sábado, 21 de maio de 2011

Jack Kerouac, Viajante solitário

Você já viu um enorme cargueiro deslizar pelas águas da baía em uma tarde de sonhos e enquanto estende o olhar ao longo de todo o convés de ferro em busca de pessoas, marinheiros, fantasmas que devem estar manobrando esse navio onírico que singra tão suavemente pelas águas do porto com sua proa de aço e o focinho apontando para os quatro Ventos do Mundo e não vê nada, ninguém, vivalma?
E lá segue ele em plena luz do dia, triste casco desolado latejando tenuemente, rangendo e rugindo incompreensivelmente na casa das máquinas, resfolegando, movendo suavemente sua gigantesca hélice traseira submersa, abrindo caminho em direção ao alto-mar, eternidade, estrelas do louco sextante do imediato na abóbada rósea da noite manzanilhana caem longe da costa desse triste mundo da beira-mar – em direção aos cais de outras baías de pescadores, mistérios, noites opiáceas nos reinos da vigia, estreitas ruas principais do Curdo. – De repente, meu Deus, você se dá conta de que estava olhando para uns pequenos pontos brancos imóveis no convés, entre o convés principal e os alojamentos, e lá estão eles... diversos tripulantes de casaco branco, eles estavam o tempo inteiro recostados, imóveis como peças fixas do próprio navio nas escotilhas do corredor da cozinha . – É depois do jantar, o resto da tripulação ronca bem alimentada em beliches de sonecas intermitentes – eles mesmos grandes vigilantes do mundo enquanto deslizam em direção ao Tempo, nenhum vigia do navio pode evitar ser ludibriado e perscrutado muito antes de perceber que eles são humanos, são a única coisa viva à vista.

Jack Kerouac, Viajante solitário