quinta-feira, 28 de abril de 2022

A de Sempre, Toda Ela


CARO GUARINOS


Se eu vos disser: «tudo abandonei» 

É porque ela não é a do meu corpo, 

Eu nunca me gabei, 

Não é verdade 

E a bruma de fundo em que me movo 

Não sabe nunca se eu passei. 


O leque da sua boca, o reflexo dos seus olhos 

Sou eu o único a falar deles, 

O único a ser cingido 

Por esse espelho tão nulo em que o ar circula através de mim 

E o ar tem um rosto, um rosto amado, 

Um rosto amante, o teu rosto, 

A ti que não tens nome e que os outros ignoram, 

O mar diz-te: sobre mim, o céu diz-te: sobre mim, 

Os astros adivinham-te, as nuvens imaginam-te 

E o sangue espalhado nos melhores momentos, 

O sangue da generosidade 

Transporta-te com delícias. 


Canto a grande alegria de te cantar, 

A grande alegria de te ter ou te não ter, 

A candura de te esperar, a inocência de te conhecer, 

Ó tu que suprimes o esquecimento, a esperança e a ignorância, 

Que suprimes a ausência e que me pões no mundo, 

Eu canto por cantar, amo-te para cantar 

O mistério em que o amor me cria e se liberta. 


Tu és pura, tu és ainda mais pura do que eu próprio. 


Paul Eluard, in "Algumas das Palavras"