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sexta-feira, 18 de novembro de 2022

 



Secreto como um seixo, e oferecido

Com a branda ternura que o envolve.

É este o corpo de luz anunciada .

Quantos anos viveste, em sombra ausente,

Geraram longamente a hora, o gesto

Que da noite do seixo, alma da pedra

Lança o grito solar como um protesto 


José Saramago, Provavelmente alegria

quarta-feira, 12 de outubro de 2022



Nesta rasa pobreza que ficou 

De jardins floridos, de searas

Como espelhos do sol ao meio-dia,

Quem esperaria que nascessem nardos

E que as romãs abertas mostrariam

Corações lapidados e auroras?

Mas todo o tempo é tempo começado,

E a terra adivinhada, transparente,

Cobre a fonte serena e misteriosa

Que torna a sede ardente.


José Saramago in provavelmente alegria

quarta-feira, 21 de setembro de 2022


Onde os olhos se fecham; onde o tempo 

Faz ressoar o búzio do silêncio; 

Onde o claro desmaio se dissolve 

No aroma dos nardos e do sexo; 

Onde os membros são laços, e as bocas 

Não respiram, arquejam violentas; 

Onde os dedos retraçam novas órbitas 

Pelo espaço dos corpos e dos astros; 

Onde a breve agonia; onde na pele 

Se confunde o suor; onde o amor.


José Saramago, in provavelmete alegria

quarta-feira, 29 de junho de 2022



"Onde os olhos se fecham; onde o tempo 

Faz ressoar o búzio do silêncio; 

Onde o claro desmaio se dissolve 

No aroma dos nardos e do sexo; 

Onde os membros são laços, e as bocas 

Não respiram, arquejam violentas; 

Onde os dedos retraçam novas órbitas 

Pelo espaço dos corpos e dos astros; 

Onde a breve agonia; onde na pele 

Se confunde o suor; onde o amor.”


 José Saramago, in provavelmete alegria

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Ensaio sobre a cegueira


José Saramago foto Nuno Ferreira Santos

O edifício à porta do qual a limusina se encontra é um banco. O carro trouxe o presidente do conselho de administração à reunião plenária semanal, a primeira que se realizava desde que se tinha declarado a epidemia de mal-branco, e não houve tempo depois para levá-lo à garagem subterrânea, onde esperaria o fim dos debates. O condutor cegou quando o presidente ia a entrar no edifício, pela porta principal, como gostava, ainda deu um grito, estamos a falar do condutor, mas ele, estamos a falar do presidente, já não o ouviu. Aliás, a reunião não seria tão plenária quanto a sua designação presumia, nos últimos dias tinham cegado alguns dos membros do conselho. O presidente não chegou a abrir a sessão, cuja ordem de trabalhos previa precisamente a discussão e tomada de medidas para o caso de virem a cegar todos os membros do conselho de administração efetivos e suplentes, e nem sequer pôde entrar na sala de reuniões porque quando o ascensor o levava ao décimo quinto andar, exatamente entre o nono e o décimo, faltou a corrente eléctrica, para nunca mais. E como uma desgraça nunca vem só, no mesmo instante cegaram os eletricistas que se ocupavam da manutenção da rede interna de energia e consequentemente também do gerador, modelo antigo, não automático, que andava há tempos para ser substituído, o resultado, como antes se disse, foi ter ficado o ascensor parado entre o nono e o décimo andares. O presidente viu cegar o ascensorista que o acompanhava, ele próprio perdeu a vista uma hora depois, e como a energia não voltou e os casos de cegueira dentro do banco se multiplicaram nesse dia, o mais certo é que os dois ainda lá estejam, mortos, escusado será dizê-lo, fechados num túmulo de aço, e por isso felizmente a salvo de cães devoradores.

Não havendo testemunhas, e se as houve não consta que tenham sido chamadas a estes autos para nos relatarem o que se passou, é compreensível que alguém pergunte como foi possível saber que estas coisas sucederam assim e não doutra maneira, a resposta a dar é a de que todos os relatos são como os da criação do universo, ninguém lá esteve, ninguém assistiu, mas toda a gente sabe o que aconteceu. A mulher do médico tinha perguntado, que se terá passado com os bancos, não era que lhe importasse muito, apesar de ter confiado as suas economias a um deles, fez a pergunta por simples curiosidade, apenas porque o pensou, nada mais, nem esperava que lhe respondessem, por exemplo, assim, No princípio, Deus criou os céus e a terra, a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas, em vez disto o que sucedeu foi o velho da venda preta dizer enquanto seguiam avenida abaixo, Pelo que pude saber quando ainda tinha um olho para ver no princípio foi o diabo, as pessoas. com o medo de ficarem cegas e desmunidas, correram aos bancos para retirarem os seus dinheiros, achavam que deviam acautelar o futuro, e isto há que compreendê-lo, se alguém sabe que não vai poder trabalhar mais, o único remédio, pelo tempo que elas durarem, é recorrer às economias feitas no tempo da prosperidade e das previsões de largo alcance, supondo que a pessoa tivera de fato a prudência de ir acumulando as poupanças grão a grão, o resultado da fulminante corrida foi terem falido em vinte e quatro horas alguns dos principais bancos, o governo interveio a pedir que se acalmassem os ânimos e a apelar para a consciência cívica dos cidadãos, terminando a proclamação com a declaração solene de que assumiria todas as responsabilidades e deveres decorrentes da situação de calamidade pública que se vivia, mas o parche não conseguiu aliviar a crise, não só porque as pessoas continuavam a cegar, mas também porque as que ainda viam só pensavam em salvar o seu rico dinheiro.

José Saramago em "Ensaio sobre a cegueira"

domingo, 3 de janeiro de 2016

Diz tu por mim, silêncio

Ennio Montariello


Não era hoje um dia de palavras, 
Intenções de poemas ou discursos, 
Nem qualquer dos caminhos era nosso. 
A definir-nos bastava um ato só, 
E já que nas palavras me não salvo, 
Diz tu por mim, silêncio, o que não posso. 


José Saramago 
In Os Poemas Possíveis

sábado, 26 de dezembro de 2015

A solidão




Ora, a solidão, ainda vai ter de aprender muito para saber o que isso é, Sempre vivi só, Também eu, mas a solidão não é viver só, a solidão é não sermos capazes de fazer companhia a alguém ou a alguma coisa que está dentro de nós, a solidão não é uma árvore no meio duma planície onde só ela esteja, é a distância entre a seiva profunda e a casca, entre a folha e a raiz, Você está a tresvariar, tudo quanto menciona está ligado entre si, aí não há nenhuma solidão, Deixemos a árvore, olhe para dentro de si e veja a solidão, Como disse o outro, solitário andar por entre a gente, Pior do que isso, solitário estar onde nem nós próprios estamos.

José Saramago, in 'O Ano da Morte de Ricardo Reis'

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Ainda agora é manhã



Ainda agora é manhã, e já os ventos
Adormecem no céu. Pouco a pouco,
A névoa antiga e baça se levanta.
Ruivamente, o sol abre uma estrada
Na prata nublada destas águas.
É manhã, meu amor, a noite foge,
E no mel dos teus olhos escurece
O amargo das sombras e das mágoas.

José Saramago

sábado, 10 de agosto de 2013

Inventário

Richard S. Johnson 


De que sedas se fizeram os teus dedos,
De que marfim as tuas coxas lisas,
De que alturas chegou ao teu andar
A graça de camurça com que pisas.
De que amoras maduras se espremeu
O gosto acidulado do teu seio,
De que Índias o bambu da tua cinta,
O oiro dos teus olhos, donde veio.
A que balanço de onda vais buscar
A linha serpentina dos quadris,
Onde nasce a frescura dessa fonte
Que sai da tua boca quando ris.
De que bosques marinhos se soltou
A folha de coral das tuas portas,
Que perfume te anuncia quando vens
Cercar-me de desejo a horas mortas.


José Saramago

Ainda agora é manhã

Mark Arian


Ainda agora é manhã, e já os ventos
Adormecem no céu. Pouco a pouco,
A névoa antiga e baça se levanta.
Ruivamente, o sol abre uma estrada
Na prata nublada destas águas.
É manhã, meu amor, a noite foge,
E no mel dos teus olhos escurece
O amargo das sombras e das mágoas.


José Saramago
in: Provavelmente Alegria


segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

O primeiro poema



Água, brancura e luz da madrugada,
E nardos orvalhados, olhos tardos,
E regressos de longe, lentos, vagos,
De espiral que se expande, ou nebulosa.
Assim diria que o mundo se criou:
Gesto liso das mãos do universo
Com perfumes e auras que anunciam,
Noutras mãos de quimera, outro verso.


José Saramago, in Provavelmente Alegria 

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Intimidade

gulyás lászlo

No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,

Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,

No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não querer, final, intimidade.

José Saramago

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Ensaio sobre a cegueira



Eu acho que vamos morrer todos, é uma questão de tempo, Morrer sempre foi uma questão de tempo, disse o médico, Mas morrer só porque se está cego, não deve haver pior maneira de morrer,
Morremos de doenças, de acidentes, de acasos, E agora morreremos também porque estamos cegos, quero dizer, morreremos de cegueira e de cancro, de cegueira e de tuberculose, de cegueira e de sida, de cegueira e de enfarte, as doenças poderão ser diferentes de pessoa para pessoa, mas o que verdadeiramente agora nos está a matar é a cegueira, Não somos imortais, não podemos escapar ... morte, mas ao menos devíamos não ser cegos, disse a mulher do médico, Como, se esta cegueira é concreta e real. disse o médico, Não tenho a certeza, disse a mulher, Nem eu. disse a rapariga dos óculos escuros.

*

No caminho para a casa da rapariga dos óculos escuros atravessaram uma grande praça onde havia grupos de cegos que escutavam os discursos doutros cegos, ... primeira vista nem uns nem outros pareciam cegos, os que falavam viravam inflamadamente a cara para os que ouviam, os que ouviam viravam atentamente a cara para os que falavam. Proclamava-se ali o fim do mundo, a salvação penitencial, a visão do sétimo dia. o advento do anjo, a colisão cósmica, a extinção do sol, o espírito da tribo, a seiva da mandrágora, o unguento do tigre, a virtude do signo, a discipline do vento, o perfume da lua, a reivindicação da treva, o poder do esconjuro, a marca do calcanhar, a crucificação da rosa, a pureza da linfa, o sangue do gato preto, a dormência da sombra, a revolta das marés, a lógica da antropofagia, a castração sem dor, a tatuagem divina, a cegueira voluntária, o pensamento convexo, o côncavo, o piano, o vertical, o inclinado, o concentrado, o disperso, o fugido, a ablação das cordas vocais, a morte da palavra, Aqui não há ninguém a falar de organização, disse a mulher do médico ao marido, Talvez a organização seja noutra praça, respondeu ele. Continuaram a andar. Um pouco adiante a mulher do médico disse, Há mais mortos no caminho do que é costume, É a nossa resistência que esát a chegar ao fim, o tempo acaba-se, água esgota-se, as doenças crescem, a comida torna-se veneno, tu o disseste antes, lembrou o médico, Quem sabe se entre estes mortos não estarão os meus pais, disse a rapariga dos óculos escuros, e eu aqui passando ao lado deles, e não os vejo, É um velho costume da humanidade, esse de passar ao lado dos mortos e não os ver, disse a mulher do médico.

*

Atravessaram uma praça onde havia grupos de cegos que se entretinham a escutar os discursos doutros cegos, ... primeira vista não pareciam cegos nem uns nem outros, os que falavam viravam inflamadamente a cara para os que ouviam, os que ouviam viravam atentamente a cara para os que falavam. Proclamavam-se ali os princípios fundamentais dos grandes sistemas organizados, a propriedade privada, o livre cambio, o mercado, a bolsa, a taxação fiscal, o juro, a apropriação, a desapropriação, a produção, a distribuição, o consumo, o abastecimento e o desabastecimento, a riqueza e a pobreza, a comunicação, a repressão e a delinquência, as lotarias, os edifícios prisionais, o código penal, o código civil, o código de estradas, o dicionário, a lista de telefones, as redes de prostituição, as fábricas de material de guerra, as forças armadas, os cemitérios, a polícia, o contrabando, as drogas, os tráficos ilícitos permitidos, a investigação farmacêutica, o jogo, o preço das curas e dos funerais, a justiça, o empréstimo, os partidos políticos, as eleições, os parlamentos, os governos, o pensamento convexo, o côncavo, o plano, o vertical, o inclinado, o concentrado, o disperso, o fugido, a ablação das cordas vocais, a morte da palavra. Aqui fala-se de organização, disse a mulher do médico ao marido, Já reparei, respondeu ele, e calou-se.

*

O presidente não chegou a abrir a sessão, cuja ordem de trabalhos previa precisamente a discussão e tomada de medidas para o caso de virem a cegar todos os membros do conselho de administração efetivos e suplentes, e nem sequer pôde entrar na sala de reuniões porque quando o ascensor o levava ao décimo quinto andar, exatamente entre o nono e o décimo, faltou a corrente elétrica, para nunca mais. E como uma desgraça nunca vem só, no mesmo instante cegaram os eletricistas que se ocupavam da manutenção da rede interna de energia e consequentemente também do gerador, modelo antigo, não automático, que andava há tempos para ser substituído, o resultado, como antes se disse, foi ter ficado o ascensor parado entre o nono e o décimo andares. O presidente viu cegar o ascensorista que o acompanhava, ele próprio perdeu a vista uma hora depois, e como a energia não voltou e os casos de cegueira dentro do banco se multiplicaram nesse dia, o mais certo é que os dois ainda lá estejam, mortos, escusado será dizê-lo, fechados num túmulo de aço, e por isso felizmente a salvo de cães devoradores.
Não havendo testemunhas, e se as houve não consta que tenham sido chamadas a estes autos para nos relatarem o que se passou, é compreensível que alguém pergunte como foi possível saber que estas coisas sucederam assim e não doutra maneira, a resposta a dar é a de que todos os relatos são como os da criação do universo, ninguém lá esteve, ninguém assistiu, mas toda a gente sabe o que aconteceu. A mulher do médico tinha perguntado, que se terá passado com os bancos, não era que lhe importasse muito, apesar de ter confiado as suas economias a um deles, fez a pergunta por simples curiosidade, apenas porque o pensou, nada mais, nem esperava que lhe respondessem, por exemplo, assim, No princípio, Deus criou os céus e a terra, a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas, em vez disto o que sucedeu foi o velho da venda preta dizer enquanto seguiam avenida abaixo, Pelo que pude saber quando ainda tinha um olho para ver no princípio foi o diabo, as pessoas. com o medo de ficarem cegas e desmunidas, correram aos bancos para retirarem os seus dinheiros, achavam que deviam acautelar o futuro, e isto há que compreendê-lo, se alguém sabe que não vai poder trabalhar mais, o único remédio, pelo tempo que elas durarem, é recorrer às economias feitas no tempo da prosperidade e das previsões de largo alcance, supondo que a pessoa tivera de facto a prudência de ir acumulando as poupanças grão a grão, o resultado da fulminante corrida foi terem falido em vinte e quatro horas alguns dos principais bancos, o governo interveio a pedir que se acalmassem os ânimos e a apelar para a consciência cívica dos cidadãos, terminando a proclamação com a declaração solene de que assumiria todas as responsabilidades e deveres decorrentes da situação de calamidade pública que se vivia, mas o parche não conseguiu aliviar a crise, não só porque as pessoas continuavam a cegar, mas também porque as que ainda viam só pensavam em salvar o seu rico dinheiro.

*

Levantou a cabeça para as colunas esguias, para as altas abóbadas, a comprovar a segurança e a estabilidade da circulação sanguínea, depois disse, Já me sinto bem, mas naquele mesmo instante pensou que tinha enlouquecido, ou que desaparecida a vertigem ficara a sofrer de alucinações, não podia ser verdade o que os olhos lhe mostravam, aquele homem pregado na cruz com uma venda branca a tapar-lhe os olhos, e ao lado uma mulher com o coração trespassado por sete espadas e os olhos também tapados por uma venda branca, e não eram só este homem e esta mulher que assim estavam, todas as imagens da igreja tinham os olhos vendados, as esculturas com um pano branco atado ao redor da cabeça, as pinturas com uma grossa pincelada de tinta branca, e estava além uma mulher a ensinar a filha a ler, e as duas tinham os olhos tapados, e um homem com um livro aberto onde se sentava um menino pequeno, e os dois tinham os olhos tapados, e um velho de barbas compridas, com três chaves na mão, e tinha os olhos tapados, e outro homem com o corpo cravejado de flechas, e tinha os olhos tapados, e uma mulher com uma lanterna acesa, e tinha os olhos tapados, e um homem com feridas nas mãos e nos pés e no peito, e tinha os olhos tapados, e outro homem com um leão, e os dois tinham os olhos tapados, e outro homem com um cordeiro, e os dois tinham os olhos tapados, e outro homem com uma guia, e os dois tinham os olhos tapados, e outro homem com uma lança dominando um homem caído, chavelhudo e com pés de bode, e os dois tinham os olhos tapados, e outro homem com uma balança, e tinha os olhos tapados, e um velho calvo segurando um lírio branco, e tinha os olhos tapados, e outro velho apoiado a uma espada desembainhada, e tinha os olhos tapados, e uma mulher com uma pomba, e as duas tinham os olhos tapados, e um homem com dois corvos, e os três tinham os olhos tapados, só havia uma mulher que não tinha os olhos tapados porque já os levava arrancados numa bandeja de prata. A mulher do médico disse para o marido, Não me acreditar se eu te disser o que tenho diante de mim, todas as imagens da igreja estão com os dois olhos vendados, Que estranho, por que ser, Como hei-de eu saber, pode ter sido obra de algum desesperado da fé quando compreendeu que teria de cegar como os outros, pode ter sido o próprio sacerdote daqui, talvez tenha pensado justamente que uma vez que os cegos não poderiam ver as imagens, também as imagens deveriam deixar de ver os cegos, As imagens não veem, Engano teu, as imagens veem com os olhos que as veem, só agora a cegueira é para todos, Tu continuas a ver, Cada vez irei vendo menos, mesmo que não perca a vista tornar-me-ei mais e mais cega cada dia porque não terei quem me veja, Se foi o padre quem tapou os olhos das imagens, É só uma ideia minha, E a única hipótese que tem um verdadeiro sentido, é a única que pode dar alguma grandeza a esta nossa miséria, imagino esse homem a entrar aqui vindo do mundo dos cegos, aonde depois teria de regressar para cegar também, imagino as portas fechadas, a igreja deserta, o silêncio, imagino as estátuas, as pinturas, vejo-o ir de uma para outra, a subir aos altares e a atar os panos, com dois nós, para que não deslacem e caiam, a as sentar duas mãos de tinta nas pinturas para tornar mais espessa a noite branca em que entraram, esse padre deve ter sido o maior sacrílego de todos os tempos e de todas as religiões, o mais justo, o mais radicalmente humano, o que veio aqui para declarar finalmente que Deus não merece ver.
(,,,)
A conversa estava a ser ouvida pelos cegos que se encontravam mais perto, e escusado seria dizer que não foi preciso esperar pela confirmação do juramento para que a notícia começasse a girar, a passar de boca em boca, num murmúrio que aos poucos foi mudando de tom, primeiro incrédulo, depois inquieto, outra vez incrédulo, o mal foi haver no ajuntamento umas quantas pessoas supersticiosas e imaginativas, a ideia de que as sagradas imagens estavam cegas, de que os seus misericordiosos ou sofredores olhares não contemplavam mais que a sua própria cegueira, tornou-se subitamente insuportável, foi o mesmo que terem vindo dizer-lhes que estavam rodeados de mortos-vivos, bastou ter-se ouvido um grito, e depois outro, e outro, logo o medo fez levantar toda a gente, o panico empurrou-os para a porta, repetiu-se aqui o que já se sabe, como o pânico é muito mais rápido que as pernas que o têm de levar, os pés do fugitivo acabam por enrolar-se na corrida, muito mais se é cego, e ei-lo de repente no chão, o panico diz-lhe Levanta-te, corre, que te vêm matar, bem o quisera ele, mas já outros correram e caíram também, é preciso ser-se dotado de muito bom coração para não desatar a rir diante deste grotesco emaranhado de corpos ... procura de braços para libertar-se e de pés para escapar.

*

Que tens, perguntou-lhe a mulher, e ele respondeu estupidamente, sem abrir os olhos, Estou cego, como se essa fosse a última novidade do mundo, ela abraçou-o com carinho, Deixa , cegos estamos nós todos, que lhe havemos de fazer, Vi tudo escuro, julguei que tinha adormecido, e afinal não, estou acordado, É o que deverias fazer, dormir, não pensar nisso. O conselho aborreceu-o, ali estava um homem angustiado como só ele sabia, e a sua mulher não tinha mais nada para lhe dizer senão que fosse dormir. Irritado, já com a resposta azeda a sair-lhe da boca, abriu os olhos e viu. Viu e gritou, Vejo. O primeiro grito ainda foi o da incredulidade, mas com o segundo, e o terceiro, e quantos mais, foi crescendo a evidência, Vejo, vejo, abraçou-se ... mulher como louco, depois correu para a mulher do médico e abraçou-a também, era a primeira vez que a via, mas sabia quem ela era, e o médico, e a rapariga dos óculos escuros, e o velho da venda preta, com este não poderia haver confusão, e o rapazinho estrábico, a mulher ia atrás dele, não o queria largar, e ele interrompia os abraços para abraçá-la a ela, agora voltara ao médico, Vejo, vejo, senhor doutor, não o tratou por tu como se tinha tornado quase regra nesta comunidade, explique, quem puder, a razão da súbita diferença, e o médico perguntava, Vê mesmo bem, como via antes, não há vestígio de branco, Nada de nada, até me parece que vejo ainda melhor do que via, e olhe que não é dizer pouco, nunca usei óculos. Então o médico disse o que todos estavam a pensar, mas que não ousavam pronunciar em voz alta, É possível que esta cegueira tenha chegado ao fim, é possível que comecemos todos a recuperar a vista, a estas palavras a mulher do médico começou  chorar, deveria estar contente e chorava, que singulares reações têm as pessoas, claro que estava contente, meu Deus, se é tão fácil de compreender, chorava porque se lhe tinha esgotado de golpe toda a resistência mental, era como uma criancinha que tivesse acabado de nascer e este choro fosse o seu primeiro e ainda inconsciente vagido. O cão das lágrimas veio para ela, este sabe sempre quando o necessitam, por isso a mulher do médico se agarrou a ele, não é que não continuasse a amar o seu marido, não é que não quisesse bem a todos quantos se encontravam ali, mas naquele momento foi tão intensa a sua impressão de solidão, tão insuportável, que lhe pareceu que só poderia ser mitigada na estranha sede com que o cão lhe bebia as lágrimas.

*

O segundo a recuperar a vista, ia adiantada a noite, e já candeia, no fim do azeite, bruxuleava, foi a rapariga dos óculos escuros. Tinha estado com os  olhos abertos sempre, como se por eles é que a visão tivesse de entrar, e não renascer de dentro, de repente disse, Parece-me que estou a ver, era melhor ser prudente, nem todos os casos são iguais, costuma-se até dizer que não  eram cegueiras, mas cegos, quando a experiência dos tempos não tem feito outra coisas que dizer-nos que não há cegos, mas cegueiras. Aqui já são três os que veem, um mais far maio ria, mas ainda que a felicidade de voltar a ver não viesse a contemplar os restantes, a vida para estes passaria a ser muito mais fácil, não a agonia que foi até hoje, veja-se o estado a que aquela mulher chegou, está como uma corda que se partiu, como uma mola que não aguentou mais o esforço a que esteve continuamente sujeita. Talvez por isso foi a ela que a rapariga dos óculos escuros abraçou em primeiro lugar, então não soube o cão das l grimas a qual delas acudir. porque tanto chorava uma como a outra. O segundo abraço foi para o velho da venda preta, agora iremos saber o que verdadeiramente valem palavras, comoveu-nos tanto no outro dia aquele diálogo de que saiu o formoso compromisso de viverem juntos estes dois, mas a situação mudou, a rapa riga dos óculos escuros tem diante de si um homem velho que ela j pode ver, acabaram-se as idealizações emocionais, as falsas harmonias na ilha deserta, rugas são rugas, calvas são calvas, não h diferença entre uma pala preta e um olho cego, é o que ele lhe está a dizer por outros termos. Olha -me bem, sou eu a pessoa com quem disseste que irias viver, e ela respondeu, Conheço-te, és a pessoa com quem estou a viver, afinal h palavras que ainda valem mais do que tinham querido parecer, e este abraço tanto como elas.

*

Pela janela aberta, apesar da altura a que estava o andar, entrava o rumor das vozes alteradas, as ruas 309 deviam estar cheias de gente, a multidão a gritar uma só palavra. Vejo, diziam-na os que j tinham recuperado a vista, diziam-na os que de repente a recuperavam, Vejo, vejo, em verdade começa a parecer uma história doutro mundo aquela em que se disse, Estou cego. O rapazinho estrábico murmurava, devia de estar metido num sonho, talvez estivesse a ver a mãe, a perguntar-lhe, Vês-me, me vês. A mulher do médico perguntou, E eles, e o médico disse, Este, provavelmente, estar curado quando acordar, com os outros não ser diferente, o mais certo é que estejam agora mesmo a recuperar a vista, quem vai apanhar um susto, coitado, é o nosso homem da venda preta, Porquê, Por causa da catarata, depois de todo o tempo que passou desde que o examinei, deve estar como uma nuvem opaca, Vai ficar cego, Não, logo que a vida estiver normalizada, que tudo comece a funcionar, opero-o, ser uma questão de semanas, Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga 0 que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem.
A mulher do médico levantou-se e foi ... janela. Olhou para baixo, para a rua coberta de lixo, para as pessoas que gritavam e cantavam. Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o todo branco, Chegou a minha vez, pensou. O medo súbito fê-la baixar os olhos. A cidade ainda ali estava.

Ensaio sobre a cegueira – José Saramago



sexta-feira, 17 de dezembro de 2010


Sempre estamos mais ou menos cegos, 
sobretudo, para o fundamental.

José Saramago

sábado, 11 de dezembro de 2010

Viagem a Portugal


(...) A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o visitante sentou na areia da praia e disse: “Não há mais o que ver”, saiba que não era assim. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.



José Saramago

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Foto de Svetlana Melik-Nubarova

Recorto a minha sombra da parede,
Dou-lhe corda, calor e movimento,
Duas demãos de cor e sofrimento,
Quanto baste de fome, o som, a sede.

Fico de parte a vê-la repetir
Os gestos e palavras que me são,
Figura desdobrada e confusão
De verdade vestida de mentir.

Sobre a vida dos outros se projeta
Este jogo das duas dimensões
Em que nada se aprova com razões
Tal um arco puxado sem a seta.

Outra vida virá que me absolva
Da meia humanidade que perdura
Nesta sombra privada de espessura,
Na espessura sem forma que a resolva.


José Saramago

domingo, 17 de outubro de 2010

Ergo uma rosa

Laszlo Gulyas 


Ergo uma rosa, e tudo se ilumina
Como a lua não faz nem o sol pode:
Cobra de luz ardente e enroscada
Ou vento de cabelos que sacode.

Ergo uma rosa, e grito a quantas aves
O céu pontuam de ninhos e de cantos,
Bato no chão a ordem que decide
A união dos demos e dos santos.

Ergo uma rosa, um corpo e um destino
Contra o frio da noite que se atreve,
E da seiva da rosa e do meu sangue
Construo perenidade em vida breve.

Ergo uma rosa, e deixo, e abandono
Quanto me dói de mágoas e assombros.
Ergo uma rosa, sim, e ouço a vida
Neste cantar das aves nos meus ombros

José Saramago

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Demissão

Arantza SESTAYO


Este mundo não presta,venha outro.
Já por tempo de mais aqui andamos
A fingir de razões suficientes.
Sejamos cães do cão:sabemos tudo
De morder os mais fracos, se mandamos,
E de lamber as mãos se dependentes.


José Saramago

terça-feira, 27 de julho de 2010

Poema à boca fechada





Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça
Calado estou, calado ficarei
Pois que a língua que falo é de outra raça

Palavras consumidas se acumulam
Se represam, cisterna de águas mortas
Ácidas mágoas em limos transformadas
Vaza de fundo em que há raízes tortas

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas
Nem só animais bóiam, mortos, medos
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos

Só direi
Crispadamente recolhido e mudo
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo

José Saramago

sábado, 24 de julho de 2010


Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.

José Saramago