domingo, 9 de dezembro de 2012

Jack Kerouac, Anjos da Desolação

Parte um - A desolação solitária

(..)Argh, e eu lembro dos doces dias em casa que eu não apreciei enquanto eu podia – naquela época, quando eu tinha 15, 16 anos, tarde era sinônimo de biscoitos Ritz Brothers e creme de amendoim e leite, na velha mesa redonda na cozinha, e os meus problemas de xadrez ou partidas de beisebol autoinventadas, já que o sol alaranjado de Lowell em outubro caía oblíquo pela varanda e pelas cortinas da cozinha e desenhava um retângulo preguiçoso cheio de poeira e nele o meu gato ficava lambendo as patas com uma língua de tigre e dentes de agulha, todo sofrido e acometido pelo pó, meu Deus – então agora com as minhas roupas sujas e rasgadas eu sou um mendigo na Cordilheira das Cascatas e tudo o que eu tenho em termos de cozinha é esse fogão doido e surrado com rachaduras de ferrugem na chaminé – sim, com aniagem velha enfiada entre o cano e o teto para manter os ratos longe à noite – dias longínquos quando eu podia simplesmente ir e dar um beijo ou na minha mãe ou no meu pai e dizer “Eu gosto de você porque um dia eu vou ser um velho mendigo desolado e vou acabar sozinho e triste” – Ó Hozomeen, as rochas cintilam no sol poente, os parapeitos da fortaleza impenetrável erguem-se como Shakespeare no mundo e por quilômetros ao redor nada conhece o nome de Shakespeare, do Hozomeen ou o meu –

Fim da tarde há muito tempo em casa, e até em tempos mais recentes na Carolina do Norte quando, para lembrar da infância, comi biscoitos Ritz e creme de amendoim e tomei leite às quatro, e joguei o jogo de beisebol na minha escrivaninha, e tinha escolares com sapatos riscados indo para casa que nem eu, esfomeados (e eu faria para eles Bananasplits especiais do Jack, só seis míseros meses atrás) – Mas aqui no Desolation o vento rodopia, desolado de 39 música, chacoalhando as vigas do teto, progenitando a noite – As sombras morceguísticas gigantes das nuvens pairam acima da montanha.

Logo o escuro, logo os pratos limpos, a refeição comida, esperando por setembro, esperando pela descida de retorno ao mundo.

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Enquanto isso os pores do sol são bobos loucos cor de laranja surtando na escuridão, e ao longe no Sul em direção aos pretendidos braços amáveis de señoritas, pilhas rosadas de neve esperam aos pés do mundo, em cidades com raios de prata generalizados – o lago é uma panela dura, cinza, azul, esperando nas profundezas enevoadas para quando eu andar no bote de Phil – A Jack Mountain como sempre recebe o galardão da nuvenzinha na base metida, com mil campos de futebol americano nevados e confusos e rosados, aquele abominável homem de neve inimaginável petrificado de cócoras na serra – O Golden Horn ao longe ainda está dourado no Sudeste cinza – A silhueta monstruosa da Sourdough sobranceia o lago – Nuvens mal-humoradas escurecem para fazer bordas de fogo na forja onde a noite é martelada, montanhas enlouquecidas marcham em direção ao pôr do sol como cavalheiros bêbados em Messina quando Ursula era bela, eu poderia jurar que o Hozomeen ia se mexer se a gente desse um jeito de convencer ele mas ele passa a noite comigo e logo quando as estrelas choverem nos campos nevados ele vai estar rosa de orgulho e todo preto e destrumbicado ao Norte onde (logo acima dele toda noite) a Estrela Polar reluz em tons de laranja-pastel, verde-pastel, laranja-férreo, azul-férreo, com a azurita indicando augúrios constelativos da maquiagem dela que você poderia pesar na balança do mundo dourado –

O vento, o vento –

E lá está a minha pobre escrivaninha humana esforçada onde eu passo tanto tempo sentado durante o dia, virado para o Sul, os papéis e os lápis e a xícara de café com galhinhos de abeto alpino e uma estranha orquídea das alturas murchável em um dia – meu chiclete Beechnut, minha bolsinha de tabaco, pós, pobres revistas pulp que eu tenho que ler, vista para o Sul para todas aquelas majestades nevadas – A espera é longa.


Jack Kerouac, Anjos da Desolação