantismo foi uma dessas épocas?
- Sim, e, como dissemos, a última na Europa. Ele começou na Alemanha como reação à parcialidade do culto à razão apregoado pelo iluminismo. Depois de Kant e de sua fria filosofia da razão, os jovens alemães finalmente podiam respirar aliviados.
- E o que eles colocaram no lugar da razão?
- As novas palavras de ordem eram "sentimento", "imaginação", "experiência" e "anseio". Alguns pensadores do iluminismo também tinham alertado para a importância dos sentimentos, como Rosseau, por exemplo, e criticado o fato de os iluministas enfatizarem apenas a razão. Agora, no romantismo, esta corrente secundária se transformou no veio principal da vida cultural alemã.
- Quer dizer que a popularidade de kant não durou muito tempo?
- Sim e não. Muitos românticos chegaram a se considerar sucessores de Kant, pois Kant havia dito que há limites para o que podemos saber. Além disso ele também havia mostrado o quanto é importante a contribuição do nosso eu para o processo de aquisição do conhecimento. E agora, no romantismo, o indivíduo encontrava o caminho livre, por assim dizer, para fazer a sua interpretação pessoal da vida. Os românticos professavam uma glorificação quase irrestrita do eu. A essência da personalidade romântica é, por isso mesmo, o gênio do artista.
- E houve muitos gênios durante esta época?
- Alguns. Beethoven por exemplo. Sua música nos mostra uma pessoa que consegue exprimir seus próprios sentimentos e anseios. Nesse sentido, Beethoven foi um artista "livre", ao contrário de mestres do Barroco como Bach e Händel, que compunham suas obras em louvor a Deus e frequentemente segundo rígidas normas de composição.
- De Beethoven eu só conheço a Sonata ao luar e a Quinta sinfonia.
- Ouvindo essas peças dá para perceber como Beethoven conseguiu dar vazão a todo o seu romantismo na Sonata ao luar e a toda a sua dramaticidade na Quinta sinfonia. [...]
- Quer dizer que o artista pode nos dizer coisas que o filósofo não é capaz de nos dizer?
- Era isto o que achava Kant e os românticos. Para Kant, o artista brinca livremente com sua capacidade de cognição. O poeta Friedrich Schiller desenvolveu um pouco mais os pensamentos de Kant. Schiller disse que o processo de criação do artista é uma atividade lúdica e que só nela o homem é verdadeiramente livre, pois ele próprio determina suas regras . Os românticos acreditavam, portanto, que só a arte era capaz de nos aproximar do indizível. [...]
- Costumava-se dizer que o artista possuía uma espécie de imaginação criadora do mundo. Em seu êxtase artístico, ele seria capaz de experimentar um estado em que as fronteiras entre sonho e realidade desaparecem. O poeta Novalis, um dos jovens gênios do Romantismo, disse: "O mundo se transforma em sonho e o sonho em mundo". Novalis escreveu um romance ambientado na Idade Média e intitulado Heinrich von Ofterdingen, que ficou inacabado quando o autor faleceu no ano de 1801, mas que foi de grande importância para o Romantismo. Nele encontramos o jovem Heinrich, que procura incansavelmente a "flor azul" que um dia viu em sonho e por quem se apaixonou desde então. O romântico inglês Coleridge expressou assim o mesmo pensamento:

E se você dormisse? E se você sonhasse? E se, em seu sonho, você fosse ao Paraíso e lá colhesse uma flor bela e estranha? E se, ao despertar, você tivesse a flor entre as mãos? Ah, e então?

- Lindo.
- Este anseio por algo longínquio e inatingível foi um traço típico dos românticos. Vem daí o seu forte interesse por tempos passados, como a Idade Média, por exemplo, que no iluminismo ainda era tida como uma época de trevas, mas que agora voltava a ser energicamente revalorizada; ou então por culturas distantes, por exemplo a "terra do sol nascente" e toda a sua mística. Os românticos sentiam-se atraídos pela noite, pelo "  crepúsculo"  , por antigas ruínas e pelo sobrenatural. Interessava-lhes aquilo que costumamos chamar de o lado oculto da vida: o obscuro, o misterioso, o místico.
- Acho que deve ter sido uma época muito interessante. [...]
- Continue contando.
- Novalis só viveu até os vinte e nove anos. Ele foi mais um dos chamados "mortos jovens", pois os românticos morriam muito cedo, frequentemente de tuberculose. Alguns cometiam suicídio...
- Deus meu!
- E os que chegavam a envelhecer geralmente deixavam de ser românticos. Assim, aos trinta anos mais ou menos, muitos abandonavam a vida de romântico e passavam a ser totalmente burgueses e conservadores.
- Quer dizer, passavam para o lado do inimigo.
- Sim, pode ser. Mas nós estávamos falando do amor na época do romantismo: a grande obra sobre o amor inatingível é o romance de Goethe. Os sofrimentos do jovem Werther, de 1774. O romance termina quando o jovem Werther se suicida porque não podia ter aquela que ama...
- Mas isto não era ir longe demais?
- Bem, os contemporâneos de Goethe identificaram-se com os motivos que tinham levado Werther ao suicídio. Por toda a parte em que o romance circulou, os índices de suicídio aumentaram rapidamente. Na Dinamarca e na Noruega, Werther chegou mesmo a ser proibido por um bom tempo. Ser romântico autêntico não era coisa das mais seguras. Havia sentimentos e emoções fortes em jogo.

Jostein Gaarder, O mundo de Sofia

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Jostein Gaarder, O Mundo de Sofia

Jostein Gaarder
JESUS


As palavras-chaves neste contexto são "Messias", "Filho de Deus", "Redenção" e "Reino de Deus". No início, tudo isto tinha um significado político. Mesmo na época de Jesus, muitos imaginavam o novo Messias como um líder político, militar e religioso do mesmo calibre do rei Davi. Quer dizer, o "redentor" era visto por todos como um libertador nacional, que teria vindo para pôr fim aos sofrimentos dos judeus sob a dominação dos romanos.
Mas outras vozes também se ergueram. Duzentos anos antes do nascimento de Jesus, outros profetas já haviam anunciado que o Messias prometido seria o redentor de todo o mundo. Ele não apenas libertaria os israelitas do jugo de outros povos, mas viria para redimir todos os homens do pecado, da culpa e também da morte. A esperança de uma redenção nesse sentido da palavra já havia se espalhado por todo o mundo helenístico.
E então aparece Jesus. Ele não é o único que aparece como o Messias prometido; e, como muitos outros, também ele usa as expressões "Filho de Deus", "Reino de Deus", "Messias" e "Redenção". Assim procedendo, Jesus alinha-se às antigas profecias. Ele vai para Jerusalém e se deixa aclamar pelas massas como o salvador do povo. Desta forma, ele retoma a antiga tradição dos reis, que eram entronizados através de um típico "ritual de acesso ao trono". Jesus também se permite ser ungido pelo povo. "É chegada a hora", disse ele. "o Reino de Deus está próximo."
É muito importante gravar todas essas coisas. Mas o mais importante vem agora: o que diferenciava Jesus dos demais profetas  que diziam ser o Messias era o fato de ele admitir publicamente que não era um comandante militar ou político. Sua tarefa era muito maior. Ele pregava a redenção e o perdão de Deus para todos os homens. E é por isso que ele podia caminhar por entre as pessoas e dizer: "Teus pecados estão perdoados". Dizer abertamente essas coisas era algo jamais visto. Por esta razão não demorou muito tempo para que entre os escribas se levantassem protestos contra Jesus. Por fim, esses escribas também se puseram a trabalhar no processo de acusação e execução de Jesus.
Vou tentar ser mais exato: No tempo de Jesus, muitas pessoas esperavam por um Messias que restaurasse o Reino de Deus sob o rufar de tambores e o som de trombetas (quer dizer, a ferro e fogo). A expressão "Reino de Deus" está presente em todas as pregações de Jesus, só que num sentido muito mais abrangente. Jesus dizia que o Reino de Deus era o amor aos semelhantes, a compaixão pelos fracos e o perdão para todos os que tinham errado.
Vemos aqui uma dramática alteração no sentido de uma antiga expressão de cunho militar. As pessoas esperavam, portanto, por  um general que proclamasse um Reino de Deus. E então aparece Jesus trajando uma túnica, usando sandálias, e diz que o Reino de Deus ou a "a nova aliança" significa "Amar o teu próximo como a ti mesmo". E mais ainda, Sofia. Jesus também disse que devemos amar nossos inimigos e que quando eles nos esbofeteiam não devemos pagar-lhes na mesma moeda, mas oferecer-lhes a outra face. E que temos de perdoar; não sete vezes, mas sete vezes setenta.
Através dos atos de sua própria vida, Jesus também mostrou que não considerava indigno de si conversar com prostitutas, funcionários corruptos e inimigos políticos do povo.  Mas ele vai mais além: ele diz que um perdulário que gastou todo o dinheiro que herdou, ou um funcionário do Estado que se apoderou de dinheiro público será visto por Deus como um homem reto e justo, bastando para isto que se voltem para Ele e Lhe peçam perdão. Tão generoso é Deus na sua misericórdia.
Mas ele vai mais além ainda, Sofia, e é preciso que você grave bem isto: Jesus disse que esses "pecadores" eram mais retos aos olhos de Deus - e, portanto, mereciam mais o seu perdão - do que os irrepreensíveis fariseus, orgulhosos de sua própria excelência.
Jesus enfatiza que nenhuma pessoa pode obter, ela mesma, a graça de Deus. Nós mesmos não podemos nos redimir (como se acreditavam muito gregos!). No Sermão da Montanha, quando Jesus estabelece seus rígidos princípios éticos, ele não o faz apenas porque quer mostrar a vontade de Deus. Ele também quer mostrar que nenhuma pessoa é reta perante os olhos de Deus. Isto é, a graça de Deus não tem limites, mas somos nós  que temos de nos voltar a Ele e Lhe suplicar o perdão através de orações.
Outras explicações sobre a pessoa de Jesus e seus ensinamentos eu deixo para o seu professor de religião. Com isto ele terá bastante trabalho. Espero que ele possa mostrar a vocês que Jesus foi um ser humano extraordinário. Ele soube usar de forma genial a língua de seu tempo e deu a conceitos e palavras-chaves antigos um sentido novo, extremamente ampliado. Não é de admirar, portanto, que ele tenha acabado na cruz. Sua mensagem radical sobre a redenção dos homens ameaçava tantos interesses e posições de poder que ele tinha de ser eliminado.
Quando falamos sobre Sócrates, vimos o quanto pode ser perigoso apelar à razão das pessoas. No caso de Jesus, vemos como pode ser perigoso exigir dos outros um amor assim tão incondicional pelo próximo e uma capacidade de perdoar igualmente incondicional. Ainda hoje vemos como nações poderosas ameaçam desmoronar diante de exigências simples tais como paz, amor, comida para os pobres e anistia para os inimigos do Estado.


Jostein Gaarder, O Mundo de Sofia

terça-feira, 13 de abril de 2010

Aristóteles

(Jostein Gaarder)

Ética


[...]Aristóteles acreditava em três formas de felicidade: a primeira forma de felicidade é uma vida de prazeres e satisfações. A segunda forma de felicidade é uma vida como cidadão livre, responsável. E a terceira forma de felicidade é a vida como pesquisador e filósofo.


Aristóteles sublinha o fato de que é preciso integrar essas formas a fim de que o homem possa levar uma vida realmente feliz. Ele recusa, portanto, toda e qualquer decisão unilateral. Se Aristóteles vivesse hoje, talvez ele dissesse que a vida de uma pessoa que só cultiva o corpo é tão unilateral - e portanto tão lacunosa - quanto a vida de outra que só usa a cabeça. Ambos os extremos são expressões de um modo errado de viver a vida.
Também no que concerne às virtudes, Aristóteles chama a atenção para um "meio-termo de ouro". Não devemos ser nem covardes, nem audaciosos, mas corajosos. (Coragem de menos significa covardia e coragem demais significa audácia). Também não devemos ser nem avarentos, nem extravagantes, mas generosos. (Generosidade de menos é avareza e generosidade demais é extravagância).
O mesmo vale para a alimentação. Comer de menos é perigoso, mas comer demais também o é. A ética de Platão e de Aristóteles lembra a ciência médica grega: só através do equilíbrio e da moderação é que podemos nos tornar pessoas felizes ou "harmônicas".


Política


A visão de sociedade de Aristóteles também expressa essa necessidade de moderação, esse abandono de exagero. Ele chama o homem de um "ser político". Aristóteles acha que sem a sociedade ao nosso redor não somos pessoas no verdadeiro sentido do termo. Nesse contexto, a família e a cidade satisfazem nossas necessidades vitais primárias, como a comida e o calor, o casamento e a criação dos filhos. Mas a forma mais elevada do convívio humano, para Aristóteles, só pode ser o Estado.


E aqui surge a pergunta de como o Estado deve ser organizado. (Você ainda se lembra do Estado dos filósofos de Platão?). Aristóteles cita diversas boas formas de Estado. Uma delas é a monarquia, ou seja, aquela em que há um único chefe de Estado. Mas para que esta forma de Estado seja boa, ela não pode degenerar em "tirania", na qual o único soberano comanda e dirige o Estado em proveito próprio. Outra boa forma de Estado é a aristocracia. Aqui, um grupo maior ou menor de soberanos governa o Estado. Esta forma de Estado deve cuidar para não acabar virando o governo de uns poucos, que dirigem o Estado em prol de seus próprios interesses. Seria mais ou menos o que chamaríamos hoje de "oligarquia". Uma terceira boa forma de Estado é a democracia. Mas também esta forma de Estado tem o seu lado negativo. Uma democracia pode facilmente desvirtuar e se transformar no chamado domínio da plebe. (Ainda que o tirano Hitler não tivesse se tornado o chefe de Estado da Alemanha, uma multidão de pequenos nazistas teria conseguido instituir um terrível "domínio da plebe".)


A visão da mulher


Para concluir, precisamos dizer alguma coisa sobre a visão que Aristóteles tinha da mulher. Infelizmente, ela não era tão animadora quanto a de Platão. Fundamentalmente, Aristóteles achava que faltava alguma coisa à mulher. Para ele a mulher era "um homem incompleto". Na reprodução, a mulher é passiva e receptora, enquanto o homem é ativo e produtivo. Por esta razão é que - segundo Aristóteles - o filho do casal herdava apenas as características do pai. Aristóteles acreditava que todas as características da criança já estavam presentes no sêmen do pai. Para ele, a mulher era apenas o solo que acolhia e fazia germinar a semente que vinha do "semeador", ou seja, do homem. Para colocarmos a coisa em termos verdadeiramente aristotélicos: o homem dá a "forma"; a mulher, a "substância".

É surpreendente e mesmo lamentável que um homem como Aristóteles, tão inteligente para tantos assuntos, pudesse se enganar desse jeito no que se refere à relação entre os sexos. Mas isto nos mostra duas coisas: primeiro, que Aristóteles não deve ter tido muita experiência prática na vida com mulheres e crianças; em segundo lugar, que uma série de coisas pode dar errado quando são apenas os homens que reinam supremos na filosofia e na ciência.

A visão distorcida que Aristóteles tinha da mulher surtiu efeitos particularmente danosos, pois foi ela - e não a visão de Platão - que predominou durante toda a Idade Média. Desta forma, a Igreja herdou uma visão da mulher para a qual não há qualquer fundamento na Bíblia. Afinal de contas, Jesus certamente não foi um inimigo das mulheres!


Jostein Gaarder, O Mundo de Sofia.