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quinta-feira, 8 de julho de 2010

ANA (MEU CAMINHO ATÉ ELA)

Ciro Morrone.

O que vejo são seus pés. Como ela, sinto-me vencido e deserto de movimentos. Mal posso desviar a cabeça de olhos entregues à cor neutra do teto, quando muito a uma amostra incompleta de Ana, só o que me cabe no campo de visão, suas pernas, de alguma amorfa perspectiva, e os pés, o que vejo. A lassidão faz de Ana um corpo indolente ao meu lado, agora uma boneca exausta e como deixada ali, estirada de costas, respirando como eu o cansaço que nos resta. Também em sua pele nua, o mesmo brilho de suor dividido.
Recentes e quase palpáveis, as sensações de nosso embate silencioso, musicado pela ondulação de murmúrios incompreensíveis com que dois amantes claramente se comunicam.
Últimas estações do orgasmo. O epicentro do instante dilatado em que o tempo não resiste à própria dissolução, na impotência de relógios possíveis. O átimo de calor especial que precede infinitamente o clímax. Último impulso ainda reconhecido antes que se deflagre a corrida vertiginosa e incontrolável para fora de tudo, para tão dentro.
Tomamo-nos de diversas maneiras, num rito prolongado de delícias, ainda que imprevisível como nenhum rito se concebe, e naturalmente, ou talvez não, desde o primeiro contato de nossos corpos, desde que nos despimos à margem do mundo.
Posso senti-la num primeiro abraço, o início da tarde. Ainda vestida em seu conjunto leve de verão, o tecido agradável permite-lhe o corpo convidativo ao toque, propenso ao tato dos gestos intencionais, prelúdio de prazer.
Vejo-a chegando, seu primeiro sorriso, seus olhos de encontro, à porta que lhe abro: meu sorriso simultâneo franqueia-lhe o visível de minha paixão, enriquecida de espera.
A espera se desfaz no pouco tempo que a separa de minha porta, Ana percorrendo com seus passos muito próximos o pseudocorredor.

as costas de Ana em toda a sua extensão, desde onde os cabelos a delimitam junto à nuca até uns últimos músculos rígidos que não parecem anunciar a maciez das nádegas logo abaixo

Ela sobe o segundo lanço de escadas que a traz até este andar, o primeiro. Aqui, de onde a escuto chegar, no apartamento ansioso de sua espera, a cama secreta.

à luz controlada pela discreta veneziana que alude ao sol intenso do dia fora, a intumescência de um seio como feito para o molde de minha boca gosmenta

Desde que começa a subir, é como se já estivesse aqui, na realidade de sua presença. Ouço os primeiros degraus de madeira lá embaixo, seus passos simétricos revelando algum solado de couro, ritmos inconfundíveis de um calçado feminino. E esses solados de certa forma se entendem com a madeira melhor do que qualquer outro material associado aos pés de uma mulher.

as mãos não se completam na satisfação de uma ou outra porção de carne sob a palma e procuram de Ana o que sabem impossível: apalpá-la por inteiro o tempo todo e de uma só vez, eternamente e por um instante apenas, a consistência dos ombros, os braços, a suavidade contida pela firmeza dos quadris

Antes de ser transformada em som, som de escadas lentamente progressivo, som de Ana em si mesma, ela atravessa o jardim mal cuidado e chega ao portão de entrada, com ela o risco de nosso segredo.

mesmo as bocas úmidas e fartas de se provarem buscam alternativas para sua sede de pele, seu paladar de saliva, sua fome

Enquanto percorre a escada em frente, vinda do meio do quarteirão, alterna-se sol e sombra de árvores. Ana é as duas, a que reflete luz meridiana, a que foge à própria silhueta, deformada por focos que mal e mal atravessam as copas, filtrando-se entre raras concessões vegetais.

seus cabelos confundem-me os desejos como se me tentassem a dominá-los, há também o pescoço e a linha do maxilar, não sei em que momento seguro seu tornozelo como se a prendesse, tornando-a mais livre

Ela ainda não surge de todo, mas sua imagem obstruída por uma árvore baixa e uma grade de canteiro já a revela na perspectiva das calçadas, por onde vem conforme a minha espera, peça da mesma aventura na rua semideserta, o mormaço da hora.

Ana, nem o início nem o fim: todas as formas

De uma primeira visão, tiro apenas um fragmento que não a identifica, embora seja ela desde já: o que vejo são seus pés, Ana, que fazem seu caminho até mim.


Perce polegatto

domingo, 4 de julho de 2010

Beethoven não pode esperar


Entra em casa vindo de um mundo onde somente e com a mais pura nitidez as coisas existem. Sonha que não é um homem, pretende vencer o que o aflige. Na escrivaninha reencontra (a tarde de vento) o que exige ser decifrado, esboços de labirintos, a gárgula do chafariz, cenário da infância onde pela primeira vez compreendeu que compreendia, de onde partiu tudo o que mais tarde se torna ele, avesso da razão, despertar ao que intui secreto e além das coisas: o tempo. Um sonho, não mais. Música ao fundo. Soma de todos os segredos. Já é um homem. Não o seu rosto. O olhar. E sua temporada de luz, sua breve luz. Deserto de cantigas. Mas há o quarto que o abriga, o que supõe seu paraíso fechado, há o papel desafiando ao resgate. Por toda parte o abismo de sua fortaleza sem deuses, arrebatador. Os mistérios não são ocultos. Mas recusamos sua evidência inquietante. Outra vez a febre, as mãos que tremem: que música é esta? Que abismo é este, se maior abismo é tê-lo devassado?

Perce Polegatto

terça-feira, 22 de junho de 2010

As cinco estações

PRIMAVERA. O invasor


Privilegiado pelas árvores, o bosque à janela de meu quarto, de onde migravam brisas aromáticas como filtradas por estames novos, canto de cigarras entre outros, quando a natureza revia seu universo: as longas manhãs da adolescência pareciam mais lânguidas na primavera. Ao despertar fixava longamente o que me parecia a amostra de um paraíso fechado, concebendo a interação dos seres que ali habitavam, viviam. Mas minha janela aberta à noite atraiu com seu quadro de luz um inseto gigantesco que batia contra as paredes e voejava ruidosamente ao meu redor. No afã de persegui-lo, fui perseguido e tive medo. Por um momento divisei sua fisionomia fibrosa de monstro. Tentei espantá-lo, mas fui vencido. Fechada a porta por fora, em outra parte ruminei a insônia. Pela manhã, o quarto vazio, cortinas leves flutuando como se por ali brincassem os fantasmas do vento. Vi outra vez o santuário de árvores para onde teria retornado o súbito demônio, vi de minha fortaleza sem deuses sua fortaleza sem deuses, a porção de paraíso e inferno onde os monstros se disfarçam entre flores.


VERÃO. Canção dos vaga-lumes


E sua luz, sua breve luz. Duravam só o verão. Encantavam-me em criança, pedia a meu pai que os explicasse. “Por que vaga-lume, pai? “Caga-lume virou vaga-lume.” Eu ria, pedia que outra vez recordasse a cantiga de atraí-los. Cantávamos juntos, perscrutando a escuridão, eu os chamava com gestos.

Vaga-lume tem-tem. Vaga-lume tem-tem.
Teu pai está aqui, tua mãe também.


Tantas vezes vi voltar o verão dos vaga-lumes, tanto a parceria de meu pai, que a vida parecia encantada e eterna. Ocorre-me hoje, passando rente aos ciprestes do cemitério onde o tempo guardou meus pais, a canção antes eterna, agora efêmera, com que os chamava na infância. Acendo um cigarro, detendo-me ante a grade por onde giram os vaga-lumes, e é como me chamassem desta vez:

Teu pai está aqui, tua mãe também.


Eu os vejo faiscando no negrume das árvores, no que lhes cabe entre os ciclos, e sua temporada de luz. Sua breve luz.


OUTONO. O passado do tempo paixão


Você me acusa, eu sei. Como sua mãe. Não espere. Não se levante, fique assim comigo. Sua nudez me inspira calma, não volúpia. Quando a encontrei (a tarde de vento) senti que se atrairia por mim, fechando assim o ciclo de segredos que persistia desde uma geração e que tornaria a se abrir cada vez que se tocasse. Rompendo, libertando. Você entende? Corrige verbos que eu nunca soube conjugar direito. Como sua mãe. Acusa-me de estar sempre atrasado, com certa razão. Naquele tempo (a tarde de vento) eu considerava os ciclos baseado em relógios e dias, faltava-me desvendá-los. Não só o tempo me espanta. Transcorrer sem que se ergam os olhos: como poderia ser se não fosse assim? Um sonho, não mais. Não me lembro do que sonhei. Mas ela estava em meu sonho. Quando entrei em seu quarto, a cama derrubada, travesseiros deformados por não sei que necessidades, lembro-me: outro quarto, o mesmo. Apenas fique assim, deite a cabeça. Já é uma mulher. Como sua mãe. Não me refiro às formas. O olhar. Quando a encontrei (a tarde de vento) senti que se atrairia por mim, sem supor que a decisão de rompermos a faria uma filha que seria minha por ter sido sua sendo outra e a mesma desde o momento em que a encontrei (a tarde de vento) à sua imagem, semelhança e identidade, em outra geração, o que me permite romper, libertar, outra vez amá-la por tê-la perdido, possuí-la infinitamente.


INVERNO. As manhãs


Bosque de ar nublado, árvores esparsas. Corpo de homem, cabeça e ombros de um cão negro que se aproxima em silêncio e uma nudez masculina de estátua, passos seguros: a criatura, embora um animal soturno, tem olhos vazios de agressividade. Sua calma é assustadora. Ergue os braços, chega a abraçá-lo num gesto lento... — o grito.

“Sonhei que eu não era um homem. Que era um menino. E estava perdido num bosque que não conhecia, sem encontrar a saída...”

“Foi só um pesadelo.”

A irmã lhe serve um café, ele sai para outro dia de trabalho. Cuidado com emoções fortes, diz o médico. Mas nessa idade, o tempo contado para aposentar-se, a rotina insossa ao lado da irmã, rastejando sobre uma acostumada escassez de emoções, nada há que... E a manhã nublada, quase onírica, da realidade por onde erra, quase um sonho outra vez. Golpe de sangue no peito, perde a firmeza das pernas, afunda na escuridão que o faz indefeso, caindo do alto, caindo do solo e mais ao fundo... — o grito. Braços que enfim o envolvem de maneira alentadora. O peito escuro e paternal aconchega a cabeça de um menino amedrontado.

“Sonhei que eu não era um menino. Que era um homem. E estava perdido por ruas que não conhecia, sem encontrar a saída...”

Supõe ouvir que foi só um pesadelo. Recobra a calma, a realidade das manhãs onde somente e com a mais pura intenção as coisas existem.

Perce Polegatto

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Todas as sombras


Não me entendas teu amante suicida
que eu nem mesmo escreverei de nosso amor.
não me abraces esperando que eu te ame,
pois tudo em nós não passa de conflito
e há enigmas além de teu segredo
que chegam de mansinho e me acorrentam.

não, não me tragas mais poesia nos teus olhos!
há ventos estranhos, resíduos vivos,
há um desperdício inútil de sangue nas fronteiras
e hoje eu tenho que morrer,
morrer um pouco.

há sarcófagos ocultos onde ainda repousam princesas,
há terríveis profecias trazendo devastações,
há livros enormes (dentro deles os heróis se sacrificam),
há astrônomos, soldados e palhaços,
há um circo na cidade.

vagam fantasmas de incerto destino,
há névoa no ar.
o pesadelo persegue as pessoas.
mulheres soluçam, sozinhas de sexo.
a fome devora as aldeias.

em outras galáxias, povos inteiros sucumbem
— morrem civilizações e outras nascem
ao tempo em que sonho.

há pontes sombrias
e rios infinitos murmurando um pranto lamacento.
há muralhas, cordilheiras, guerrilheiros,
há missionários perdidos na selva para sempre.
há um velho solitário que conhece os segredos do inverno
e um gênio no fundo de um bar, esquecido.

caem dinastias para sempre,
criam-se potências e tiranos sanguinários,
morrem bravos e covardes por amor,
séculos correm...

há homens cavando uma mina distante,
há fósseis que nos lembram os dilúvios fabulosos
e algas oceânicas em lamas primitivas.

não esperes mais de mim que meu tormento.
há muito me perdi nas águas cristalinas dos teus olhos,
embora nosso beijo no passado
fosse menos violento que as próprias tempestades do universo
em recentes espirais de estrelas jovens.

Perce Polegatto