quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Jack Kerouac, Anjos da desolação

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Hozomeen, Hozomeen, mais bela montanha que eu já vi, como um tigre às vezes listrado, riachos banhados em sol e escarpas ensombrecidas que rabiscam linhas sinuosas à Luz do Dia, sulcos verticais e elevações e rachaduras Bu!, bum, magnífica montanha Prudente, ninguém nunca ouviu falar a respeito, e ela só tem 2.400 metros de altura, mas que horror quando eu vi aquele vazio pela primeira vez na primeira noite da minha estada no Desolation Peak acordando de nevoeiros densos de 20 horas para uma noite salpicada de estrelas assomada pelo Hozomeen com os dois pontos agudos dele, bem no preto da minha janela – o Vazio, toda vez que eu pensava no Vazio eu via o Hozomeen e entendia – por mais de 70 dias eu tive que olhar para ele.

É, porque eu pensei, em junho, que eu pegaria carona até o alto e chegaria no Skagit Valley no noroeste de Washington para o meu trabalho de vigia de incêndio “Quando eu chegar no topo do Desolation Peak e todo mundo for embora de mula e eu ficar sozinho eu vou ficar cara a cara com Deus ou Tathagata e descobrir de uma vez por todas qual é o significado de toda essa existência todo esse sofrimento e de todo esse vaivém inútil” mas em vez disso eu fiquei cara a cara comigo mesmo, sem álcool, sem drogas, sem nenhuma chance de fingir... mas cara a cara comigo Odioso Duluoz e muitas vezes eu pensei em morrer, suspirar de tédio ou pular da montanha, mas os dias, não as horas se arrastavam e eu não tinha coragem para um salto desses, eu tinha que esperar e ver a cara da realidade – e até que enfim ela apareceu naquela tarde de 8 de agosto enquanto eu estava zanzando nas alturas do jardim alpino na estradinha amarela que eu tanto havia pisoteado, com a minha lamparina a óleo inclinada quase até o chão dentro da cabana com janelas para todos os lados e um telhado de pagode e para-raios, enfim apareceu para mim, depois até das lágrimas, do ranger de dentes, e do assassinato de um rato e da tentativa de homicídio de um outro, algo que eu nunca tinha feito na minha vida (matar animais mesmo roedores), e veio nessas palavras: O vazio não é afetado por altos e baixos, meu Deus olha só para o Hozomeen, por acaso ele está preocupado ou chorando? Por acaso ele se curva diante das tempestades ou rosna quando o sol brilha ou suspira na sonolência do dia que acaba? Por acaso ele sorri? Ele não nasceu de tumultos pirados e chuvas de fogo e agora não é o Hozomeen e nada mais? Por que eu deveria ser doce ou amargo se ele não é nenhum dos dois? – Por que eu não posso ser como o Hozomeen e ó clichê ó velho clichê grisalho da mente burguesa “aceite a vida como ela é” –
Foi aquele biógrafo alcoólatra, W. E. Woodward, que disse, “Não há nada na vida afora o viver” – Mas Deus, como estou de saco cheio! Mas o Hozomeen também está de saco cheio? E eu estou de saco cheio de palavras e de explicações. O Hozomeen também?


Aurora boreal
no Hozomeen –
O vazio silencia

(...)


– Minha canção devoradora a parte descarrilhada levando tudo numa broa – parta você também pode voar e verdejar – céu lua sal arrancado nas marés da noite chega mais, balança no ombro gramado, rola a pedra do Buda por cima do celeiro enevoado rosa dividido do Pacífico – Ó pobre pobre pobre esperança humana, ó mofado quebrando a ti espelho a ti sacudiu patna watalaka – e muito mais – Ping.


Jack Kerouac, Anjos da desolação
Tradução de Guilherme da Silva Braga