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domingo, 14 de abril de 2024

 


Pai, não fale as palavras da religião! Fale só as palavras da poesia!” E assim foi. Foram textos do Cântico dos Cânticos, poema erótico da Bíblia, que deixa ruborizadas as faces dos beatos e beatas. Divirto-me pensando na cara que fariam Papa e bispos se lessem esses textos… Seguiram-se textos do Drummond, do Vinícius, da Adélia – tudo terminando não com a chatíssima Marcha Nupcial, mas com a Valsinha, do Chico, ocasião em que os convidados, moços e velhos, pegaram os seus pares e trataram de dançar. Foi bonito. Quando a coisa é bonita a gente acredita fácil.

Rubem Alves

sábado, 13 de abril de 2024

 


Os que têm medo sonham. Porque tenho medo da cidade grande onde me perco eu sonho com cidade grande que posso amar. É uma utopia. Não existe. Mas não tem importância. Valéry perguntou: “Que seria de nós sem o socorro das coisas que não existem?” O que não existe socorre. Oscar Wilde, que sabia do socorro das coisas que não existem, escreveu: “Um mapa do mundo que não inclua o país da Utopia não merece nem mesmo um olhar, pois ignora o único país ao qual a Humanidade constantemente chega. E quando a Humanidade lá atraca, fica alerta, e levanta novamente as âncoras ao vislumbrar terra melhor…

Rubem Alves

#art #painting L’utopie - René Magritte

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

 


A  separação. E neste espaço o amor só sobrevive graças a algo que se chama fidelidade: a espera do regresso. De alguma forma a gota da chuva aparecerá de novo, o vento permitirá que velejemos de novo, mar afora. Morte e ressurreição. Na dialética do amor, a própria dialética divina. Quem não pode suportar a dor da separação não esta preparado para o amor. Porque amor é algo que não se tem nunca. É o vento de graça. Aparece quando quer, e só nos resta ficar à espera. E quando ele volta, a alegria volta com ele. E sentimos então que valeu a pena suportar a dor da ausência, pela alegria do reencontro."

Rubem Alves, em "Onde mora o Amor"

sábado, 14 de maio de 2022


 "Os poetas sentem e sabem. A psicanálise explica. Somos viajantes mesmo quando não viajamos. Viajamos sonhando, sem sair do lugar. O sonho é a viagem daquele que quer ir mas não pode. Não pode ou por não ter barcos ou por não saber onde ir. Nos seus lugares mais profundos, o corpo é um navegante. Mora ali um fogo que não se apaga – Freud deu a ele o nome de “princípio do prazer”. Queremos navegar até o lugar (ou tempo) onde encontraremos o prazer. Mas eu sinto tentado, à semelhança de Octavio Paz, a falar “dupla chama”. Castiçal de duas velas. De um lado a chama do prazer, vermelha. Do outro, a chama da alegria, azul. Acho que Freud não concordaria comigo – mas não tem importância. Na minha psicanálise estou sempre atento ao “princípio da alegria”."

- Rubem Alves, em "Palavras para desatar nós". Campinas/SP: Papirus editora, 2012, p. 59.

Igor Andrianov

 

"Amor é isto: a dialética entre a alegria do encontro e a dor da separação. E neste espaço o amor só sobrevive graças a algo que se chama fidelidade: a espera do regresso. De alguma forma a gota da chuva aparecerá de novo, o vento permitirá que velejemos de novo, mar afora. Morte e ressurreição. Na dialética do amor, a própria dialética divina. Quem não pode suportar a dor da separação não esta preparado para o amor. Porque amor é algo que não se tem nunca. É o vento de graça. Aparece quando quer, e só nos resta ficar à espera. E quando ele volta, a alegria volta com ele. E sentimos então que valeu a pena suportar a dor da ausência, pela alegria do reencontro."

- Rubem Alves, em "Onde mora o Amor", do livro 'Tempus Fugit'. São Paulo: Edições Paulus, 1990.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Alessandro-Granata

 

Ela tinha a beleza tranquila da maturidade. Bastava vê-la para adivinhar como ela teria sido. Ah! Com certeza provocara muitos suspiros de amor. De hábitos domésticos e simples, um dos seus prazeres era assentar-se numa poltrona e entrar na bolha que a leitura cria. Quem lê está num outro mundo, muito longe.

O seu marido a observava de longe. Olhos que observam são olhos que olham quando o outro não está olhando. Olhos que observam são olhos de felino que seguem a presa. Seu olhar era olhar de apaixonado que desconfia, olhar de ciúme. Os olhos do ciumento vigiam. Vigiam gestos, movimentos, horas. Vigiam porque as modulações silenciosas e distraídas no rosto da pessoa amada podem conter revelações sobre aquilo que ela está pensando. O ciumento suspeita que a mulher amada lhe esconde algo. Ele olha na esperança de ver o escondido, de entrar dentro do segredo do outro. O ciumento detesta os pensamentos. Por mais que os vigie, eles estão além da sua vigilância.

Tem aquela modinha de Carlos Gomes, Quem Sabe? É um monólogo de um apaixonado. Ele sofre. Sofre porque a amada está longe e ele não sabe o que ela está pensando. “Tão longe de mim distante, onde irá, onde irá teu pensamento?” O seu desejo era saber se os pensamentos da amada pensavam nele. Ele pergunta porque não sabe e tem medo de saber o que ela estará pensando. Pergunta porque não confia. Minha amada, por favor, me diga “se ainda é meu teu pensamento…”.

Há os ciúmes mansos que todos sentem e só doem um pouquinho. E há os ciúmes que são um tormento e que frequentemente terminam em tragédia. Todo ciúme, manso ou atormentado, gostaria de ser dono da mulher amada, inclusive dos seus pensamentos. Ele quer conhecê-la por dentro e por fora para certificar-se da sua posse. Nos momentos de êxtase amoroso, esse tormento se resolve e o ciumento se acalma. Mas a sua calma é efêmera. Dura o mesmo tempo do ato sexual. Termina com o orgasmo. Passado o êxtase a dúvida volta. E, com ela, o tormento.

Ele a vigiava, silenciosamente o felino a vigiava. E a sua vigilância se exacerbava quando ela sorria ou ria. Como explicar esse sorriso se ele, o seu marido, não estava dentro do livro? Ela não precisava dele para ser feliz. Mergulhada no seu livro, o seu marido não existia. E isso não é o anúncio de uma infidelidade possível? Ter prazer com algo que não era ele, o seu marido… O prazer acontecia na ausência dele. A infidelidade com o livro anunciava a possibilidade de grandes infidelidades. E isso o torturava. Tortura que não o abandonava nem nos momentos de intimidade prazerosa.

Um ciumento não tolera a liberdade.

Mas aí algo aconteceu que o tranquilizou. Sua esposa adoeceu. Uma mulher adoentada é um pássaro de asas quebradas que não sonha e nem poderia jamais voar. Um pássaro de asas quebradas não planeja voos proibidos. Pássaros de asas quebradas são confiáveis.

Isso o acalmou. Ele ficou doce. Até os momentos de intimidade ficaram leves: seu efêmero sentimento de posse se transformou num tranquilo sentimento de eternidade. Agora ela era sua, para sempre.

Suspeito que os crimes por ciúme não têm o propósito primeiro de matar a mulher amada. O seu propósito, ao contrário, é garantir que ela não será de nenhum outro.

Mas há também um ciúme que dói de mansinho, sofrimento no coração de todos os apaixonados.

A cena: o marido e a mulher chegam a uma festa. Muita gente conhecida e desconhecida, música, risos, olhares… Marido e mulher se separam para se socializarem com outras pessoas. Numa roda, o marido conversa e ri, distraído. De repente, ele vira o seu rosto e vê a sua mulher em outro grupo. Ela está de costas, vestido branco, costas nuas. Como ela é bonita! Ele a ama e pensa que outros homens já olharam para ela com olhares de admiração e desejo. Ela se tornou o centro das atenções da sua roda. Todos os homens se esforçam por lançar o seu charme. Ela ri. De costas para o marido é como se ele não existisse. Como aconteceu com a mulher que lia o livro. Ri por causa dos outros que a cercam, grupo do qual o marido está ausente. E ele pensa que, naquele momento, a felicidade da sua mulher acontece sem que ele dela participe. E lhe dói saber que ela pode ser feliz sem ele, ainda que num breve momento.

Sofre em silêncio, sem demonstrar. E nem fará cobranças quando voltarem para a casa. Afinal de contas, ele é um homem educado que compreende os movimentos da alma.

O ciúme nasce quando se toma consciência de que a pessoa amada é livre. Ela é como um pássaro pousado no ombro. Nada o prende. Poderá voar para longe quando quiser.

Alguns ciumentos tolos acham que o casamento é gaiola que garantirá a posse plena do pássaro. Mas nada garante a posse do pássaro. O pássaro voa, o pássaro volta… Mas pode ser mesmo que ele voe e não volte…


Rubem Alves

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Sobre deuses e rezas

Perdida no meio dos viajantes que enchiam o aeroporto, ela era uma figura destoante. A roupa largada, os passos pesados, uma sacola de plástico pendurada numa das mãos – esses sinais diziam que ela já não mais ligava para a sua condição de mulher: não se importava em ser bonita. Pensei mesmo que se tratava de uma freira. Seu comportamento era curioso: dirigia-se às pessoas, falava por alguns momentos, e como não lhe prestassem atenção procurava outras com quem falar. Quando vi que ela tinha uma Bíblia na mão compreendi tudo: ela se imaginava possuidora de conhecimentos sobre Deus que os outros não possuíam e tratava de salvar a alma deles.

Meu caminho me obrigou a passar perto dela – e quando olhei para o seu rosto de perto levei um susto: eu a reconheci de outros tempos, quando ela era uma moça bonita que ria e brincava e para quem olhávamos com olhares de cobiça.

Não resisti e chamei alto o seu nome. Ela se espantou, olhou-me com um olhar interrogativo, não me reconheceu. Com razão. Os muitos anos deixam suas marcas no rosto.

– Eu sou o Rubem!

Seu rosto se iluminou pela lembrança, sorriu, e pensei que poderíamos nos assentar e conversar sobre as nossas vidas. Mas sua preocupação com a minha alma não permitia essas perdas de tempo com conversa fiada. E ela tratou de verificar se o meu passaporte para a eternidade estava em ordem:

– Você continua firme na fé!?

– Mas de jeito nenhum. Então você deixou de ler a Bíblia? Pois lá está dito que Deus é espírito, vento impetuoso que sopra em todo lugar, o mesmo vento que ele soprou dentro da gente para que respirássemos, fôssemos leves e pudéssemos voar. Quem está no vento não pode estar firme. Firmes são as pedras, as tartarugas, as âncoras. Você já viu um papagaio firme? Papagaio firme é papagaio no chão, não voa. Pois eu estou mais é como urubu, lá nas alturas, flutuando ao sabor do imprevisível Vento Sagrado, sem firmeza alguma, rodando em largos círculos.

Ela ficou perdida, acho que nunca havia ouvido resposta tão estranha, mudou de tática e tentou pegar a minha alma do outro lado, desatou a falar de Deus, informou-me que ele é maravilhoso etc., etc., etc., como se estivesse no púlpito em celebração de domingo.

Refuguei e disse:

– Acho que quem não está firme em Deus é você. Olha, passei a noite toda respirando, estou respirando desde que acordei, e juro que agora é a primeira vez que penso no ar. Não pensei nem falei no ar porque somos bons amigos. Ele entra e sai do meu corpo quando quer, sem pedir licença. Mas a história seria outra se eu estivesse com asma, os brônquios apertados, o ar sem jeito de entrar, ou, como naquele anúncio antigo do xarope Bromil, o coitado do homem sufocado por uma mordaça, gritando pelo ar que lhe faltava. Por via das dúvidas até andaria com uma garrafa de oxigênio na bagagem, para qualquer emergência.

E continuei:

– Pois Deus é como o ar. Quando a gente está em boas relações com ele não é preciso falar. Mas quando a gente está atacado de asma, então é preciso ficar gritando pelo nome dele. Do jeito como o asmático invoca o ar. Quem fala com Deus o tempo todo é asmático espiritual. E é por isso que andam sempre com Deus engarrafado na Bíblia e outros livros e coisas de função parecida. Só que o vento não pode ser engarrafado...

Aí ela viu que minha alma estava perdida mesmo e, como consolo, fez um sinal de adeus e disse que iria orar muito por mim. Aí eu protestei, implorei que não o fizesse. Disse-lhe que eu tinha medo de que Deus ficasse ofendido. Pois há rezas e orações que são ofensas. É óbvio: se vou lá, bater às portas de Deus, pedindo que ele tenha dó de alguém, eu lhe estou imputando duas imperfeições que, se fosse comigo, me deixariam muito bravo.

Primeiro, estou dizendo que não acredito no amor dele, deve ser meio fraquinho, sem iniciativa, preguiçoso, à espera do meu cutucão. Se eu não der a minha cutucada, Deus não se mexe. E isso não é coisa de ofender Deus? Segundo, estou sugerindo que Ele deve andar meio esquecido, desmemoriado, necessitado de um secretário que lhe lembre suas obrigações. E trato de, diariamente, apresentar-lhe a sua agenda de trabalho. Mas está lá nos salmos e nos evangelhos que Deus sabe tudo antes que a gente fale qualquer coisa. Ora, se a gente fica no falatório é porque não acredita nisso. Não acredito em oração em que a gente fala e Deus escuta. Acredito mesmo é na oração em que a gente fica quieto para ouvir a voz que se faz ouvir no meio do silêncio.

Voltei à minha amiga:

– Veja você. Tive um filho que estudava longe. Eu gostava dele. Ele gostava de mim. De vez em quando a gente se falava ao telefone. E o dinheiro da mesada ia sempre, com telefonema ou sem telefonema. Agora imagine: de repente começo a perceber telefonemas dele três vezes por dia e mensagens por sedex, cartas e telegramas louvando o meu amor, agradecendo a minha generosidade... Você acha que isso me faria feliz? De jeito nenhum. Concluiria que o meu pobre filho havia endoidecido e estava acometido de um terrível medo de que eu o abandonasse. Pois é assim mesmo com Deus: quem fica o dia inteiro atrás dele, com falatório, é porque desconfia dele. Mas o pior é o gosto estético que assim se imputa a Deus. Uma pessoa que gosta de passar o dia inteiro ouvindo os outros repetindo as mesmas coisas, as mesmas palavras, as mesmas rezas, pela eternidade afora, não deve ser muito boa da cabeça. Para mim isso é o inferno. Quem reza demais acha que Deus não funciona bem da cabeça. Acho que ele ficaria mais feliz se, em vez do meu falatório, eu lhe oferecesse uma sonata de Mozart ou um poema da Adélia...

Mas aí o alto-falante chamou o meu voo, tive de me despedir, e imagino que ela ficou aflita, temerosa de que Deus derrubasse meu avião com um raio. Mal sabia ela que Deus nem mesmo havia ouvido a nossa conversa pois, cansado das doidices dos adultos, ele foge sempre que vê dois deles conversando e se esconde deles, disfarçado de criança.


28/2/94

* Texto extraído de: Rubem Alves. Teologia do cotidiano. São Paulo: Olhos D'água, 1994. p. 54-57.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

RICHARD JOHANSON

 

Distração é atração por um outro mundo

Rubem Alves


sexta-feira, 13 de agosto de 2021

 

l'utopie - rené magritte


Os que têm medo sonham. Porque tenho medo da cidade grande onde me perco eu sonho com cidade grande que posso amar. É uma utopia. Não existe. Mas não tem importância. Valéry perguntou: “Que seria de nós sem o socorro das coisas que não existem?” O que não existe socorre. Oscar Wilde, que sabia do socorro das coisas que não existem, escreveu: “Um mapa do mundo que não inclua o país da Utopia não merece nem mesmo um olhar, pois ignora o único país ao qual a Humanidade constantemente chega. E quando a Humanidade lá atraca, fica alerta, e levanta novamente as âncoras ao vislumbrar terra melhor…


Rubem Alves

domingo, 3 de janeiro de 2016

Liz Viztes

Gosto da palavra "amantes". Amantes são aqueles que se amam. Os amantes, separados pela distância, sentem saudades… Alegram-se com a memória do rosto da pessoa amada. Diferente das palavras "marido" e "esposa". Para se ser "marido" e "esposa" não é preciso amar. Ouvi, de um padre, na sua homilia aos noivos: "O que os une não é o seu amor. É o contrato". Padre ortodoxo aquele. Conhecia bem a teologia da igreja. Porque, para a igreja, o que une as pessoas não é o que elas sentem. É o ato sacramental que o sacerdote executa. É a igreja que estabelece a união matrimonial. Sacramentos são atos que um sacerdote executa, em nome de Deus. Portanto, é Deus que executa. E se é Deus que executa, não pode ser desfeito. "Aquilo que Deus juntou não o separe o homem". A rejeição do divórcio por parte da igreja nada tem a ver com o seu amor pela família. O que está em jogo é o poder divino da igreja para unir. Se a igreja aceitasse o divórcio ela estaria confessando que o sacramento do matrimônio não é coisa divina. E, com isso, estaria se desqualificando como legítima representante de Deus.

Acho que o certo seria dizer: Aquilo que Deus juntou o homem não separa. Se separou é porque Deus não juntou…

Unidos pela igreja o marido e a esposa tem a permissão – corrijo-me, têm a obrigação de realizar o ato sexual. A obrigação de realizar o ato sexual tem a ver com a demografia dos céus e dos infernos. É preciso completar o número dos salvos e dos condenados para que venha o dia do juízo. O objetivo da união sexual não é a realização do amor. O amor é sentimento humano. O objetivo da união sexual é a procriação. Essa é a lei da natureza.

Um homem e uma mulher unidos pelo sacramento tem o dever de se unirem sexualmente, ainda que se odeiem. Porque não é o amor que justifica o sexo; é o contrato…

Para a igreja o sexo pertence ao mundo a que Buber deu o nome de "Eu-Isso" e não ao mundo "Eu – Tu".

Santo Agostinho colocou essa questão de maneira muito precisa ao elogiar o fato de Abraão haver engravidado sua escrava Hagar a fim de ter um filho, posto que Sara, sua mulher, era estéril. Diz o Santo que Abraão agiu de maneira racional, por dever e não por prazer. Ele não gozou ao transar com Hagar. Estabelece-se um problema fisiológico: " É possivel ejacular sem prazer?"

O prazer, segundo a teologia de Santo Agostinho, é uma perturbação introduzida pelo pecado original. O prazer desviou o sexo da sua verdadeira função: passou a ser um fim em si mesmo – os amantes fazem amor por pura alegria, sem pensar em gerar um filho. O sexo, assim, pelo prazer,  tornou-se escravo da carne e deixou de se subordinar aos imperativos da razão. O pênis passou a ter ideias próprias. Movimenta-se sem a ordem da razão. O pênis deveria ser como o dedo que faz o que a razão manda.

Amar é brincar. Não leva a nada. Não é para levar a nada. Quem brinca já chegou. Fazer amor com uma mulher ou um homem é brincar com o seu corpo. Cada amante é um brinquedo brincante.  "Creio na ressurreição do corpo":  não é a esperança de um milagre escatológico no fim dos tempo. É uma possibilidade de cada dia.  Os sentidos precisam sair do túmulo onde os deveres os enterraram. Corpo de criança, corpo brincante: é nele que acontece a alegria!

O corpo é um lugar maravilhoso de delícias. Mas Xerazade sabia que todo amor construído sobre as delícias do corpo tem vida breve. A chama se apaga tão logo o corpo se tenha esvaziado o seu fogo. O seu triste destino é ser decapitado pela madrugada.

Nos livros de medicina os orgãos sexuais aparecem sob o título de "aparelho reprodutor". Essa ideia de sexo como aparelho,  maquineta de fazer crianças,  me é repulsiva. Só podem tê-la aqueles que não leram o " Cântico dos Cânticos ". Não existe naquele livro uma única sugestão de que sexo seja para procriar. Ali, sexo é só para a alegria do amor.

O bicho-de-pé  ( tunga penetrans) merece sobreviver por suas múltiplas utilidades, entre elas, o seu uso didático, utilíssimo em aulas de educação sexual. A jovem, com medo da noite de núpcias, perguntou à mãe se doía muito. Ao que a mãe respondeu: "É feito bicho-de-pé. Dói um pouquinho, mas depois a gente não quer parar de esfregar…"

O amor nasce, vive e morre pelo poder – delicado – da imagem poética que o amante vê no rosto da amada. O amor prefere a luz das velas. Talvez porque seja isso tudo o que desejamos da pessoa amada: que ela seja uma luz suave que nos ajude a suportar o terror da noite.

Como são diferentes as mãos ternas das mãos que desejam a posse! A ternura não deseja nada. O beijo terno apenas encosta os lábios…  O olhar terno deseja que aquele momento seja eterno. Daí o seu cuidado, a voz que fala baixo, a mão que tateia, o mover-se vagaroso: para que o encanto da imagem não se quebre…

"Ao pensar a possibilidade do casamento cada um deveria se fazer a seguinte pergunta: ‘Serei capaz de conversar com prazer com esta pessoa até a minha velhice?" (Nietzsche). Tudo o mais no casamento é transitório.

O segredo do amor é a androgenia: somos todos, homens e mulheres, masculinos e femininos ao mesmo tempo. É preciso saber ouvir. Deixar que o outro entre dentro da gente. Nada mais fatal contra o amor que a resposta rápida. Uma resposta rápida é um alfanje que decapita. Escutar demanda tempo. Há pessoas muito velhas cujos ouvidos ainda são virginais: nunca foram penetrados.

Releio as Confissões  de Santo Agostinho. Faz a Deus a pergunta impossível: "Que é que eu amo quando amo o meu Deus?"  Deseja entender o mistério do amor. Imaginem que um apaixonado fizesse essa pergunta à sua amada: "Que é que eu amo quando  amo você?"   Ela responderia perplexa: "Então, não é a mim que você ama? Você ama uma outra coisa através de mim?"  Segredo que nenhum amante sabe: não amo a minha amada. Amo algo que aparece refletido no seu rosto. A raposa não amava os campos de trigo. Amava o Pequeno Príncipe que ela via quando o vento balançava o trigo. Não é o pé de rosmaninho que eu amo. É um rosto que vejo quando sinto o seu perfume. A pessoa amada é os campos de trigo, o pé de rosmaninho… "O que amamos é sempre um símbolo",  disse Hermann Hesse. "Símbolo" é algo que está no lugar da outra coisa. O pão e o vinho eucarísticos marcam o lugar de uma ausência: Cristo não está lá. O símbolo, qualquer símbolo, sendo "uma outra coisa" que não a coisa amada,  é sempre um lugar da ausência da coisa amada.

A pessoa amada é metáfora de uma outra coisa. Em ti amo uma outra coisa misteriosa, que não conheço, mas que me parece ver aflorar no teu rosto. Eu te amo porque no teu corpo um outro objeto se revela. Teu corpo é lagoa encantada… Quem está apaixonado não se dá conta de que o rosto da pessoa amada, presente,  é apenas a superfície da lagoa onde se reflete o obscuro objeto do desejo (ausente). A pessoa amada é metáfora de uma outra coisa.
A pergunta que Agostinho dirige ao seu Deus é a mesma que pode ser  feita à pessoa que amamos: pois a pessoa que amamos, no momento do amor, é o nosso deus… A experiência amorosa é divina! Quem está mergulhado no amor atingiu a bem-aventurança eterna – não precisa de mais nada. Te amo, sim, mas não é bem a ti que eu amo. Amo uma outra coisa misteriosa, que não conheço, mas que me parece ver aflorar no teu rosto. Eu te amo porque no teu corpo um outro objeto se revela. Teu corpo é lagoa encantada onde reflexos nadam como peixes fugidios…

Ângelus Silésius disse que o amor é como a rosa: " A rosa não tem ‘porquês’. Ela floresce porque floresce"..

O apaixonado sofre menos com a morte da pessoa amada que com a sua partida para um novo amor. A morte eterniza o amor. Ela o fixa, para sempre, a bela cena. A partida, ao contrário, a destrói.

Somos amantes muito antes de nos encontrarmos com a mulher ou o homem que será objeto do nosso amor. Somos como a criancinha que já ama o seio mesmo antes do primeiro encontro.
Somos donos dos nossos atos mas não somos donos dos nossos sentimentos. Somos culpados pelo que fazemos mas não somos culpados pelo que sentimos.  Podemos prometer atos. Não podemos prometer sentimentos. "Eu sei que vou te amar, por toda a minha vida vou te amar…" Lindo e mentiroso. Não se pode prometer sentimentos.  Eles não dependem da nossa vontade. Sua existência é efêmera. Como o voo dos pássaros…

Meditando sobre as telas de Monet você entenderá o amor. Tudo são reflexos efêmeros… Por um momento a beleza cintila, mas logo o tremor da água faz desaparecer o reflexo… O êxtase do amor é como os reflexos da luz sobre a superfície das águas da lagoa.
Todo símbolo é alegre-triste. Alegre, por lembrar a coisa amada, triste por ser o lugar onde ela não está… Hesse conclui  não ser possível fixar o nosso amor em nenhuma pessoa.  A fidelidade a uma única pessoa seria um equívoco…

Pobre Narciso, enfeitiçado pela beleza que via refletida na superfície da fonte… Sempre que tentava tocá-la com os dedos – a imagem desaparecia quando seus dedos encrespavam a superfície das águas. Será assim o êxtase da experiência amorosa?  A bela imagem está lá, sorridente, no rosto da pessoa amada! Aí, vamos tocá-la – e ao tentar fazê-lo ela se desvanece…

Amor, imagem fugidia, escorregadia como um peixe… Tento pegá-lo com a mão. Ele foge. Esconde-se de mim. Zomba de mim. Desliza entre meus dedos quando eu já pensava tê-lo.  Eu te abraço para abraçar o que me foge. Ao te possuir alegro-me na ilusão de  possuir o que amo. Tu és o lugar onde me encontro com esta outra coisa que, por pura graça, apareceu refletida em ti, a bela imagem. Mas, por ser graça,  da mesma forma como apareceu poderá  partir. Se isto acontecer deixarei de te amar mas continuarei a amar a imagem que, um dia, vi refletida no teu rosto. E minha busca recomeçará de novo…


Rubem Alves em Quarto de Badulaques

domingo, 11 de janeiro de 2015

Cartas de amor

johannes-vermeer-mulher-de-azul-lendo-uma-carta
Leio e releio o poema de Álvaro de Campos. Oscilo. Não sei se devo acreditar ou duvidar. Se acredito, duvido. Duvido porque acredito. Pois foi ele mesmo quem disse – ou melhor, o seu outro, o Fernando Pessoa – que ele era um fingidor. "Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas..."
Tenho no meu escritório a reprodução de uma das telas mais delicadas que conheço, Mulher lendo uma carta, de Johannes Vermeer (1632-1675). Uma mulher, de pé, lê uma carta. O seu rosto está iluminado pela luz da janela. Seus olhos leem o que está escrito naquela folha de papel que suas mãos seguram, a boca ligeiramente entreaberta, quase num sorriso. De tão absorta, ela nem se dá conta da cadeira, ao seu lado. Lê de pé. Penso ser capaz de reconstituir os momentos que antecedem este que o pintor fixou. Pancadas na porta interromperam as rotinas domésticas que a ocupavam. Ela vai abrir e lá estava o carteiro, com uma carta na mão. Pela simples leitura do seu nome, no envelope, ela identifica o remetente. Ela toma a carta e, com este gesto, toca uma mão muito distante. Para isto se escrevem as cartas de amor. Não para dar notícias, não para contar nada, não para repetir as coisas por demais sabidas, mas para que mãos separadas se toquem, ao tocarem a mesma folha de papel. Barthes cita estas palavras de Goethe:

"Por que me vejo novamente compelido a escrever? Não é preciso, querida, fazer pergunta tão evidente, porque, na verdade, nada tenho para te dizer. Entretanto tuas mãos queridas receberão este papel..."

Volto ao Álvaro de Campos. Será esta a razão do ridículo das cartas de amor – o descompasso entre o que elas dizem e aquilo que elas realmente querem fazer? Pois o propósito explícito de uma carta é dar notícias, e é por isto que elas são feitas de palavras. Mas o que elas realmente desejam realizar está sempre antes e depois da palavra escrita: elas querem realizar aquilo que a separação proíbe: o abraço. Quem quer que tente entender uma carta de amor pela análise da escritura estará sempre fora de lugar, pois o que ela contém é o que não está ali, o que está ausente. Qualquer carta de amor, não importa o que se encontre nela escrito, só fala do desejo, a dor da ausência, a nostalgia pelo reencontro.
Aquela carta fez tudo parar. A mulher fecha a porta e caminha pela casa sem nada ver, buscando uma coisa apenas, a luz, o lugar onde as palavras ficarão luminosas. Que lhe importa a cadeira? Esqueceu-se de que está grávida. Seus olhos caminham pelas palavras que saíram das mesmas mãos que a abraçaram. Seu corpo está suspenso naquele momento mágico de carinho impossível que aquele pequeno pedaço de papel abriu no tempo do seu cotidiano.
Uma carta de amor é um papel que liga duas solidões. A mulher está só. Se há outras pessoas na casa, ela as deixou. Bem pode ser que as coisas que estão nela escritas não sejam nenhum segredo, que possam ser contadas a todos. Mas, para que a carta seja de amor, ela tem de ser lida em solidão. Como se o amante estivesse dizendo: "Escrevo para que você fique sozinha...". É este ato de leitura solitária que estabelece a cumplicidade. Pois foi da solidão que a carta nasceu. A carta de amor é o objeto que o amante faz para tornar suportável o seu abandono.
Olho para o céu. Vejo a Alfa Centauro. Os astrônomos me dizem que a estrela que agora vejo é a estrela que foi, há dois anos. Pois foi este o tempo que sua luz levou para chegar até os meus olhos. O que eu vejo é o que não mais existe. E será inútil que eu me pergunte: "Como será ela agora? Existirá ainda?". Respostas a estas perguntas eu só vou conseguir daqui a dois anos, quando a sua luz chegar até mim. A sua luz está sempre atrasada. Vejo sempre aquilo que já foi... Nisto as cartas se parecem com as estrelas. A carta que a mulher tem nas mãos, que marca o seu momento de solidão, pertence a um momento que não existe mais. Ela nada diz sobre o presente do amante distante. Daí a sua dor. O amante que escreve alonga os seus braços para um momento que ainda não existe. A amante que lê alonga os seus braços para um momento que não mais existe. A carta de amor é um abraçar do vazio...
"Ainda bem que o telefone existe", retrucarão os namorados modernos, que não mais têm de viver o amor no espaço das ausências. Engano. Um telefonema não é uma carta falada. Pois lhe falta o essencial: o silêncio da solidão, a calma da caneta pousada sobre a mesa que espera e escolhe pensamentos e palavras. O telefone põe a solidão a perder. Num telefonema a gente nunca diz aquilo que se diria numa carta. Por exemplo: "Eu ia andando pela rua quando, de repente, vi um ipê-rosa florido que me fez lembrar aquela vez...". Ou: "Relendo os poemas de Neruda encontrei este que, imagino, você gostará de ler...".
A diferença entre a carta e o telefone é simples. O telefone é impositivo. A conversa tem de acontecer naquele momento. Falta-lhe o ingrediente essencial da palavra que é dita sem esperar resposta. E, uma vez terminado, os dois amantes estão de mãos vazias.
Mas a mulher tem nas mãos uma carta. A carta é um objeto. Se não tivesse podido recolher-se à sua solidão, ela poderia tê-la guardado no bolso, na deliciosa espera do momento oportuno. O telefonema não pode esperar. A carta é paciente. Guarda as suas palavras. E, depois de lida, poderá ser relida. Ou simplesmente acariciada. Uma carta contra o rosto – poderá haver coisa mais terna? Uma carta é mais que uma mensagem. Mesmo antes de ser lida, ainda dentro do envelope fechado, tem a qualidade de um sacramento: presença sensível de uma felicidade invisível...
Estes pensamentos me vieram depois de ler as cartas de um jovem cientista, Albert Einstein, à sua amada, Mileva Maric'. Foram elas que me fizeram ir ao poema do Álvaro de Campos: ridículas. Todas as cartas de amor são ridículas. Acho que os editores pensaram o mesmo. E como desculpa para o seu gesto indiscreto de tornar público o ridículo que era segredo de dois amantes, escreveram uma longa e erudita introdução que transformou as ridículas cartas de amor em documentos da história da ciência. Valem porque, misturadas ao ridículo de que os amantes se alimentam, se encontram pistas que dão aos historiadores as chaves para a compreensão das "fontes do desenvolvimento emocional e intelectual dos correspondentes". Não sabendo o que fazer com o amor (ridículo), colocaram-nas na arqueologia da ciência.
Foi então que o quadro de Vermeer me fez ver a cena que as cartas escondem. E a mulher com a carta na mão e uma criança na barriga? Ela bem que poderia ser Mileva, grávida de uma filha ilegítima, que foi dada para adoção, e sobre quem nada se sabe. A criança foi dada. Mas as cartas foram guardadas. E que razões poderia ter uma pessoa para guardar cartas ridículas? O seu rosto absorto e os lábios entreabertos nos dão a resposta: para aqueles que amam as ridículas cartas de amor são sempre sublimes.
Volto ao poema do Álvaro de Campos e encontro lá o que faltava para fechar a cena: "Afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor são ridículas".

Rubem Alves, Cartas de amor

segunda-feira, 9 de junho de 2014

O ciúme



O apaixonado que desconfia quer manter sob controle até o pensamento do ser amado. Diante de tamanha impossibilidade, ele se tortura e quer o outro cerceado. É a antítese do amor.
...
Ela tinha a beleza tranquila da maturidade. Bastava vê-la para adivinhar como ela teria sido. Ah! Com certeza provocara muitos suspiros de amor. De hábitos domésticos e simples, um dos seus prazeres era assentar-se numa poltrona e entrar na bolha que a leitura cria. Quem lê está num outro mundo, muito longe.

O seu marido a observava de longe. Olhos que observam são olhos que olham quando o outro não está olhando. Olhos que observam são olhos de felino que seguem a presa. Seu olhar era olhar de apaixonado que desconfia, olhar de ciúme. Os olhos do ciumento vigiam. Vigiam gestos, movimentos, horas. Vigiam porque as modulações silenciosas e distraídas no rosto da pessoa amada podem conter revelações sobre aquilo que ela está pensando. O ciumento suspeita que a mulher amada lhe esconde algo. Ele olha na esperança de ver o escondido, de entrar dentro do segredo do outro. O ciumento detesta os pensamentos. Por mais que os vigie, eles estão além da sua vigilância.

Tem aquela modinha de Carlos Gomes, Quem Sabe? É um monólogo de um apaixonado. Ele sofre. Sofre porque a amada está longe e ele não sabe o que ela está pensando. “Tão longe de mim distante, onde irá, onde irá teu pensamento?” O seu desejo era saber se os pensamentos da amada pensavam nele. Ele pergunta porque não sabe e tem medo de saber o que ela estará pensando. Pergunta porque não confia. Minha amada, por favor, me diga “se ainda é meu teu pensamento…”.

Há os ciúmes mansos que todos sentem e só doem um pouquinho. E há os ciúmes que são um tormento e que frequentemente terminam em tragédia. Todo ciúme, manso ou atormentado, gostaria de ser dono da mulher amada, inclusive dos seus pensamentos. Ele quer conhecê-la por dentro e por fora para certificar-se da sua posse. Nos momentos de êxtase amoroso, esse tormento se resolve e o ciumento se acalma. Mas a sua calma é efêmera. Dura o mesmo tempo do ato sexual. Termina com o orgasmo. Passado o êxtase a dúvida volta. E, com ela, o tormento.

Ele a vigiava, silenciosamente o felino a vigiava. E a sua vigilância se exacerbava quando ela sorria ou ria. Como explicar esse sorriso se ele, o seu marido, não estava dentro do livro? Ela não precisava dele para ser feliz. Mergulhada no seu livro, o seu marido não existia. E isso não é o anúncio de uma infidelidade possível? Ter prazer com algo que não era ele, o seu marido… O prazer acontecia na ausência dele. A infidelidade com o livro anunciava a possibilidade de grandes infidelidades. E isso o torturava. Tortura que não o abandonava nem nos momentos de intimidade prazerosa.

Um ciumento não tolera a liberdade.

Mas aí algo aconteceu que o tranquilizou. Sua esposa adoeceu. Uma mulher adoentada é um pássaro de asas quebradas que não sonha e nem poderia jamais voar. Um pássaro de asas quebradas não planeja voos proibidos. Pássaros de asas quebradas são confiáveis.

Isso o acalmou. Ele ficou doce. Até os momentos de intimidade ficaram leves: seu efêmero sentimento de posse se transformou num tranquilo sentimento de eternidade. Agora ela era sua, para sempre.

Suspeito que os crimes por ciúme não têm o propósito primeiro de matar a mulher amada. O seu propósito, ao contrário, é garantir que ela não será de nenhum outro.

Mas há também um ciúme que dói de mansinho, sofrimento no coração de todos os apaixonados.

A cena: o marido e a mulher chegam a uma festa. Muita gente conhecida e desconhecida, música, risos, olhares… Marido e mulher se separam para se socializarem com outras pessoas. Numa roda, o marido conversa e ri, distraído. De repente, ele vira o seu rosto e vê a sua mulher em outro grupo. Ela está de costas, vestido branco, costas nuas. Como ela é bonita! Ele a ama e pensa que outros homens já olharam para ela com olhares de admiração e desejo. Ela se tornou o centro das atenções da sua roda. Todos os homens se esforçam por lançar o seu charme. Ela ri. De costas para o marido é como se ele não existisse. Como aconteceu com a mulher que lia o livro. Ri por causa dos outros que a cercam, grupo do qual o marido está ausente. E ele pensa que, naquele momento, a felicidade da sua mulher acontece sem que ele dela participe. E lhe dói saber que ela pode ser feliz sem ele, ainda que num breve momento.

Sofre em silêncio, sem demonstrar. E nem fará cobranças quando voltarem para a casa. Afinal de contas, ele é um homem educado que compreende os movimentos da alma.

O ciúme nasce quando se toma consciência de que a pessoa amada é livre. Ela é como um pássaro pousado no ombro. Nada o prende. Poderá voar para longe quando quiser.

Alguns ciumentos tolos acham que o casamento é gaiola que garantirá a posse plena do pássaro. Mas nada garante a posse do pássaro. O pássaro voa, o pássaro volta… Mas pode ser mesmo que ele voe e não volte…

RUBEM ALVES

quarta-feira, 2 de abril de 2014



Querida Marina...
Os olhos, retirados do rosto, são peças anatômicas sinistras. O segredo do seu olhar mora no rosto com que miro você


O VINICIUS ESCREVEU um poema intitulado "O Haver". O "Haver" era o nome de uma página dos antigos livros de contabilidade onde se registrava o que havia sobrado, o ganho, o "a receber", por oposição ao "Deve", onde se registravam as dívidas, o que deveria ser pago. É um poema de velhice, balanço do que sobrou na vida.
Eu também já estou no tempo de fazer o balanço entre as dívidas e os haveres. Minha vida se divide em três fases. Na primeira fase, o meu mundo era do tamanho do universo e era habitado por deuses, verdades e absolutos. A esperança que eu escrevia na página do "Haver" era do tamanho da luz do sol ao meio-dia.
Na segunda fase, meus haveres encolheram. Meu mundo passou a ser habitado por heróis revolucionários que portavam armas e cantavam canções de transformar o mundo. A esperança que iluminava o universo passou a iluminar apenas os horizontes da história.
Na terceira fase, mortos os deuses, mortos os heróis, mortas as esperanças teológicas e políticas, fiquei pobre de verdade e o meu mundo se encolheu mais ainda -e chegou não à sua verdade final, mas à sua esperança final, que teima em se alegrar com coisas pequenas.
A esperança é a última que morre. O Vinicius reconheceu essa chama entre os seus haveres e a chamou de "pequenina luz indecifrável a que às vezes os poetas dão o nome de esperança".
Diferente do otimismo. O otimismo é "sorriso por causa de", quando há razões para sorrir. A esperança é "sorriso a despeito de", quando não há mais razões para sorrir.
A imagem que o Vinicius escolheu para descrever sua pequena esperança é comovente: "Resta esse coração queimando como um círio numa catedral em ruínas, essa tristeza diante do cotidiano; ou essa súbita alegria ao ouvir passos na noite que se perdem sem história".
Álvaro de Campos escreveu um verso bruto: "E a luxúria única de já não ter esperanças?" Não ter esperança é estar em paz, não ter causas por que lutar, o fim do esforço... Viver o presente, o presente apenas, como se o futuro já não se anunciasse, como se fosse inútil saber o que ele anuncia.
A luz do círio aceso se transforma em sombras fantasmagóricas nas paredes arruinadas daquilo que, no passado, foi uma catedral onde moravam os deuses. Muitos deuses e muitos heróis moraram dentro de mim. Hoje, não sei onde se meteram... Sou uma catedral em ruínas... Mas aí eu ouço passos na noite...
Olho e vejo que alguém, no escuro, carrega uma chama. Me animo. Escrevo: é o meu jeito de soprar cinzas. Meu círio se acende. Fico alegre. A luz põe alegria no olhar.
O que é um olhar? O olhar não se encontra nos olhos. Não adianta olhar fundo nos olhos. O olhar não está lá. Foi Sartre que disse que "o olhar do outro esconde os seus olhos." Cecília Meireles confirma: "O sentido está guardado no rosto com que te miro". Não os olhos; o rosto... Os olhos, retirados do rosto, são peças anatômicas sinistras. O segredo do seu olhar mora no rosto com que miro você.
Quero ver o seu olhar, Marina. Quero ver o seu rosto, onde mora o sentido, e não dois olhos retirados do seu rosto. O seu rosto, moldura dos seus olhos, fala mais e diferente que os seus olhos. Não quero ver os seus olhos na televisão. Quero ver o seu rosto, onde mora o seu olhar...


Rubem Alves
fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1310200904.htm

quinta-feira, 6 de março de 2014

Rubem Alves x Nietzsche




"Somos donos dos nossos atos mas não somos donos dos nossos sentimentos. Somos culpados pelo que fazemos mas não somos culpados pelo que sentimos. Podemos prometer atos. Não podemos prometer sentimentos. 'Eu sei que vou te amar, por toda a minha vida vou te amar…' Lindo e mentiroso. Não se pode prometer sentimentos. Eles não dependem da nossa vontade. Sua existência é efêmera. Como o voo dos pássaros…"

- Rubem Alves










Certamente quando Rubem Alves escreveu o texto acima estava sob forte influência das palavras de Nietzsche:


"58. O que se pode prometer.

Pode-se prometer ações, mas não sentimentos, pois estes são involuntários. Quem promete a alguém amá-lo sempre, ou odiá-lo sempre, ou ser-lhe sempre fiel, promete algo que não está em seu poder; mas o que pode perfeitamente prometer são aquelas ações que, na verdade, são geralmente as consequências do amor, do ódio, da fidelidade, mas que também podem emanar de outras razões, pois a uma ação conduzem diversos caminhos e motivos. A promessa de amar sempre alguém significa, portanto; enquanto eu te amar, manifestar-te-ei as ações do amor; se eu já não te amar, pois, não obstante, receberás para sempre de mim as mesmas ações, ainda que por outros motivos. De modo que a aparência de que o amor estaria inalterado e continuaria sendo o mesmo permanece na cabeça das outras pessoas. Promete-se, por conseguinte, a persistência da aparência do amor, quando, sem ilusão, se promete a alguém amor perpétuo."

Friedrich Nietzsche, Humano demasiado humano, p. 77

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Aos pais e educadores


Escrevi sobre príncipes e sapos, sobre borboletas e lagartas, sobre o Leonardo e a IBM, sobre campos selvagens e monoculturas... Tudo aparentemente tão diferente. E no entanto - não sei se vocês perceberam - eu falei o tempo todo sobre uma mesma coisa. Fiz, com estas crônicas, aquilo que os músicos gostam de fazer: variações sobre um único tema. Meu tema? O corpo: o meu corpo, o seu corpo, o corpo do seu filho ou de sua filha, o corpo do seu aluno. O corpo é o lugar fantástico onde mora, adormecido, um universo inteiro. Como na terra moram adormecidos os campos e suas mil formas de beleza, e também as monótonas e previsíveis monoculturas; como na lagarta mora adormecida uma borboleta, e na borboleta, uma lagarta; como nos sapos moram príncipes e nos príncipes moram sapos; como em obedientes funcionários que fazem o que deles se pede moram Leonardos que voam pelos espaços sem fim dos sonhos.

Tudo adormecido. O que vai acordar é aquilo que a Palavra vai chamar. As palavras são entidades mágicas, potências feiticeiras, poderes bruxos que despertam os mundos que jazem dentro dos nossos corpos, num estado de hibernação, como sonhos. Nossos corpos são feitos de palavras. Assim, podemos ser príncipes ou sapos, borboletas ou lagartas, campos selvagens ou monoculturas, Leonardos ou monótonos funcionários. Diferentes dos corpos dos animais, que nascem prontos ao fim de um processo biológico, os nossos corpos, ao nascer, são um caos grávido de possibilidades, à espera da Palavra que fará emergir, do seu silêncio, aquilo que ela invocou. Um infinito e silencioso teclado que poderá tocar dissonâncias sem sentido, sambas de uma nota só, ou sonatas e suas incontáveis variações.

A este processo mágico pelo qual a Palavra desperta os mundos adormecidos se dá o nome de educação. Educadores são todos aqueles que têm este poder. Por isto que a educação me fascina. Hoje o que fascina é o poder dos técnicos, que sabem o segredo das transformações da matéria em artefatos. Poucos se dão conta de que fascínio muito maior se encontra no poder da Palavra para fazer as metamorfoses do corpo. É no lugar onde a Palavra faz amor com o corpo que começam os mundos. Por isto que compartilho da opinião de Hermann Hesse, que dizia que entre os problemas da cultura moderna a escola era o único que levava a sério.

Mas é preciso não ter ilusões. A Palavra tanto pode invocar príncipes quanto sapos, tanto pode acordar borboletas quanto lagartas. E eu não estou sozinho na minha suspeita de que muito do que se chama educação é, na verdade, feitiçaria, magia negra. O próprio Hesse tinha amargas lembranças de suas experiências de escola. “Em mim a escola destruiu muita coisa”, ele diz. “E conheço poucas personalidades importantes a que não tenha ocorrido o mesmo. Na escola só aprendi duas coisas: latim e mentiras.” Lichtenberg tinha suspeitas semelhantes em relação às escolas. “Atualmente procura-se divulgar a sabedoria por toda a parte: quem sabe se daqui a poucos séculos não haverá universidades destinadas a restabelecer a antiga ignorância? Parece absurdo? Fernando Pessoa explica: “Procuro despir-me do que aprendi,/ Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,/ E raspar a tinta com que pintaram os sentidos,/ Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,/ Desembrulhar-me e ser eu...” Será isto? Que a educação pode ser um feitiço para nos fazer esquecer quem somos, a fim de sermos recriados à imagem e semelhança de um Outro? O que me faz lembrar um
mural de Orozco, pintor mexicano que passou anos ensinando sua arte num college norte-americano. Foi certamente inspirado pelo que via acontecendo diariamente com os moços que frequentavam as melhores (notem bem, eu disse “melhores”...) escolas que pintou A Formatura: um professor, alto, magro, cadavérico, verde, entrega ao seu discípulo, também alto, magro, cadavérico, verde, a prova final do seu saber: o diploma, um feto morto, dentro de um tubo de ensaio. Se isto for verdade, se o que o processo educativo faz não é despertar e fazer brotar os universos selvagens que moram em nós, mas antes espalhar herbicidas para depois plantar as sementes da monocultura (afinal de contas, cada corpo deve ser útil socialmente...) que um Outro ali semeia, então o caminho da verdade exige um esquecimento: é preciso esquecer-se do aprendido, a fim de se poder lembrar daquilo que o conhecimento enterrou. “Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento?”, pergunta T. S. Eliot. “Onde está o conhecimento que perdemos na informação?” Penso que este é o sentido do parágrafo perturbador com que Roland Barthes termina sua aula inaugural como professor do College de France: “Desejo, agora, deixar-me levar pela força de toda a vida realmente viva: o esquecimento. Há uma idade em que se ensina o que se sabe. Em seguida vem uma outra em que se ensina o que se não sabe. Chega, talvez agora, a idade de uma outra experiência: aquela de desaprender, de fazer trabalhar as transformações imprevisíveis que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas e das crenças por que se passou.A miséria da educação não aparece onde ela é pior. Sua miséria se revela justamente onde ela é excelente, competente. Pois, quando é que dizemos que ela é excelente? Justamente ali onde ela consegue, com competência, administrar a qualidade dos corpos que ela deseja transformar. E que transformação é esta que se deseja? Quem dá a resposta de maneira mais clara e direta é Clark Kerr, presidente da Universidade de Berkeley, durante a crise estudantil que a agitou no início dos anos 60. Estas são as suas palavras: “A universidade é uma fábrica para a produção de conhecimento e de técnicos a serviço das muitas burocracias da sociedade”. Coisa que Nietzsche havia percebido muito antes, o que indica que esta tendência da educação não é coisa nova. “O que as escolas superiores na Alemanha realmente realizam é um treinamento brutal, com o objetivo de preparar vastos números de jovens, com a menor perda possível de tempo, para se tornarem usáveis e abusáveis a serviço do governo.”

Não importa o nome que se dê a este Outro, para quem as crianças e jovens são moldados. Não importa o retorno econômico que se possa obter ao fim deste processo. Permanece um fato fundamental: que ele só se
realiza ao preço da morte dos universos que um dia viveram, como possibilidades adormecidas no corpo das crianças: todo Leonardo deve se transformar em funcionário, toda borboleta deve se transformar numa lagarta, todo campo selvagem deve se transformar em monocultura. Não é de se admirar, portanto, que as pessoas passem as suas vidas com a estranha sensação de que não era bem aquilo que desejavam. Elas foram alguma coisa diferente dos seus sonhos, e esta traição as condenou à infelicidade. Só lhes resta então compreender a verdade das palavras de Paulo Leminski: “Ai daqueles que não morderam o sonho e de cuja loucura nem mesmo a morte os redimirá.”


Rubem Alves (Correio Popular, 13/08/1991)

terça-feira, 3 de setembro de 2013

A arte de saber ler



Ela me olhou e disse: "Encontrei um lindo poema de Fernando Pessoa". Fiquei contente, porque gosto muito de Fernando Pessoa. Aí ela disse o primeiro verso. Fiquei mais contente ainda, porque era um poema que eu conhecia. Ato contínuo, ela abriu o livro e começou a ler. Epa! Senti-me mal. As palavras estavam certas. Mas ela tropeçava, parava onde não devia, não tinha ritmo nem música. Não, aquilo não era Fernando Pessoa, embora as palavras fossem suas.
Senti o mesmo que já sentira em audições de alunos principiantes que, via de regra, são um sofrimento para os que ouvem, o maior desejo sendo que a música chegue ao fim e que a aflição termine. Percebi, então, que a arte de ler é exatamente igual à arte de tocar piano ou qualquer outro instrumento.
Como é que se aprende a gostar de piano? O gostar começa pelo ouvir. É preciso ouvir o piano bem tocado. Há dois tipos de pianistas. Alguns, raros, como Nelson Freire, já nascem com o piano dentro deles. Eles e o piano são uma coisa só. O piano é uma extensão dos seus corpos.
Outros, aos quais dou o nome de "pianeiros", são como eu, que me esforcei sem sucesso para ser pianista (consolo-me pensando que o mesmo aconteceu com Friedrich Nietzsche. Atreveu-se até mesmo a enviar algumas de suas composições ao famoso pianista Hans von Büllow, que as devolveu com o conselho de que ele  deveria se dedicar à filosofia).
Diferentemente dos pianistas, que nascem com o piano dentro do corpo, os "pianeiros" têm o piano do lado de fora. Esforçam-se por pôr o piano do lado de dentro, mas é inútil. As notas se aprendem, mas isso não é o bastante. Os dedos esbarram, erram, tropeçam, e aquilo que deveria ser uma experiência de prazer se transforma numa experiência de sofrimento não só para quem ouve mas também para quem toca.
Um pianista, quando toca, não pensa nas notas. A partitura já está dentro dele. Ele se encontra num estado de "possessão". Nem pensa na técnica. A técnica ficou para trás, é um problema resolvido. Ele simplesmente "surfa" sobre as teclas seguindo o movimento das ondas. Pois é precisamente assim que se aprende o gosto pela leitura: ouvindo-se o artista —o que lê— interpretar o texto.
Não estou usando a palavra "interpretar" no sentido comum de dizer o que o autor queria dizer, mas não conseguiu, coisa que se tenta fazer nas aulas de literatura (o que é que o autor queria dizer? Ele queria dizer o que disse. Se quisesse dizer uma outra coisa, ele teria escrito essa outra coisa). Estou usando "interpretar" no sentido artístico, teatral. O "intérprete" é o possuído. É ele que faz viver —seja a partitura musical silenciosa, seja o texto teatral ou poético, silencioso na imobilidade da escrita.
Disse William Shakespeare no segundo ato de Hamlet: "Não é incrível que um ator, por uma simples ficção, um sonho apaixonado, amolde tanto a sua alma à imaginação que todo se lhe transfigura o semblante, por completo o rosto lhe empalideça, lágrimas vertam dos seus olhos, suas palavras tremam, e inteiro o seu organismo se acomode a essa mesma ficção?". Tenho a impressão de que, se os jovens não gostam de ler, é porque não tiveram a experiência de ouvir a leitura feita por um possuído.
Uma lembrança feliz que tenho do meu irmão Murilo, já encantado, era que ele lia para mim, menino, livros de aventura: "Náufragos de Bornéo", com um enorme gorila na capa, "Prisioneiros dos Pampas", com dois homens lutando à faca na capa. Isso aconteceu há 63 anos, e não esqueci. Ainda posso ouvir a sua voz possuída pela emoção. É a experiência de ouvir que nos faz querer dominar a técnica da leitura para poder penetrar na emoção do texto.
Há de se dominar a técnica da leitura da mesma forma que se domina a técnica do piano. Acontece que o domínio da técnica é cansativo e freqüentemente aborrecido.
Antigamente, o aprendiz de piano tinha de gastar horas nos monótonos exercícios de mecanismo do Hannon. Mas mesmo os grandes pianistas que já dominaram a essência da técnica têm de gastar tempo e atenção debulhando as passagens complicadas que não podem ser pensadas ao ser tocadas. Todo pianista tem de dominar os estudos de Chopin, de dificuldades técnicas transcendentais, maravilhosos.
Mas só têm paciência para suportar o aborrecimento da técnica aqueles que foram fascinados pela beleza da música. Estuda-se a técnica por amor à interpretação, que é o evento orgiástico de possessão.
Por isso eu tenho sugerido a escolas e prefeituras que promovam "concertos de leitura" para seduzir os ouvintes à beleza da leitura. Não custam nada. Uma única coisa é necessária: o artista, o intérprete...
Um concerto de leitura poderia se organizar assim: primeira parte, poemas da Adélia Prado (é impossível não gostar dela...); segunda parte, "O Afogado Mais Lindo do Mundo", conto de Gabriel García Márquez; terceira parte, haicais de Bashô. Acho que todo mundo gostaria e sairia decidido a dominar a arte da leitura.

Rubem Alves



sexta-feira, 2 de agosto de 2013

A complicada arte de ver



 
Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões é uma alegria!"

Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica.

De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto"

Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas: Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".

Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.

William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado.

Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.

Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.

Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural.

'Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios', escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido.

Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho".

Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu:"Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".

Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram".

Vinícius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa garrafa, prato, facão era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".

A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas e ajustamos a nossa ação.

O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.

Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras.

Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".

Por isso porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...

Rubem Alves

sábado, 22 de dezembro de 2012

Tênis x frescobol



Depois de muito meditar sobre o assunto concluí que os casamentos são de dois tipos: há os casamentos do tipo tênis e há os casamentos do tipo frescobol. Os casamentos do tipo tênis são uma fonte de raiva e ressentimentos e terminam sempre mal. Os casamentos do tipo frescobol são uma fonte de alegria e têm a chance de ter vida longa. Explico-me. Para começar, uma afirmação de Nietzsche, com a qual concordo inteiramente. Dizia ele: “Ao pensar sobre a possibilidade do casamento cada um deveria se fazer a seguinte pergunta ‘Você crê que você seria capaz de conversar com prazer com esta pessoa, até a sua velhice?’ Tudo o mais no casamento é transitório, mas as relações que desafiam o tempo são aquelas construídas sobre a arte de conversar.” Xerazade sabia disso. Sabia que os casamentos baseados nos prazeres da cama são sempre decapitados pela manhã, terminam em separação, pois os prazeres do sexo se esgotam rapidamente, terminam na morte, como no filme O Império dos Sentidos. Por isso, quando o sexo já estava morto na cama, e o amor não mais se podia dizer através dele, ela o ressuscitava pela magia da palavra: começava uma longa conversa, conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites. O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música dos sons ou da palavra - é a sexualidade sob a forma da eternidade: é o amor que ressuscita sempre, depois de morrer. Há os carinhos que se fazem com o corpo e há os carinhos que se fazem com as palavras. E contrariamente ao que pensam os amantes inexperientes, fazer carinho com as palavras não é ficar repetindo o tempo todo: “Eu te amo, eu te amo...” Barthes advertia: “Passada a primeira confissão, ‘eu te amo’ não quer dizer mais nada”. É na conversa que o nosso verdadeiro corpo se mostra, não em sua nudez anatômica, mas em sua nudez poética. Recordo a sabedoria de Adélia Prado: “Erótica é a alma”. O tênis é um jogo feroz. O seu objetivo é derrotar o adversário. E a sua derrota se revela no seu erro: o outro foi incapaz de devolver a bola. Joga-se tênis para fazer o outro errar. O bom jogador é aquele que tem a exata noção do ponto fraco do seu adversário - e é justamente para aí que ele vai dirigir a sua cortada - palavra muito sugestiva, que indica o seu objetivo sádico, que é o de cortar, interromper, derrotar. O prazer do tênis se encontra, portanto, justamente no momento em que o jogo não pode mais continuar porque.o adversário foi colocado fora de jogo. Termina sempre com a alegria de um e a tristeza de outro. O frescobol se parece muito com o tênis: dois jogadores, duas raquetes e uma bola. Só que, para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca. Se a bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior esforço do mundo para devolvê-la gostosa, no lugar certo, para que o outro possa pegá-la. Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado. Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha. E ninguém fica feliz quando o outro erra - pois o que se deseja é que ninguém erre. O erro de um, no frescobol, é como ejaculação precoce: um acidente lamentável que não deveria ter acontecido, pois o gostoso mesmo é aquele ir e vir, ir e vir, ire vir... E o que errou pede desculpas, e o que provocou o erro se sente culpado. Mas não tem importância:começa-se de novo este delicioso jogo em que ninguém marca pontos... A bola: são as nossas fantasias, irrealidades, sonhos sob a forma de palavras. Conversar é ficar batendo sonho pra lá, sonho pra cá... Mas há casais que jogam com os sonhos como se jogassem tênis. Ficam à espera do momento certo para a cortada. Camus anotava no seu diário pequenos fragmentos para os livros que pretendia escrever. Um deles, que se encontra nos Primeiros Cadernos, é sobre este jogo de tênis: “Cena: o marido, a mulher, a galeria. O primeiro tem valor e gosta de brilhar. A segunda guarda silêncio, mas, com pequenas frases secas, destrói todos os propósitos do caro esposo. Desta forma marca constantemente a sua superioridade. O outro domina-se, mas sofre uma humilhação e é assim que nasce o ódio. Exemplo: com um sorriso: ‘Não se faça mais estúpido do que é, meu amigo’. A galeria torce e sorri pouco à vontade. Ele cora, aproxima-se dela, beija-lhe a mão suspirando: ‘Tens razão, minha querida.’ A situação está salva e o ódio vai aumentando.” Tênis é assim: recebe-se o sonho do outro para destruí-lo, arrebentá-lo, como bolha de sabão... O que se busca é ter razão e o que se ganha é o distanciamento. Aqui, quem ganha sempre perde. Já no frescobol é diferente: o sonho do outro é um brinquedo que deve ser preservado, pois se sabe que, se é sonho, é coisa delicada, do coração. O bom ouvinte é aquele que, ao falar, abre espaços para que as bolhas de sabão do outro voem livres. Bola vai, bola vem - cresce o amor... Ninguém ganha para que os dois ganhem. E se deseja então que o outro viva sempre, eternamente, para que o jogo nunca tenha fim...

Rubem Alves (Correio Popular, 1991 ou 1992)

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Roy Tabora



A alma é um cenário.
Por vezes, ela é como uma manhã brilhante e fresca,
inundada de alegria.
Por vezes ela é como um pôr do sol...
triste e nostálgico.


Rubem Alves

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Os Ipês estão floridos



Thoureau, que amava muito a natureza, escreveu que se um homem resolver viver nas matas para gozar o mistério da vida selvagem será considerado pessoa estranha ou talvez louca. Se, ao contrário, se puser a cortar as árvores para transformá-las em dinheiro (muito embora vá deixando a desolação por onde passe), será tido como homem trabalhador e responsável. Lembro-me disso todas as manhãs, pois na minha caminhada para o trabalho passo por um ipê rosa florido. A beleza é tão grande que fico ali parado, olhando sua copa contra o céu azul. E imagino que os outros, encerrados em suas pequenas bolhas metálicas rodantes, em busca de um destino, devem imaginar que não funciono bem.

Gosto dos ipês de forma especial. Questão de afinidade. Alegram-se em fazer as coisas ao contrário. As outras árvores fazem o que é normal - abrem-se para o amor na primavera, quando o clima é ameno e o verão está prá chegar, com seu calor e chuvas. O ipê faz amor justo quando o inverno chega, e a sua copa florida é uma despudorada e triunfante exaltação do cio.

Conheci os ipês na minha infância, em Minas, os pastos queimados pela geada, a poeira subindo das estradas secas e, no meio dos campos, os ipês solitários, colorindo o inverno de alegria. O tempo era diferente, moroso como as vacas que voltam em fim de tarde. As coisas andavam ao ritmo da própria vida, nos seus giros naturais. Mas agora, de repente, esta árvore de outros espaços irrompe no meio do asfalto, interrompe o tempo urbano de semáforos, buzinas e ultrapassagens, e eu tenho de parar ante esta aparição do outro mundo. Como aconteceu com Moisés, que pastoreava os rebanhos do sogro, e viu um arbusto pegando fogo, sem se consumir. Ao se aproximar para ver melhor, ouviu uma voz que dizia: “Tira as sandálias dos teus pés, pois a terra em que pisas é santa”. Acho que não foi sarça ardente. Deve ter sido um ipê florido. De fato, algo arde, sem queimar, não na árvore, mas na alma. E concluo que o escritor sagrado estava certo. Também eu acho sacrilégio chegar perto e pisar as milhares de flores caídas, tão lindas, agonizantes, tendo já cumprido sua vocação de amor.

Mas sei que o espaço urbano pensa diferente. O que é milagre para alguns é canseira para a vassoura de outros. Melhor o cimento limpo que a copa colorida. Lembro-me de um pé de ipê, indefeso, com sua casca cortada a toda volta. Meses depois, estava morto, seco. Mas não importa. O ritual de amor no inverno espalhará sementes pela terra e a vida triunfará sobre a morte, o verde arrebentará o asfalto. A despeito de toda a nossa loucura, os ipês continuam fiéis à sua vocação de beleza, e nos esperarão tranqüilos. Ainda haverá de vir um tempo em que os homens e a natureza conviverão em harmonia.

Agora são os ipês rosa. Depois virão os amarelos. Por fim, os brancos.

Cada um dizendo uma coisa diferente. Três partes de uma brincadeira musical, que certamente teria sido composta por Vivaldi ou Mozart, se tivessem vivido aqui.

Primeiro movimento, “Ipê Rosa”, andante tranqüilo, como o coral de Bach que descreve as ovelhas pastando. Ouve-se o som rural do órgão.


Segundo movimento, “Ipê Amarelo”, rondo vivace, em que os metais, cores parecidas com as do ipê, fazem soar a exuberância da vida.

Terceiro movimento, “Ipê Branco”, moderato, em que os violoncelos falam de paz e esperança. Penso que os ipês são uma metáfora do que poderíamos ser. Seria bom se pudéssemos nos abrir para o amor no inverno...

Corra o risco de ser considerado louco: vá visitar os ipês. E diga-lhes que eles tornam o seu mundo mais belo. Eles nem o ouvirão e não responderão. Estão muito ocupados com o tempo de amar, que é tão curto. Quem sabe acontecerá com você o que aconteceu com Moisés, e sentirá que ali resplandece a glória divina...


Rubem Alves