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quarta-feira, 20 de abril de 2022

AS RUÍNAS CIRCULARES

Ninguém o viu desembarcar na unânime noite, ninguém viu a canoa de bambu sumindo-se no lodo sagrado, mas em poucos dias ninguém ignorava que o homem taciturno vinha do Sul e que sua pátria era uma das infinitas aldeias que estão águas acima, no flanco violento da montanha, onde o idioma zenda não se contaminou de grego e onde é infrequente a lepra. O certo é que o homem cinza beijou o lodo, subiu as encostas da ribeira sem afastar (provavelmente, sem sentir) as espadanas que lhe dilaceravam as carnes e se arrastou, mareado e ensanguentado, até o recinto circular que coroa um tigre ou cavalo de pedra, que teve certa vez a cor do fogo e agora a da cinza. Esse círculo é um templo que os incêndios antigos devoraram, que a selva palúdica profanou e cujo deus não recebe honra dos homens. O forasteiro estendeu-se sob o pedestal. O sol alto o despertou. Comprovou sem assombro que as feridas cicatrizaram; fechou os olhos pálidos e dormiu, não por fraqueza da carne, mas por determinação da vontade. Sabia que esse templo era o lugar que seu invencível propósito postulava; sabia que as árvores incessantes não conseguiram estrangular, rio abaixo, as ruínas de outro templo propício, também de deuses incendiados e mortos; sabia que sua imediata obrigação era o sonho. Por volta da meia-noite, despertou-o o grito inconsolável de um pássaro. Rastros de pés descalços, alguns figos e um cântaro advertiram-no de que os homens da região haviam espiado respeitosos seu sonho e solicitavam-lhe o cuidado ou temiam-lhe a mágica. Sentiu o frio do medo e na muralha dilapidada buscou um nicho sepulcral e se tapou com folhas desconhecidas.

O objetivo que o guiava não era impossível, ainda que sobrenatural. Queria sonhar um homem: queria sonhá-lo com integridade minuciosa e impô-lo à realidade. Esse projeto mágico esgotara o inteiro espaço de sua alma; se alguém lhe perguntasse o próprio nome ou qualquer traço de sua vida anterior, não teria acertado na resposta. Convinha-lhe o templo inabitado e derruído, porque era um mínimo de mundo visível; a vizinhança dos lavradores também, porque estes se encarregam de suprir suas necessidades frugais. O arroz e as frutas de seu tributo eram pábulo suficiente para seu corpo, consagrado à única tarefa de dormir e sonhar.

No começo, eram caóticos os sonhos; pouco depois, foram de natureza dialética. O forasteiro sonhava-se no centro de um anfiteatro circular que era de certo modo o templo incendiado: nuvens de alunos taciturnos fatigavam os degraus; os rostos dos últimos pendiam há muitos séculos de distância e a uma altura estelar, mas eram absolutamente precisos. O homem ditava-lhes lições de Anatomia, de Cosmografia, de magia: as fisionomias concentravam-se ávidas e procuravam responder com entendimento, como se adivinhassem a importância daquele exame, que redimiria em cada um a condição de vã aparência e o interpolaria no mundo real. O homem, no sonho e na vigília, considerava as respostas de seus fantasmas, não se deixava iludir pelos impostores, previa em certas perplexidades uma inteligência crescente. Buscava uma alma que merecesse participar no universo.

Depois de nove ou dez noites, compreendeu, com alguma amargura, que não podia esperar nada daqueles alunos que passivamente aceitavam sua doutrina e sim daqueles que arriscavam, às vezes, uma contradição razoável. Os primeiros, embora dignos de amor e afeição, não podiam ascender a indivíduos; os últimos preexistiam um pouco mais. Uma tarde (agora também as tardes eram tributárias do sonho, agora velava apenas um par de horas no amanhecer) licenciou para sempre o vasto colégio ilusório e ficou com um só aluno. Era um rapaz taciturno, citrino, indócil às vezes, de feições afiladas repetindo as de seu sonhador. A brusca eliminação de seus condiscípulos não o desconcertou por muito tempo; seu progresso, no fim de poucas lições particulares, pôde maravilhar o mestre. Não obstante, sobreveio a catástrofe. O homem, um dia, emergiu do sono como de um deserto viscoso, olhou a luz vã da tarde que, à primeira vista, confundiu com a aurora e compreendeu que não sonhara. Toda essa noite e todo o dia, contra ele se abateu a intolerável lucidez da insônia. Quis explorar a selva, extenuar-se; somente alcançou entre a cicuta aragens de sonho débil, listradas fugazmente de visões do tipo rudimentar: inaproveitáveis. Quis congregar o colégio e apenas havia articular algumas breves palavras de exortação, este se deformou, se apagou. Na quase perpétua vigília, lágrimas de ira queimavam-lhe os velhos olhos.

Compreendeu que o empenho de modelar a matéria incoerente e vertiginosa de que se compõem os sonhos é o mais árduo que pode empreender um homem, ainda que penetre todos os enigmas da ordem superior e da inferior: muito mais árduo que tecer uma corda de areia ou amoedar o vento sem efígie. Compreendeu que um fracasso inicial era inevitável. Prometeu esquecer a enorme alucinação que no começo o desviara e buscou outro método de trabalho. Antes de exercitá-lo, dedicou um mês à recuperação das forças que o delírio havia exaurido. Abandonou toda premeditação de sonhar e quase imediatamente conseguiu dormir uma razoável parte do dia. As raras vezes que sonhou, durante esse período, não reparou nos sonhos. Para reatar a tarefa, esperou que o disco da lua fosse perfeito. Logo, à tarde, purificou-se nas águas do rio, adorou os deuses planetários, pronunciou as sílabas lícitas de um nome poderoso e dormiu. Quase subitamente, sonhou com um coração que pulsava.

Sonhou-o ativo, caloroso, secreto, do tamanho de um punho fechado, cor grená na penumbra de um corpo humano, ainda sem rosto ou sexo; com minucioso amor sonhou-o, durante quatorze lúcidas noites. A cada noite, percebia-o com maior evidência. Não o tocava: limitava-se a testemunhá-lo, observá-lo, talvez corrigi-lo com o olhar. Percebia-o, vivia-o, de muitas distâncias e ângulos. Na décima quarta noite, roçou a artéria pulmonar com o indicador e após todo o coração, por fora e por dentro. O exame o satisfez. Deliberadamente não sonhou durante uma noite: logo retomou o coração, invocou o nome de um planeta e empreendeu a visão de outro dos órgãos principais. Antes de um ano chegou ao esqueleto, às pálpebras. O pelo inumerável foi talvez a mais difícil tarefa. Sonhou um homem inteiro, um moço, mas este não se incorporava nem falava, nem podia abrir os olhos. Noite após noite, o homem sonhava-o adormecido.

Nas cosmogonias gnósticas, os demiurgos amassam um vermelho Adão que não consegue pôr-se de pé; tão inábil e tosco e elementar como esse Adão de pó era o Adão de sonho que as noites do mago tinham fabricado. Uma tarde, o homem quase destruiu toda a sua obra, mas se arrependeu. (Mais lhe teria valido destruí-la.) Esgotados os votos aos numes da terra e do rio, arrojou-se aos pés da efígie que talvez fosse um tigre e talvez um potro, e implorou seu desconhecido socorro. Nesse crepúsculo, sonhou com a estátua. Sonhou-a viva, trêmula: não era um atroz bastardo de tigre e potro, mas simultaneamente essas duas criaturas veementes e também um touro, uma rosa, uma tempestade. Esse múltiplo deus revelou-lhe que seu nome terrenal era Fogo, que nesse templo circular (e noutros iguais) prestavam-lhe sacrifícios e culto e que magicamente animaria o fantasma sonhado, de tal sorte que todas as criaturas, exceto o próprio Fogo e o sonhador, julgassem-no um homem de carne e osso. Ordenou-lhe que uma vez instruído nos ritos, remetesse-o ao outro templo derruído, cujas pirâmides persistem águas abaixo, para que alguma voz o glorificasse naquele edifício deserto. No sonho do homem que sonhava, o sonhado despertou.

O mago executou essas ordens. Consagrou um prazo (que finalmente abrangeu dois anos) para desvendar-lhe os arcanos do universo e do culto do fogo. Intimamente, doía-lhe separar-se dele. Com o pretexto da necessidade pedagógica, dilatava diariamente as horas dedicadas ao sonho. Também refez o ombro direito, talvez deficiente. Às vezes, inquietava-o uma impressão de que tudo isso havia acontecido… Em geral, eram-lhe felizes os dias; ao fechar os olhos pensava: Agora estarei com meu filho. Ou, mais raramente: O filho que gerei me espera e não existirá se eu não for.

Gradualmente, habituou-o à realidade. Uma vez determinou-lhe que embandeirasse um cume longínquo. No outro dia, flamejava a bandeira no cimo. Esboçou outras experiências análogas, cada vez mais audazes. Compreendeu com certo desgosto que seu filho estava pronto para nascer – e talvez impaciente. Nessa noite beijou-o pela primeira vez e enviou-o ao outro templo cujos despojos branqueiam rio abaixo, a muitas léguas de inextricável selva e pântano. Antes (para que nunca soubesse que era um fantasma, para que se acreditasse um homem como os outros) infundiu-lhe o esquecimento total de seus anos de aprendiz.

Sua vitória e sua paz ficaram embaciadas de fastio. Nos crepúsculos do entardecer e da alba, prostrava-se diante da figura de pedra, talvez imaginando que seu filho irreal praticasse idênticos ritos, noutras ruínas circulares, águas abaixo; de noite, não sonhava, ou sonhava como fazem todos os homens. Percebia com certa palidez os sons e formas do universo: o filho ausente se nutria dessas diminuições de alma. O propósito de sua vida fora atingido; o homem persistiu numa espécie de êxtase. No fim de um tempo que certos narradores de sua história preferem computar em anos e outros em lustros, dois remadores o despertaram, à meia-noite: não pôde ver seus rostos, mas lhe falaram de um homem mágico, num templo do Norte, capaz de tocar o fogo e não queimar-se. O mago recordou que de todas as criaturas que constituem o orbe, o fogo era o único que sabia ser seu filho um fantasma. Essa lembrança, apaziguadora no princípio, acabou por atormentá-lo. Temeu que seu filho meditasse nesse privilégio anormal e descobrisse de alguma maneira sua condição de mero simulacro. Não ser um homem, ser a projeção do sonho de outro homem, que humilhação incomparável, que vertigem! A todo pai interessam os filhos que procriou (que permitiu) numa simples confusão ou felicidade; é natural que o mago temesse pelo futuro daquele filho, pensado entranha por entranha e traço por traço, em mil e uma noites secretas.

O final de suas cavilações foi brusco, mas o anunciaram alguns sinais. Primeiro (no término de uma longa seca) uma remota nuvem numa colina, leve como um pássaro; logo, para o Sul, o céu que tinha a cor rosa da gengiva dos leopardos; depois as fumaradas que enferrujam o metal das noites; depois a fuga pânica das bestas. Porque se repetiu o acontecido faz muitos séculos. As ruínas do santuário do deus do fogo foram destruídas pelo fogo. Numa alvorada sem pássaros, o mago viu cingir-se contra os muros o incêndio concêntrico. Por um instante, pensou refugiar-se nas águas, mas em seguida compreendeu que a morte vinha coroar sua velhice e absolvê-lo dos trabalhos. Caminhou contra as línguas de fogo. Estas não morderam sua carne, estas o acariciaram e o inundaram sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando. 


Jorge Luiz Borges, Ficções


sábado, 11 de janeiro de 2014

O suicida




Não restará na noite uma estrela.
Não restará a noite.
Morrerei, e comigo a soma
do intolerável universo.
Apagarei as pirâmides, as medalhas,
os continentes e os rostos.
Apagarei a acumulação do passado.
Transformarei em pó a história, em pó o pó.
Estou mirando o último poente.
Ouço o último pássaro.
Deixo o nada a ninguém.


 Jorge Luis Borges

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Ausência



Eu haverei de erguer a vasta vida
que ainda é o teu espelho:
cada manhã hei-de reconstruí-la.

Desde que te afastaste,
quantos lugares se tornam vãos
e sem sentido, iguais
a luzes acesas de dia.

Tardes que te abrigaram a imagem,
música em que sempre me esperavas,
palavras desse tempo,
terei de as destruir com as minhas mãos.

Em que ribanceira esconderei a alma
pra que não veja a tua ausência,
que como um sol terrível, sem ocaso,
brilha definitiva e sem piedade?

A tua ausência cerca-me
como a corda à garganta.
O mar ao que se afunda.


Jorge Luís Borges

sábado, 6 de julho de 2013

O nosso

 Rob Hefferan

Amamos o que não conhecemos, o já perdido.
O bairro que já foi arredores
Os antigos que não nos decepcionaram mais
porque são mito e esplendor.
Os seis volumes de Schopenhauer que jamais terminamos de ler.
A saudade, não a leitura, da segunda parte do Quixote.
O oriente que, na verdade, não existe para o afegão, o persa ou o tártaro.
Os mais velhos com quem não conseguiríamos
conversar durante um quarto de hora.
As mutantes formas da memória, que está feita do esquecido.
Os idiomas que mal deciframos.
Um ou outro verso latino ou saxão que não é mais do que um hábito.
Os amigos que não podem faltar porque já morreram.
O ilimitado nome de Shakespeare.
A mulher que está a nosso lado e que é tão diversa.
O xadrez e a álgebra, que não sei.

Jorge Luis Borges

terça-feira, 25 de junho de 2013

Lo perdido

© Mecuro B Cotto


¿Dónde estará mi vida, la que pudo
haber sido y no fue, la venturosa
o la de triste horror, esa otra cosa
que pudo ser la espada o el escudo
y que no fue? ¿Dónde estará el perdido
antepasado persa o el noruego,
dónde el azar de no quedarme ciego,
dónde el ancla y el mar, dónde el olvido
de ser quien soy? ¿Dónde estará la pura
noche que al rudo labrador confía
el iletrado y laborioso día,
según lo quiere la literatura?
Pienso también en esa compañera
que me esperaba, y que tal vez me espera.


Jorge Luis Borges

segunda-feira, 10 de junho de 2013

El suicida / O suicida

Kemal Kamil AKCA

No quedará en la noche una estrella.
No quedará la noche
Moriré y conmigo la suma
Del intolerable universo.
Borraré las pirámides, las medallas,
Los continentes y las caras.
Borraré la acumulación del pasado.
Haré polvo la historia, polvo el polvo.
Estoy mirando el último poniente.
Oigo el último pájaro.
Lego la nada a nadie.


Jorge Luis Borges

***

Não ficará na noite uma estrela.
Não ficará a noite.
Morrerei e comigo a suma
Do intolerável universo.
Apagarei as pirâmides, as medalhas,
Os continentes e as caras.
Apagarei a acumulação do passado. 
Farei pó a história, pó o pó.
Estou olhando o último poente.
Ouço o último pássaro.
Lego o nada a ninguém.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Os Meus Livros




Os meus livros (que não sabem que existo)
São uma parte de mim, como este rosto
De têmporas e olhos já cinzentos
Que em vão vou procurando nos espelhos
E que percorro com a minha mão côncava.
Não sem alguma lógica amargura
Entendo que as palavras essenciais,
As que me exprimem, estarão nessas folhas
Que não sabem quem sou, não nas que escrevo.
Mais vale assim. As vozes desses mortos
Dir-me-ão para sempre.


Jorge Luis Borges, in "A Rosa Profunda" 

sábado, 17 de novembro de 2012

El Instante



¿Dónde estarán los siglos, dónde el sueño
de espadas que los tártaros soñaron,
dónde los fuertes muros que allanaron,
dónde el Árbol de Adán y el otro Leño?

El presente está solo. La memoria
erige el tiempo. Sucesión y engaño
es la rutina del reloj. El año
no es menos vano que la vana historia.

Entre el alba y la noche hay un abismo
de agonías, de luces, de cuidados;
el rostro que se mira en los gastados

espejos de la noche no es el mismo.
El hoy fugaz es tenue y es eterno;
otro Cielo no esperes, ni otro Infierno.


Jorge Luís Borges

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Cercanías / Vizinhanças


MaXu


Los patios y su antigua certidumbre,
los patios cimentados
en la tierra y el cielo.
Las ventanas con reja
desde la cual la calle
se vuelve familiar como una lámpara.
Las alcobas profundas
donde arde en quieta llama la caoba
y el espejo de tenues resplandores
es como un remanso en la sombra.
Las encrucijadas oscuras
que lancean cuatro infinitas distancias
en arrabales de silencio.
He nombrado los sitios
donde se desparrama la ternura
y estoy solo y conmigo.


Jorge Luís Borges

***


Vizinhanças

Os pátios e sua antiga certeza,
Os pátios cimentados
Na terra e no céu.
As janelas com grades
Desd’a qual a rua
Se faz familiar como uma lâmpada.
As alcovas profundas
Onde ardem em quieta chama o lampião
E o espelho de tênues resplendores
É como um remanso na sombra.
As encruzilhadas escuras
Que lançam quatro infinitas distâncias
Para os subúrbios de silêncio.
Ele nomeara os sítios
De onde se esparramara a ternura
E estou só eu comigo.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Sábados

© Svetlana Belsveta 



Afuera hay un ocaso, alhaja oscura
engastada en el tiempo,
y una honda ciudad ciega
de hombres que no te vieron.
La tarde calla o canta.
Alguien descrucifica los anhelos
clavados en el piano.
Siempre, la multitud de tu hermosura.

A despecho de tu desamor
tu hermosura
prodiga su milagro por el tiempo.
Está en ti la ventura
como la primavera en la hoja nueva.
Ya casi no soy nadie, soy tan solo ese anhelo
que se pierde en la tarde.
En ti está la delicia
como está la crueldad en las espadas.
Agravando la reja esta noche
en la sala severa
se buscan como ciegos nuestras dos soledades.
Sobrevive a la tarde
la blancura gloriosa de tu carne.
En nuestro amor hay una pena
que se parece al alma.

que ayer solo eras toda la hermosura
eres también todo el amor, ahora.


Jorge Luís Borges 

***


Lá fora há um ocaso, obscura joia
engastada no tempo,
e uma recôndita cidade cega
de homens que não te viram.
A tarde cala ou canta.
Alguém descrucifica os anseios
cravados no piano.
Sempre a abundância da tua beleza.

A despeito do teu desamor,
a tua beleza
prolonga o seu milagre pelo tempo.
A felicidade mora em ti
tal como a Primavera num folha nova.
Não sou quase ninguém,
sou apenas o anseio
que se perde na tarde.
Em ti mora o prazer
tal como a crueldade nas espadas.

Carregando as persianas vem a noite.
Na sala tão severa, como cegos,
Procuram-se uma à outra as nossas solidões.
Sobreviveu à tarde
a brancura gloriosa da tua carne.
No nosso amor há uma pena
parecida com a alma.

Tu
que ainda ontem eras só toda a beleza
és agora também todo o amor.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

1964




I

Já não é mágico o mundo. Te deixaram.
Já não partilharás a clara lua
nem os lentos jardins. Já não há uma
lua que não seja espelho do passado,
cristal de solidão, sol de agonias.
Adeus às mutuas mãos a às têmporas
que envolviam o amor. Hoje só tens
a fiel memória e os desertos dias.
Ninguém perde (repetes em vão)
senão quem não tem e que não teve
nunca, mas não basta ser valente
para aprender a arte do esquecimento.
Um símbolo, uma rosa, te desgarra
e te pode matar uma guitarra.

II

Já não serei feliz. Talvez não importe.
há tantas outras coisas no mundo;
Um instante qualquer é mais profundo
e diverso que o mar. A vida é curta
e ainda que as horas sejam tão longas, uma
escura maravilha nos ronda,
a morte, esse outro mar, essa outra flecha
que nos livra do sol e da lua
e do amor. A sorte que me deste
e me tiras-te deve ser apagada;
o que era tudo tem que ser nada
Só me resta o gozo de estar triste
esse inútil costume que me inclina
ao sul, a certa porta, a certa esquina.


Jorge Luiz Borges
tradução:  Alice Ruiz

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Amorosa Anticipación

Angela Blank



Ni la intimidad de tu frente clara como una fiesta
ni la privanza de tu cuerpo, aún misterioso y tácito de niña,
ni la sucesión de tu vida situándose en palabras o acallamiento
serán favor tan misterioso
como mirar tu sueño implicado
en la vigilia de mis brazos.
Virgen milagrosamente otra vez por la virtud absolutoria del sueño,
quieta y resplandeciente como una dicha en la selección del recuerdo,
me dejarás esa orilla de tu vida que tú misma no tienes.
Arrojado a quietud,
divisaré esa playa última de tu ser
y te veré por primera vez quizá,
como Dios ha de verte,
desbaratada la ficción del Tiempo,
sin el amor, sin ti.


Jorge Luís Borges



quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Despedida




Entre mi amor y yo han de levantarse
trescientas noches como trescientas paredes
y el mar será una magia entre nosotros.

No habrá sino recuerdos.
Oh tardes merecidas por la pena,
noches esperanzadas de mirarte,
campos de mi camino, firmamento
que estoy viendo y perdiendo...

Definitiva como un mármol
entristecerá tu ausencia otras tardes.


Jorge Luís Borges

***

Hão-de erguer-se entre o meu amor e eu
trezentas noites quais trezentos muros
e o mar será magia entre nós dois.

Apenas haverá recordações.
Oh tardes merecidas pela pena,
noites esperançadas ao olhar-te,
campos do meu caminho, firmamento
que vejo e vou perdendo...

Definitiva como um mármore,
a tua ausência irá entristecer as tardes.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

El cómplice

Edson Campos


Me crucifican y yo debo ser la cruz y los clavos.
Me tienden la copa y yo debo ser la cicuta.
Me engañan y yo debo ser la mentira.
Me incendian y yo debo ser el infierno.
Debo alabar y agradecer cada instante del tiempo.
Mi alimento es todas las cosas.
El peso preciso del universo, la humillación, el júbilo.
Debo justificar lo que me hiere.
No importa mi ventura o mi desventura.
Soy el poeta.


Jorge Luís Borges

***

Crucificam-me e eu tenho de ser a cruz e os pregos.
Estendem-me a taça e eu tenho de ser a cicuta.
Enganam-me e eu tenho de ser a mentira.
Incendeiam-me e eu tenho de ser o inferno.
Tenho de louvar e de agradecer cada instante do tempo.
O meu alimento é todas as coisas.
O peso exato do universo, a humilhação, o júbilo.
Tenho de justificar o que me fere.
Não importa a minha felicidade ou infelicidade.


Sou o poeta.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Campos entardecidos

Cate Parr


O pôr do Sol de pé como um Arcanjo
tiranizou o caminho.
A solidão povoada como um sonho
estagnou em redor da aldeia.
Os badalos recolhem a tristeza
tão dispersa da tarde. A lua nova
é uma pequena voz vinda do céu.
Enquanto vai anoitecendo
torna a ser campo a aldeia.

O pôr do Sol que não cicatrizou
ainda magoa a tarde.
Abrigam-se as cores trémulas
nas entranhas das coisas.
No quarto vazio
a noite há-de encolher os espelhos.


Jorge Luis Borges

terça-feira, 5 de junho de 2012

O ameaçado

Svetlana Ihsanova Illustrations


É o amor. Terei de me esconder ou de fugir.

Crescem as paredes da sua prisão, como num sonho atroz. A bela máscara mudou, mas como sempre é a única. De que me servirão os meus talismãs: o exercício das letras, a vaga erudição, a aprendizagem das palavras que o agreste Norte usou para cantar os seus mares e as suas espadas, a serena amizade, os corredores da Biblioteca, as coisas vulgares, os hábitos, o jovem amor da minha mãe, a sombra militar dos meus mortos, a noite intemporal, o sabor do sonho?

Estar contigo ou não estar contigo é a medida do meu tempo.

O cântaro já se quebra na fonte, o homem já se levanta à voz das aves, os que olham pelas janelas já se escureceram, mas a sombra não trouxe a paz.

É, sei já bem, o amor: a ansiedade e o alívio de ouvir a tua voz, a espera e a memória, o horror de viver no sucessivo.

É o amor com as suas mitologias, com as suas pequenas magias inúteis.

Há uma esquina por onde não me atrevo a passar.
Já me cercam os exércitos, as hordas.
 (Este quarto é irreal; ela não o viu.)
O nome de uma mulher denuncia-me.
Dói-me uma mulher em todo o corpo.


Jorge Luís Borges

***


EL AMENAZADO

Es el amor. Tendré que ocultarme o huir.
Crecen los muros de su cárcel, como en un sueño atroz. La hermosa
máscara ha cambiado, pero como siempre es la única. ¿De qué
me servirán mis talismanes: el ejercicio de las letras, la vaga
erudición, el aprendizaje de las palabras que usó el áspero Norte para
cantar sus mares y sus espadas, la serena amistad, las galerías de la
Biblioteca, las cosas comunes, los hábitos, el joven amor de mi
madre, la sombra militar de los muertos, la noche intemporal,
el sabor del sueño?

Estar contigo o no estar contigo es la medida de mi tiempo.
Ya el cántaro se quiebra sobre la fuente, ya el hombre se levanta a la
voz del ave, ya se han oscurecido los que miran por las ventanas,
pero la sombra no ha traído la paz.
Es, ya lo sé, el amor: la ansiedad y el alivio de oír tu voz, la espera y la
memoria, el horror de vivir en lo sucesivo.
Es el amor con sus mitologías, con sus pequeñas magias inútiles.
Hay una esquina por la que no me atrevo a pasar.
Ya los ejércitos me cercan las hordas.
(Esta habitación es irreal, ella no la ha visto).
El nombre de una mujer me delata.
Me duele una mujer en todo el cuerpo.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

imagem: xie-chuyu


Habré de levantar la vasta vida
que aún ahora es tu espejo:
cada mañana habré de reconstruirla.
Desde que te alejaste,
cuántos lugares se han tornado vanos
y sin sentido, iguales
a luces en el día.
Tardes que fueron nicho de tu imagen,
músicas en que siempre me aguardabas,
palabras de aquel tiempo,
yo tendré que quebrarlas con mis manos.
¿En qué hondonada esconderé mi alma
para que no vea tu ausencia
que como un sol terrible, sin ocaso,
brilla definitiva y despiadada?
Tu ausencia me rodea
como la cuerda a la garganta,
el mar al que se hunde.


Jorge Luis Borges


***


Eu haverei de erguer a vasta vida que ainda é o teu espelho:
cada manhã hei-de reconstruí-la.
Desde que te afastaste,
quantos lugares se tornaram vãos
e sem sentido, iguais
a luzes acesas de dia.
Tardes que te abrigaram a imagem,
música em que sempre me esperavas,
palavras desse tempo,
terei de as destruir com as minhas mãos.
Em que ribanceira esconderei a alma
pra que não veja a tua ausência,
que como um sol terrível, sem ocaso,
brilha definitiva e sem piedade?
A tua ausência cerca-me
como a corda à garganta.
O mar ao que se afunda.

domingo, 6 de maio de 2012

imagem: andreas-heumann


Diz-me por favor onde não estás
em qual lugar posso não te ver,
onde posso dormir sem te lembrar
e onde relembrar sem que me doa.

Diz-me por favor onde posso caminhar
sem encontrar as tuas pegadas,
onde posso correr sem que te veja
e onde descansar com a minha tristeza.

Diz-me por favor qual é o céu
que não tem o calor do teu olhar
e qual é o sol que tem luz apenas
e não a sensação de que me chamas.

Diz-me por favor qual é o lugar
em que não deixaste a tua presença.
Diz-me por favor onde no meu travesseiro
não tem escondida uma lembrança tua.

Diz-me por favor qual é a noite
em que não virás velar meus sonhos.
Que não posso viver porque te espero
e não posso morrer porque te amo.


Jorge Luis Borges

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Ajedrez



I

En su grave rincón, los jugadores
rigen las lentas piezas. El tablero
los demora hasta el alba en su severo
ámbito en que se odian dos colores.

Adentro irradian mágicos rigores
las formas: torre homérica, ligero
caballo, armada reina, rey postrero,
oblicuo alfil y peones agresores.

Cuando los jugadores se hayan ido,
cuando el tiempo los haya consumido,
ciertamente no habrá cesado el rito.

En el Oriente se encendió esta guerra
cuyo anfiteatro es hoy toda la tierra.
Como el otro, este juego es infinito.

II

Tenue rey, sesgo alfil, encarnizada
reina, torre directa y peón ladino
sobre lo negro y blanco del camino
buscan y libran su batalla armada.

No saben que la mano señalada
del jugador gobierna su destino,
no saben que un rigor adamantino
sujeta su albedrío y su jornada.

También el jugador es prisionero
(la sentencia es de Omar) de otro tablero
de negras noches y blancos días.

Dios mueve al jugador, y éste, la pieza.
¿Qué Dios detrás de Dios la trama empieza
de polvo y tiempo y sueño y agonías?


Jorge Luís Borges 

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Os espelhos

Francine van  hove


Eu, que senti o medo dos espelhos
Não é frente ao cristal impenetrável
Onde acaba e começa, inabitável,
Um espaço impossível de reflexos.

Mas frente à àgua especular que imita
O outro azul em seu profundo céu
Que risca às vezes o ilusório voo
Da ave inversa ou que um tremor agita

E frente à superficie silenciosa
Do ébano sutil cuja pureza
Repete como um sonho toda a alvura
De vago mármore ou de vaga rosa,

Hoje, ao cabo de tantos e perplexos
Anos de errar sob a mudável lua,
Me pergunto que acaso da fortuna
Fez que eu temor sentisse dos espelhos.

Espelhos de metal, emascarado
Espelho de caoba que, na bruma
De eu rubro crepúsculo, esfuma
Esse rosto que mira e que é mirado.

Infinitos os vejo, elementais
Executores de um antigo pacto.
Multiplicar o mundo como o ato
Generativo, insone e fatais.

Prolongam este vão e incerto mundo
Em sua tão veloz teia de aranha:
à tarde muitas vezes os empana
o hálito de um homem morimbundo.

O cristal nos espreita. Se entre as quatro
Paredes do aposento há um espelho.
Não estou só. Há outro. Há o reflexo
Que erege na alba um sigiloso teatro.

Tudo acontece e nada se recorda
Naqueles gabinetes cristalinos
Onde, como fantásticos rabinos,
Lemos os livros da direita à esquerda.

Cláudio, rei de uma tarde, rei sonhado,
Não sentiu que era um sonho até o dia
Em que um ator mimou-lhe a felonia
Com arte silenciosa, num tablado.

Que haja sonhos é raro, que haja espelhos,
Que o costumeiro e gasto repertório
De cada dia inclua o ilusório
Orbe profundo que urdem os reflexos.

Deus (pus-me a imaginar) põe um empenho
Em toda essa irreal arquitetura.
A qual constrói a luz com a polidura
Do vidro e faz a sombra com o sonho

Deus inventou as noites que se armam
De sonhos e as imagens dos espelhos
Para que o homem sinta que é reflexo
E vaidade. Por isso nos alarmam.


 Jorge Luis Borges
O Fazedor, tradução de Rolando Roque da Silva