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domingo, 9 de julho de 2023

Leite Derramado


 Foi a última noite que dormi aqui, e que sonhando com ela melei estes lençóis. Como toda manhã, arrancarei a roupa de cama e farei uma trouxa, que atirarei pela janela dos fundos para a lavadeira apanhar. Mas vai restar visível uma mancha úmida no colchão, que tratarei de virar como faço toda manhã, deixando para cima o lado das manchas secas. Terei a sensação de que o colchão pesa mais um pouco a cada dia, e imaginarei que na palha dentro dele, se impregna a pasta dos meus sonhos e atos solitários.

*
Para o jardineiro do casarão, mamãe era mesmo como a flor, que ao mudar de vaso às vezes fenece.
*
Vai ver que andei delirando, e de bom grado voltarei a falar somente de coisas que você já sabe. Se com a idade a gente dá para repetir casos antigos, palavra por palavra, não é por cansaço da alma, é por esmero. É para si próprio que um velho repete sempre a mesma história, como se assim tirasse cópias dela, para a hipótese de a história se extraviar. Não sei se já lhe contei como conheci Matilde na missa de sétimo dia do meu pai, quando ela falou Eulálio de tal jeito, que nem mesmo atrizes sensuais conseguiriam reproduzir na minha cama. Também acho que lhe contei como fui vigiá-la um dia depois, toda serelepe à saída da escola, era a mais moreninha da classe. Passei a buscá-la todo dia, só de de Matilde no saguão da escola juntei recordações em série para o resto da vida.
*
O médico sempre me corta a palavra para narrar suas atividades numas paragens que só ele conhece, nesses matos onde estrangeiros gostam de se enfiar. E toca a falar de paludismo, esquistossomose, mal de Chagas, hanseníase, e entre uma e outra endemia me pego a contemplar o forte de Copacabana, esperando que desponte um transatlântico por trás da pedra. Ao meio-dia Matilde leva a Eulalinha para casa, onde lhe dá de mamar e a embala com a cantiga do boitatá-pega-neném. Volta para sentar comigo, me faz deitar a cabeça no seu colo e diz, abre a boca e fecha os olhos. Enche minha boca de areia e sai em disparada a fim de que eu a persiga mar a fundo, depois me chama para catar tatuís ou jogar peteca.
*
É estranho ter lembranças de coisas que ainda não aconteceram, acabo de lembrar que Matilde vai sumir para sempre.
*
Se o leite estanca assim de supetão, dizia à ama, é porque a mãe perdeu um ente querido, ou padeceu grande decepção amorosa. Olhava para o alto quando se referia ao ente querido, e decepção amorosa ela falava olhando para mim, como se eu fosse um mau marido. Logo eu, que sentia falta de Matilde tanto quanto a minha filha, e nem ao menos tinha outros peitos para me consolar.

*

... A orquestra não dava pausa, a música era repetitiva, a dança se revelou vulgar, pela primeira vez julguei meio vulgar a mulher com quem eu tinha me casado. Depois de meia hora eles voltaram se abanando, e escorria suor pelo colo de Matilde decote abaixo. Bravô, eu gritei, bravô, e ainda os estimulei a dançar o próximo tango, mas Dubosc dise que já era tarde, e que eu tinha um ar fatigado. Fatigado estava ele, que pediu carona até seu hotel a duas quadras, e se recolheu sem se despedir direito, nem sequer beijou a mão de Matilde. Talvez tenha concluído, ao longo da noitada, que ela era mulher para dançar maxixe, e não de beijar a mão. E no caminho de casa Matilde pegou a assobiar, assobiava a melodia do tal maxixe. Parecia má-criação, de uma feita assobiou num jantar de minha mãe, que se retirou da mesa. Mas agora deve ter percebido o quanto me exasperava, porque se interrompeu para perguntar o que havia comigo. Nada, azia, eu disse, e não era mentira, meu estômago não suportava cachaça, que agora era moda servir até em locais requintados. Ela saiu do carro antes que eu lhe abrisse a porta, e mal entramos em casa foi para a cozinha, tinha mania de ir para a cozinha. Volta e meia levava a criança à cozinha, dava conversa às empregadas, era vezeira em almoçar ali com a babá. Então me vi tomado de um sentimento obscuro, entre a vergonha e a raiva de gostar de uma mulher que vive na cozinha. Eu seguia Matilde, que falava sozinha, que meio cantarolando perguntava pelo chá de boldo, e de repente não sei o que me deu, agarrei-a com violência pelas costas. Joguei-a contra a parede e ela não entendeu, começou a emitir gemidos nasais, o rosto achatado nos ladrilhos. Prendi seus punhos na parede, ela se debatia, mas eu a controlava com meus joelhos atrás dos seus. E como meu tronco eu a apertava, eu a espremia a valer, eu quase a esmagava na parede, até que Matilde disse, eu vou, Eulálio, e seu corpo tremeu inteiro, levando o meu a tremer junto.

*

Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das joias e do nome da minha família. Vai dar ordens aos criados, vai montar no cavalo da minha antiga mulher. E se na fazenda ainda não houver luz elétrica, providenciarei um gerador para você ver televisão. Vai ter também ar condicionado em todos os aposentos da sede, porque na baixada hoje em dia faz muito calor. Não sei se foi sempre assim, se meus antepassados suavam debaixo de tanta roupa. Minha mulher, sim, suava bastante, mas ela já era de uma nova geração e não tinha a austeridade da minha mãe. Minha mulher gostava de sol, voltava sempre afogueada das tardes do areal de Copacabana. Mas nosso chalé em Copacabana já veio abaixo, e de qualquer forma eu não moraria com você na casa de outro casamento, moraremos na fazenda da raiz da serra. Vamos nos casar na capela que foi consagrada pelo cardeal arcebispo do Rio de Janeiro em mil oitocentos e lá vai fumaça. Na fazenda você tratará de mim e de mais ninguém, de maneira que ficarei completamente bom. E plantaremos árvores, e escreveremos livros, e se Deus quiser ainda criaremos filhos nas terras de meu avô.Mas se você não gostar da raiz da serra por causa das pererecas e dos insetos, ou da lonjura ou de outra coisa, poderíamos morar em Botafogo, no casarão construído por meu pai. Ali há quartos enormes, banheiros de mármores com bidês, vários salões com espelhos venezianos, estátuas, pé-direito monumental e telhas de ardósias importadas da França. Há palmeiras, abacateiros e amendoeiras no jardim, que virou estacionamento depois que a embaixada da Dinamarca mudou para Brasília. Os dinamarqueses me compraram o casarão a preço de banana, por causa das trapalhadas do meu genro. Mas se amanhã eu vender a fazenda, que tem duzentos alqueires de lavoura e pastos, cortados por um ribeirão de água potável, talvez possa reaver o casarão de Botafogo e restaurar os móveis de mogno, mandar afinar o piano Pleyel da minha mãe. Terei bricolagens para me ocupar anos a fio, e caso você deseje prosseguir na profissão, irá para o trabalho a pé, visto que o bairro é farto em hospitais e consultórios. Aliás, bem em cima do nosso próprio terreno levantaram um centro médico de dezoito andares, e com isso acabo de me lembrar que o casarão não existe mais. E mesmo a fazenda na raiz da serra, acho que desapropriaram em 1947 para passar a rodovia. Estou pensando alto para que você me escute. E falo devagar, como quem escreve, para que você me transcreva sem precisar ser taquígrafa, você está aí? Acabou a novela, o jornal, o filme, não sei por que deixam a televisão ligada, fora do ar. Deve ser para que esse chuvisco me encubra a voz, e eu não moleste os outros pacientes com meu palavratório.

*

... adoro ver seus olhos de rapariga rondando a enfermaria: eu, o relógio, a televisão, o celular, eu, a cama do tetraplégico, o soro, a sonda, o velho do Alzheimer, o celular, a televisão, eu, o relógio de novo, e não deu nem um minuto. Também acho uma delícia quando você esquece os olhos em cima dos meus, para pensar no galã da novela, nas mensagens do celular, na menstruação atrasada."

*

A figurar Matilde trancada num sanatório, era mil vezes preferível perambular pela cidade, adivinhando a silhueta dela em cada janela de arranha-céu. Algum dia eu haveria de topar com ela, mesmo que se passassem anos, mesmo aos beijos com outro. E se algum dia encontrasse Matilde com outro, mais que olhar Matilde eu olharia o outro, eu necessitava saber como era esse homem, para dar substância ao meu ciúme. Eu pensava nesse homem constantemente, muitas noites cheguei a sonhar com ele, mas ao despertar não conseguia lhe conferir forma humana. Nem ódio eu podia ter de um sujeito que não me ultrajou, não entrou na minha casa, não fumou meus charutos, não violentou minha mulher. E pouco a pouco me dispus a aceitá-lo, procurei imaginá-lo como uma alma delicada, como alguém que olharia por Matilde na minha falta. Imaginava um homem que se dirigisse a ela somente com palavras que nunca usei, que tivesse o cuidado de tocar a pele dela onde eu jamais tocava. Um homem que se deitasse com ela sem tomar o meu lugar, um homem que se contentasse em ser o que eu não era. De tal modo que Matilde pensaria em mim sempre que olhasse em torno dele, e em sonhos nos visse os dois ao mesmo tempo, sem compreender quem era a sombra de quem. E ao despertar, talvez só se lembrasse vagamente de ter sonhado com o desenho das ondas em preto-e-branco, no mosaico da calçada de Copacabana. A calçada onde em tempos ela saltitava como se jogasse amarelinha, porque não podia pisar senão nas pedras brancas. E onde eu agora caminhava trôpego, trançando as pernas, pois apenas roçasse um pé nas pretas, cairia no inferno.
Acho que o inferno era a doença de Matilde.

*

O sonífero não tem mais efeito imediato, e já sei que o caminho do sono é como um corredor cheio de pensamentos. Ouço ruídos de gente, de vísceras, um sujeito entubado emite sons rascantes, talvez queira me dizer alguma coisa. O médico plantonista vai entrar apressado, tomar meu pulso, talvez me diga alguma coisa. Um padre chegará para a visita aos enfermos, falará baixinho palavras em latim, mas não deve ser comigo. Sirene na rua, telefone, passos, há sempre uma expectativa que me impede de cair no sono. É a mão que me sustém pelos raros cabelos. Até eu topar na porta de um pensamento oco, que me tragará para as profundezas, onde costumo sonhar em preto-e-branco.


Chico Buarque, Leite Derramado

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Chico Buarque, Leite Derramado (trecho)




Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das joias e do nome da minha família. Vai dar ordens aos criados, vai montar no cavalo da minha antiga mulher. E se na fazenda ainda não houver luz elétrica, providenciarei um gerador para você ver televisão. Vai ter também ar condicionado em todos os aposentos da sede, porque na baixada hoje em dia faz muito calor. Não sei se foi sempre assim, se meus antepassados suavam debaixo de tanta roupa. Minha mulher, sim, suava bastante, mas ela já era de uma nova geração e não tinha a austeridade da minha mãe. Minha mulher gostava de sol, voltava sempre afogueada das tardes no areal de Copacabana. Mas nosso chalé em Copacabana já veio abaixo, e de qualquer forma eu não moraria com você na casa de outro casamento, moraremos na fazenda da raiz da serra. Vamos nos casar na capela que foi consagrada pelo cardeal arcebispo do Rio de Janeiro em mil oitocentos e lá vai fumaça. Na fazenda você tratará de mim e de mais ninguém, de maneira que ficarei completamente bom. E plantaremos árvores, e escreveremos livros, e se Deus quiser ainda criaremos filhos nas terras de meu avô. Mas se você não gostar da raiz da serra por causa das pererecas e dos insetos, ou da lonjura ou de outra coisa, poderíamos morar em Botafogo, no casarão construído por meu pai. Ali há quartos enormes, banheiros de mármore com bidês, vários salões com espelhos venezianos, estátuas, pé-direito monumental e telhas de ardósia importadas da França. Há palmeiras, abacateiros e amendoeiras no jardim, que virou estacionamento depois que a embaixada da Dinamarca mudou para Brasília. Os dinamarqueses me compraram o casarão a preço de banana, por causa das trapalhadas do meu genro. Mas se amanhã eu vender a fazenda, que tem duzentos alqueires de lavoura e pastos, cortados por um ribeirão de água potável, talvez possa reaver o casarão de Botafogo e restaurar os móveis de mogno, mandar afinar o piano Pleyel da minha mãe. Terei bricolagens para me ocupar anos a fio, e caso você deseje prosseguir na profissão, irá para o trabalho a pé, visto que o bairro é farto em hospitais e consultórios. Aliás, bem em cima do nosso próprio terreno levantaram um centro médico de dezoito andares, e com isso acabo de me lembrar que o casarão não existe mais. E mesmo a fazenda na raiz da serra, acho que desapropriaram em 1947 para passar a rodovia. Estou pensando alto para que você me escute. E falo devagar, como quem escreve, para que você me transcreva sem precisar ser taquígrafa, você está aí? Acabou a novela, o jornal, o filme, não sei por que deixam a televisão ligada, fora do ar. Deve ser para que esse chuvisco me encubra a voz, e eu não moleste os outros pacientes com meu palavrório. Mas aqui só há homens adultos, quase todos meio surdos, se houvesse senhoras de idade no recinto eu seria mais discreto. Por exemplo, jamais falaria das putinhas que se acocoravam aos faniquitos, quando meu pai arremessava moedas de cinco francos na sua suíte do Ritz. Meu pai ali muito compenetrado, e as cocotes nuinhas em postura de sapo, empenhadas em pinçar as moedas no tapete, sem se valer dos dedos. A campeã ele mandava descer comigo ao meu quarto, e de volta ao Brasil confirmava à minha mãe que eu vinha me aperfeiçoando no idioma. Lá em casa como em todas as boas casas, na presença de empregados os assuntos de família se tratavam em francês, se bem que, para mamãe, até me pedir o saleiro era assunto de família. E além do mais ela falava por metáforas, porque naquele tempo qualquer enfermeirinha tinha rudimentos de francês. Mas hoje a moça não está para conversas, voltou amuada, vai me aplicar a injeção. O sonífero não tem mais efeito imediato, e já sei que o caminho do sono é como um corredor cheio de pensamentos. Ouço ruídos de gente, de vísceras, um sujeito entubado emite sons rascantes, talvez queira me dizer alguma coisa. O médico plantonista vai entrar apressado, tomar meu pulso, talvez me diga alguma coisa. Um padre chegará para a visita aos enfermos, falará baixinho palavras em latim, mas não deve ser comigo. Sirene na rua, telefone, passos, há sempre uma expectativa que me impede de cair no sono. É a mão que me sustém pelos raros cabelos. Até eu topar na porta de um pensamento oco, que me tragará para as profundezas, onde costumo sonhar em preto-e-branco.


Chico Buarque, Leite derramado
Companhia das letras, p. 5-8

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Com Açúcar, Com Afeto



Com açúcar, com afeto, fiz seu doce predileto
Pra você parar em casa, qual o quê!
Com seu terno mais bonito, você sai, não acredito
Quando diz que não se atrasa
Você diz que é um operário, vai em busca do salário
Pra poder me sustentar, qual o quê!
No caminho da oficina, há um bar em cada esquina
Pra você comemorar, sei lá o quê!
Sei que alguém vai sentar junto, você vai puxar assunto
Discutindo futebol
E ficar olhando as saias de quem vive pelas praias
Coloridas pelo sol
Vem a noite e mais um copo, sei que alegre ma non troppo
Você vai querer cantar
Na caixinha um novo amigo vai bater um samba antigo
Pra você rememorar
Quando a noite enfim lhe cansa, você vem feito criança
Pra chorar o meu perdão, qual o quê!
Diz pra eu não ficar sentida, diz que vai mudar de vida
Pra agradar meu coração
E ao lhe ver assim cansado, maltrapilho e maltratado
Ainda quis me aborrecer? Qual o quê!
Logo vou esquentar seu prato, dou um beijo em seu retrato
E abro os meus braços pra você.


Chico Buarque

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

De todas as maneiras

nikola borissov


De todas as maneiras que há de amar
Nós já nos amamos
Com todas as palavras feitas pra sangrar
Já nos cortamos
Agora já passa da hora, tá lindo lá fora
Larga a minha mão, solta as unhas do meu coração
Que ele está apressado
E desanda a bater desvairado
Quando entra o verão

De todas as maneiras que há de amar
Já nos machucamos
Com todas as palavras feitas pra humilhar
Nos afagamos
Agora já passa da hora, tá lindo lá fora
Larga a minha mão, solta as unhas do meu coração
Que ele está apressado
E desanda a bater desvairado
Quando entra o verão


Chico Buarque 

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Grande Hotel

Katerina Lomonosov 


Vens ao meu quarto de hotel
Sem te anunciares sequer
Com certeza esqueceste que és
Que és uma senhora
Vejo-te andar de tailleur
Atravessando a novela
Sentes prazer em falar
De sentimentos de outrora

Deito-me no canapé
Não sem antes abrir a janela
E ver tuas palavras ao léu
Jogas conversa fora
Sabes que estive a teus pés
Sei que serás sempre aquela
Pretendes me complicar
Mas passou a nossa hora

Não me incomodo que fumes
Podes mesmo te servir à vontade do meu frigobar
Ou levar um souvenir
Dispõe do meu telefone
Desejando, liga o interurbano pra qualquer lugar
E apaga a luz ao sair

Quando eu pensava em dormir
Tu chegas vestida de negro
Vens decidida a bulir
Com quem está posto em sossego
Entras com ares de atriz
Sabes que sou da plateia
Deves pensar que ando louco
Louco pra mudar de ideia, não?
Pensas que não sou feliz
Entras com roupa de estreia
Deves saber que ando louco
Louco pra mudar de ideia.


Chico Buarque

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Morena dos olhos d’água



Morena dos olhos d'água
Tira os seus olhos do mar
Vem ver que a vida ainda vale
O sorriso que eu tenho
Pra lhe dar

Descansa em meu pobre peito
Que jamais enfrenta o mar
Mas que tem abraço estreito, morena
Com jeito de lhe agradar
Vem ouvir lindas histórias
Que por seu amor sonhei
Vem saber quantas vitórias, morena
Por mares que só eu sei

O seu homem foi-se embora
Prometendo voltar já
Mas as ondas não tem hora, morena
De partir ou de voltar
Passa a vela e vai-se embora
Passa o tempo e vai também
Mas meu canto ainda lhe implora, morena
Agora, morena, vem.

Morena dos olhos d'água
Tira os seus olhos do mar
Vem ver que a vida ainda vale
O sorriso que eu tenho
Pra lhe dar



Chico Buarque

quarta-feira, 9 de maio de 2012



Foi ela que me convidou 
 Fui eu que não soube chegar 
 Foi ela que me maltratou 
 Fui eu que não soube chorar 
 Andei sete léguas de amor 
 Chorei sete litros de mar 
 Mas ela não se saciou 
 Mas ela não soube esperar 
 Foi ela que me condenou 
 Sou eu que vou lhe perdoar 
 Foi ela que tanto pecou 
 Sou eu que vou me confessar 
 Foi ela que se ajoelhou 
 Sou eu que vou ter que rezar 
 Foi ela que me arruinou 
 Sou eu que vou ter que pagar 
 Foi ela que me incendiou 
 É fogo na roupa contar 
 É mais uma história de amor 
 Que outro me tome o lugar 
 Não está mais aqui quem chorou 
 Um outro que venha chorar 
 É mais uma história vulgar 
 Mas se ela bater faz entrar 
 É mais uma história de amor 
 Mas se ela chamar diz que eu vou 
 Correr sete léguas de amor 
 Beber sete litros de mar 
 Pra ela dizer que acabou 
 Pra ela dizer que acabou 
 Pra ela dizer que não está 
 Pra ela dizer que não está 


 Chico Buarque 

terça-feira, 17 de abril de 2012

Pedaço de mim

Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar

Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais

Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu






Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi

Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Leva os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus



Chico Buarque
imagens: Sergey Karpenko

quinta-feira, 8 de março de 2012

Valsa Brasileira

imagem: Shaun Stubley


Vivia a te buscar
Porque pensando em ti
Corria contra o tempo
Eu descartava os dias
Em que não te vi
Como de um filme
A ação que não valeu
Rodava as horas pra trás
Roubava um pouquinho
E ajeitava o caminho
Pra encostar no teu

Subia na montanha
Não como anda um corpo
Mas um sentimento
Eu surpreendia o sol
Antes do sol raiar
Saltava as noites
Sem me refazer
E pela porta de trás
Da casa vazia
Eu ingressaria
E te veria
Confusa por me ver
Chegando assim
Mil dias antes de te conhecer


Chico Buarque 

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

O Circo Místico

imagem: Antonio Sgarbossa


Não sei se é um truque banal se um invisível cordão  sustenta a vida real
Cordas de uma orquestra, sombras de um artista, palcos de um planeta
E as dançarinas no grande final chove tanta flor
Que, sem refletir um ardoroso espectador vira colibri

Qual  não sei se é nova ilusão Se após o salto mortal existe outra encarnação
Membros de um elenco, malas de um destino, partes de uma orquestra
Duas meninas no imenso vagão  negro refletor
Flores de organdi e o grito do homem voador
Ao cair em si

Não sei se é vida real, um invisível cordão, após o salto mortal


Edu Lobo - Chico Buarque

terça-feira, 21 de junho de 2011



"Luz, quero luz, Sei que além das cortinas; São palcos azuis."

Vida, minha vida Olha o que é que eu fiz
Deixei a fatia mais doce da vida
Na mesa dos homens de vida vazia
Mas, vida, ali, quem sabe, eu fui feliz

Vida, minha vida Olha o que é que eu fiz
Verti minha vida nos cantos, na pia
Na casa dos homens de vida vadia
Mas, vida, ali, quem sabe, eu fui feliz

Luz, quero luz Sei que além das cortinas são palcos azuis
E infinitas cortinas com palcos atrás
Arranca, vida Estufa, veia E pulsa, pulsa, pulsa, Pulsa, pulsa mais

Mais, quero mais Nem que todos os barcos recolham ao cais
Que os faróis da costeira me lancem sinais
Arranca, vida Estufa, vela Me leva, leva longe, Longe, leva mais

Vida, minha vida Olha o que é que eu fiz
Toquei na ferida, nos nervos, nos fios
Nos olhos dos homens de olhos sombrios
Mas, vida, ali, eu sei que fui feliz

Luz, quero luz Sei que além das cortinas são palcos azuis
E infinitas cortinas com palcos atrás
Arranca, vida Estufa, veia E pulsa, pulsa, pulsa, Pulsa, pulsa mais

Mais, quero mais Nem que todos os barcos recolham ao cais
Que os faróis da costeira me lancem sinais
Arranca, vida Estufa, vela Me leva, leva longe, Longe, leva mais

Vida, minha vida Olha o que é que eu fiz...
Chico Buarque

domingo, 24 de abril de 2011

"Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.”

Carlos Drummond de Andrade

***

"Quando nasci veio um anjo safado
O chato dum querubim
E decretou que eu tava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim."

Chico Buarque de Holanda

***

"Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir."

Adélia Prado

***

"Quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião."

Torquato Neto

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

João e Maria


Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy
Era você além das outras três
Eu enfrentava os batalhões
Os alemães e seus canhões
Guardava o meu bodoque
E ensaiava o rock para as matinês

Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigado a ser feliz
E você era a princesa que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país

Não, não fuja não
Finja que agora eu era o seu brinquedo
Eu era o seu pião
O seu bicho preferido
Vem, me dê a mão
A gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido

Agora era fatal
Que o faz-de-conta terminasse assim
Pra lá deste quintal
Era uma noite que não tem mais fim
Pois você sumiu no mundo sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar
O que é que a vida vai fazer de mim?

Composição: Chico Buarque/ Sivuca

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011


"... adoro ver seus olhos de rapariga rondando a enfermaria: eu, o relógio, a televidão, o celular, eu, a cama do tetraplégico, o soro, a sonda, o velho do Alzheimer, o celular, a televisão, eu, o relógio de novo, e não deu nem um minuto. Também acho uma delícia quando você esquece os olhos emcima dos meus, para pensar no galã da novela, nas mensagens do celular, na menstruação atrasada."


Chico Buarque, Leite derramado

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Cálice


Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça

Chico Buarque de Holanda

quarta-feira, 29 de setembro de 2010


Dono do abandono e da tristeza
Comunico oficialmente que há um lugar na minha mesa
Pode ser que você venha por mero favor, ou venha coberta de amor
Seja lá como for, venha sorrindo
Ah, benvinda, benvinda, benvinda
Que o luar está chamando, que os jardins estão florindo
Que eu estou sozinho
Cheio de anseio e de esperança, comunico a toda gente
Que há lugar na minha dança
Pode ser que você venha morar por aqui, ou venha pra se despedir
Não faz mal pode vir até mentindo
Ah, benvinda, benvinda, benvinda
Que o meu pinho está chorando, que o meu samba está pedindo
Que eu estou sozinho
Vem iluminar meu quarto escuro, vem entrando com o ar puro
Todo novo da manhã
Oh vem a minha estrela madrugada, vem a minha namorada
Vem amada, vem urgente, vem irmã
Benvinda, benvinda, benvinda
Que essa aurora está custando, que a cidade está dormindo
Que eu estou sozinho
Certo de estar perto da alegria, comunico finalmente
Que há lugar na poesia
Pode ser que você tenha um carinho para dar, ou venha pra se consolar
Mesmo assim pode entrar que é tempo ainda
Ah, benvinda, benvinda, benvinda
Ah, que bom que você veio, e você chegou tão linda
Eu não cantei em vão
Benvinda, benvinda, benvinda. benvinda, benvinda


Chico Buarque

sábado, 25 de setembro de 2010

Chico Buarque, Leite derramado (2)


Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das joias e do nome da minha família.Vai dar ordens aos criados, vai montar no cavalo da minha antiga mulher. E se na fazenda ainda não houver luz elétrica, providenciarei um gerador para você ver televisão. Vai ter também ar condicionado em todos os aposentos da sede, porque na baixada hoje em dia faz muito calor. Não sei se foi sempre assim, se meus antepassados suavam debaixo de tanta roupa. Minha mulher, sim, suava bastante, mas ela já era de uma nova geração e não tinha a austeridade da minha mãe. Minha mulher gostava de sol, voltava sempre afogueada das tardes do areal de Copacabana. Mas nosso chalé em Copacabana já veio abaixo, e de qualquer forma eu não moraria com você na casa de outro casamento, moraremos na fazenda da raiz da serra. Vamos nos casar na capela que foi consagrada pelo cardeal arcebispo do Rio de Janeiro em mil oitocentos e lá vai fumaça. Na fazenda você tratará de mim e de mais ninguém, de maneira que ficarei completamente bom. E plantaremos árvores, e escreveremos livros, e se Deus quiser ainda criaremos filhos nas terras de meu avô.Mas se você não gostar da raiz da serra por causa das pererecas e dos insetos, ou da lonjura ou de outra coisa, poderíamos morar em Botafogo, no casarão construído por meu pai. Ali há quartos enormes, banheiros de mármores com bidês, vários salões com espelhos venezianos, estátuas, pé-direito monumental e telhas de ardósias importadas da França. Há palmeiras, abacateiros e amendoeiras no jardim, que virou estacionamento depois que a embaixada da Dinamarca mudou para Brasília. Os dinamarqueses me compraram o casarão a preço de banana, por causa das trapalhadas do meu genro. Mas se amanhã eu vender a fazenda, que tem duzentos alqueires de lavoura e pastos, cortados por um ribeirão de água potável, talvez possa reaver o casarão de Botafogo e restaurar os móveis de mogno, mandar afinar o piano Pleyel da minha mãe. Terei bricolagens para me ocupar anos a fio, e caso você deseje prosseguir na profissão, irá para o trabalho a pé, visto que o bairro é farto em hospitais e consultórios. Aliás, bem em cima do nosso próprio terreno levantaram um centro médico de dezoito andares, e com isso acabo de me lembrar que o casarão não existe mais. E mesmo a fazenda na raiz da serra, acho que desapropriaram em 1947 para passar a rodovia. Estou pensando alto para que você me escute. E falo devagar, como quem escreve, para que você me transcreva sem precisar ser taquígrafa, você está aí? Acabou a novela, o jornal, o filme, não sei por que deixam a televisão ligada, fora do ar. Deve ser para que esse chuvisco me encubra a voz, e eu não moleste os outros pacientes com meu palavratório.

Chico Buarque, Leite derramado

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Futuros Amantes



"Eu tava mexendo no violão, começando a fazer a melodia, e ai a primeira coisa que apareceu foi exatamente: cidade submersa, isolada de tudo. Porque, cantarolando, parecia que a música queria dizer isso. Eu tinha que ir atrás, depois tinha que explicar essa cidade submersa. Apareceu exatamente a cidade submersa antes de qualquer outra coisa . Aí eu coloquei esses escafandristas, e esse amor adiado, um amor que fica para sempre. Essa idéia do amor que existe como algo que pode ser aproveitado mais tarde, que não se desperdiça. Passa-se o tempo, passam-se milênios, e aquele amor vai ficar até debaixo d'água. Um amor que vai ser usado por outras pessoas, um amor que não foi utilizado porque não foi correspondido, e então ele fica ímpar, pairando, esperando que alguém o apanhe e complete a sua função de amor."


Não se afobe, não, que nada é pra já
O amor não tem pressa, ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário, na posta-restante
Milênios, milênios no ar
E quem sabe, então o Rio será alguma cidade submersa
Os escafandristas virão explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas, sua alma, desvãos
Sábios em vão tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização
Não se afobe, não, que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que eu um dia
Deixei pra você

Chico Buarque

terça-feira, 13 de julho de 2010

Uma Palavra

Vintage - Scott Harding

Palavra prima
Uma palavra só, a crua palavra
Que quer dizer
Tudo
Anterior ao entendimento, palavra

Palavra viva
Palavra com temperatura, palavra
Que se produz
Muda
Feita de lua mais que de vento, palavra

Palavra dócil
Palavra d'agua pra qualquer moldura
Que se acomoda em baldo, em verso, em mágoa
Qualquer feição de se manter palavra

Palavra minha
Matéria, minha criatura, palavra
Que me conduz
Mudo
E que me escreve desatento, palavra

Talvez à noite
Quase-palavra que um de nós murmura
Que ela mistura as letras que eu invento
Outras pronúncias do prazer, palavra

Palavra boa
Não de fazer literatura, palavra
Mas de habitar
Fundo
O coração do pensamento, palavra

Chico Buarque

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Nina rizzi



imagina só meu caro amigo, que logo eu
aos doze anos, na flor da idade
fui um milagre brasileiro:
uma morena de angola, dos olhos d'água,
moça da cidade e violeira na cidade dos artistas
uma cidade ideal pra minha canção, pra ver a banda passar,
curtir festa modesta ou a fantasia
sempre voltando ao samba na ciranda da bailarina.

era a moça mais bonita, a moça do sonho,
na ilha de lia, no barco de rosa.
ura na queda, desafiei o malandro e fiz
um casamento de pequenos burgueses num circo místico
numa noite de mascarados com um novo amor
(é que não existe pecado ao sul do equador).

mas como o cotidiano é cheio
de desencontros, desencantos, desemboladas,
feito um folhetim de esconde-esconde
deixei a menina, carioca ou francesa,
como num samba de adeus, pois é
qualquer amor, romance é como um retrato em preto e branco,
samba, agoniza, mas não morre a gente fica com tanta saudade
então como sentimental vamos sempre em frente na roda viva.

mas tem mais samba rei de ramos!
samba de orly, tango de covil, valsinha, um chorinho
sobre todas as coisas daqueles anos dourados!
sobre o tempo que passou, minha história.
não fui uma menina, trocando em miúdos, fui umas e outras
e pra não dizer mais tantas palavras fora de hora
façamos a lista do meu sonho de carnaval, das minhas meninas,
las muchachas de Copacabana as mulheres que fui:

ana de amsterdam
angélica
bárbara
beatriz
carolina
cecília
cristina
geni
helena
iolanda
iracema
januária
joana
leila
lola
lilly braun
luísa e luíza
madalena
maria
nancy
renata
rita
rosa
sílvia
teresinha.

palavra de mulher! fui todas as mulheres de atenas!
uma mulher em cada porto, com açúcar e com afeto,
sem açúcar, sem fantasia, sem compromisso de todas as maneiras.

mas essa minha canção, o meu último blues
é pra deixar de ser tudo que sou e que fui
por um sonho (quase) impossível:
ser a garota do leblon.
e se não puder... não sonho mais!

Chico Buarque