Escuta! Escuta! Os cães ladram
Os mendigos estão chegando na cidade;
Uns esfarrapados, outros em trapos
E alguns em becas de veludo
A Era do Jato crucifica o vagabundo, como pode ele saltar em um cargueiro a jato? Será que Louella Parsons é simpática para com os vagabundos? Henry Miller permitiria que os vagabundos nadassem em sua piscina. – E Shirley Tempole, para quem o vagabundo deu o Pássaro Azul? Será que as jovens Temples não possuem mais pássaros azuis?
Hoje em dia o vagabundo precisa se esconder, e há cada vez menos lugares para isso, os tiras estão à sua procura, chamando todos os carros, chamando todos os carros, vagabundos avistados nas imediações de Bird-in-Hand – Jean Valjean curvado sob o peso do saco de candelabros, gritanto para a a rapaziada, “Está aqui a alma de vocês, a alma de vocês!”. Beethoven era um vagabundo que se ajoelhava e escutava a luz, um vagabundo surdo que não podia ouvir as lamúrias dos outros vagabundos. – Einstein, o vagabundo com o suéter roto de gola alta de lã de ovelha; Bernard Baruch, o vagabundo desiludido sentado em um banco de parque esperando John Henry, esperando alguém muito louco, esperando o épico persa.
Sergei Esenin fou um grande vagabundo que se aproveitou da revolução russa para cair fora e beber “suco de batata” pelas aldeias atrasadas da Rússia (seu poema mais famoso se chama Confissões de um vadio), no momento em que estavam derrubando o czar, ele declarou: “neste exato momento estou com vontade de mijar ao luar pela janela”. É o vagabundo sem ego que algum dia dará à luz uma criança. – Li Po foi um vagabundo poderoso. – O ego é o maior dos vagabundos – viva o ego vagabundo! Cujo monumento algum dia será uma caneca de café de folha-de-flandres dourada.
Jesus era um estranho vagabundo que caminhava sobre a água.
Buda também foi vagabundo que não prestava atenção nos outros vagabundos.
O chefe Rain-In-The-Face* (literalmente, chuva-no-rosto), mais estranho ainda. –
W.C. Fields – seu nariz vermelho explica o significado do mundo triplo, Grande Veículo, Veículo Menos, Veículo de Diamante.
O VAGABUNDO NASCE DO ORGULHO, não tem nada a ver com uma comunidade, mas consigo próprio e com os outros vagabundos e talvez com um cão. – Vagabundos pelos aterros da linha férrea à noite fervendo imensas canecas de café. – Altiva era a maneira como o vagabundo cruzava por uma cidade, entrando pelas portas dos fundos, onde tortas esfriavam nos parapeitos das janelas, o vagabundo era um leproso mental, não precisava esmolar para comer, donas-de-casa possantes e ossudas do Oeste conheciam sua barba tilitante e sua toga esfarrapada, venha e pegue! Mas orgulho é orgulho, ainda assim, às vezes havia algum aborrecimento quando ela anunciava venha e pegue, e hordas de vagabundos surgiam, dez ou vinte de uma só vez, e ficava um bocado difícil alimentar todos eles; às vezes os vagabundos não tinham consideração, mas não sempre, só que, quando isso acontecia, eles perdiam o orgulho, se tornavam vadios – migravam para a Bowery em Nova York, para a Scollay Square em Boston, para a Pratt Street em Baltimore, para a Madison Street em Chicago, para a 12th Street em Kansas City, para a Larimer Street em Denver, para a South Main Street em Los Angeles, para a Third Street no centro de San Francisco, para a Skid Road em Seatle (todas elas “areas pestilentas”).
(...)
Os vagabundos da América que ainda conseguem viajar de maneira saudável e mantêm em boa forma, podem se esconder em cemitérios e beber vinho em bosques de árvores fúnebres e mijar e dormir em cima de pedaços de papelão e quebrar garrafas nas tumbas e não dar a menor bola nem se aterrorizar com os mortos, conseguem se manter sérios e bem-humorados na noite vasculhada por policiais e até se divertir deixando restos de seu piquenique entre as lajes cinzentas da Morte Imaginada, amaldiçoando o que julgam ser dias duros, mas Oh, o pobre vagabundo dos bairros sórdidos! Lá está ele dormindo em uma soleira, com as costas contra a parede, a cabeça caída, com a palma da mão direita para cima, como se esperando receber algo da noite, e a outra mão pendente, forte, firme, como as mãos de Joe Louis, patético, tornado trágico por circunstâncias inevitáveis – a mão como a de um mendigo, suspensa no ar como os dedos formando uma sugestão que revela o que ele deseja e merece receber, moldando o gesto da esmola, o polegar quase tocando na ponta dos dedos, como se na ponta da língua ele estivesse prestes a dizer dormindo e com esse gesto o que não pode dizer acordado: Por que me tiraram isso, por que não posso respirar na paz e suavidade da minha própria cama e sou obrigado a esperar aqui, nesses trapos anônimos e repugnantes, nesse portal humilhante, sentado à espera de que as rodas da cidade se movimentem?”, e mais: “Não quero estender minha mão, mas durante o sono estou desamparado, não posso endireitá-la, aproveitem a oportunidade para ver minha súplica, estou sozinho, estou doente, estou morrendo – vejam minha mão virada, desvendem o segredo de meu coração humano, me dêem o que preciso, me dêem a mão, me levem para as montanhas de esmeralda além da cidadade, me conduzam a um lugar seguro, sejam bondosos, bacanas, sorriam – estou estou cansado demais de todo o resto, estou farto, desisto, entrego os pontos, quero ir para casa, me leve para casa, Oh irmãos da noite – me leve para casa, me tranque em segurança, me levae para onde tudo seja paz e amizade, para a vida familiar, minha mãe, meu pai, minha irmã, minha mulher e você meu irmão, você meu amigo – mas não há esperança, nenhuma esperança, nenhuma esperança, eu acordo e seria capaz de dar um milhão de dólares para estar na minha própria cama – Oh Senhor, salve-me!”. Em estradas perversas, atrás de tanques de gasolina onde cães assassinos rosnam por trás de cercas de aramae farpado, viaturas policiais surgem subitamente como carros em fuga de um crime mais secreto, mais nocivo do que as palavras possas exprimir.
As florestas estão cheias de guardas.
Jack Kerouac, Viajante Solitário