- Dançando, eu havia apagado a luz, de modo que, no escuro, dançando, beijei-a – foi estonteante, ao ritmo da dança, o começo, o começo de sempre de amantes beijando-se em pé numa sala escura a sala sendo da mulher e o homem cheio de planos – terminando depois em danças loucas ela no meu colo ou na minha coxa enquanto eu a jogava para o lado para trás ela equilibrando-se pendurada no meu pescoço os braços dela que viriam a aquecer-me tanto a mim que naquele instante estava só quente –
E logo soube que ela não acreditava em nada e não tinha tido ninguém para acreditar em nada – mãe negra morreu de parto dela – pai meio índio cherokee desconhecido um vagabundo que caminhava jogando os sapatos rasgados através das planícies cinzentas no outono com um sombrero preto e cachecol cor-de-rosa de cócoras em frente à fogueira assando salsichas jogando fora na escuridão latas vazias de vinho Tokay “ôôô Calexico!”
Rapidamente mergulhei, mordi, apaguei a luz, escondi meu rosto envergonhado, fiz amor com ela tremendamente por causa da carência de amor há um ano quase e a necessidade me empurravam para o chão – nossos pequenos acordos no escuro, coisas que no duro não deviam jamais ser ditas – pois foi ela que depois me disse “Os homens são tão malucos, querem a essência, a mulher é a essência, lá está ela bem na mão deles mas eles saem correndo construindo grandes estruturas abstratas”. - “Você quer dizer que eles deviam era ficar em casa com a essência, ou seja passar o dia inteiro deitados à sombra de uma árvore com a mulher mas Mardou isso é uma velha ideia minha, uma ideia linda, eu nunca ouvi ninguém exprimir ela melhor e nem sonhei” – “Em vez disso eles saem por aí correndo e ficam achando que a mulher é um prêmio e não um ser humano, ora cara eu posso estar metida nessa merda também mas eu não tenho nada a ver com isso” (naquele tom doce e culto e hip da nova geração). – E assim tendo agora a essência do amor dela eu construo grandes estruturas verbais, e ao fazer isso traio a essência – contando histórias fofocas pendurando na corda do mundo esses lençóis íntimos - e os dela, os nossos, nos dois meses inteiros de nosso amor (eu pensei) só lavados uma vez sendo ela uma linda subterrânea que passava os dias sonhando que ia levá-los à lavadeira mas de repente já estamos no fim de uma tarde fria e é tarde demais e os lençóis estão cinzentos, lindos para mim – porque macios. Mas não posso nessa confissão trair o mais íntimo, as coxas, o que as coxas contêm – e no entanto escrever para quê? – as coxas contêm a essência – e no entanto eu sei que devo ficar lá e de lá eu vim e pra lá um dia hei de voltar, mas assim mesmo tenho que sair correndo por aí e construir construir – para nada – poemas de Baudelaire –
Nunca nem uma vez ela usou a palavra amor, bem naquele primeiro momento depois da nossa dança louca quando a carreguei ainda no meu colo solta até a cama e lentamente pousei-a, deixei-me encontrá-la, o que ela adorou, e tendo vivido toda a sua vida sem sexo (fora a primeira conjugalidade aos quinze anos de idade e que por algum motivo a consumiu e depois nunca mais) (Ah a dor de contar esses segredos que é tão importante contar, senão para quê escrever ou viver) agora “casus in eventu est” mas gostando de me perder a cabeça levemente egomaniacamente como se após umas poucas cervejas. –Deitado pois no escuro, macio, cheio de tentáculos, à espera, até o sono chegar – assim de manhã acordo do grito dos pesadelos de cerveja e vejo a meu lado a negra de lábios entreabertos dormindo, e pedacinhos de enchimentos de travesseiros nos cabelos negros dela, sinto quase repulsa, percebo que animal eu sou por sentir algo semelhante a repulsa, uva corpinho docenu sobre lençóis inquietos da turbulência da véspera, os barulhos da Heavenly Lane, penetrando de fininho pelas janelas cinzentas, um dia de juízo final cinzento de agosto então eu tenho vontade de sair de repente para “voltar pro meu trabalho” a quimera de não quimera porém a consciência organizada e progressiva do trabalho e dever que eu havia criado e desenvolvido em mim mesmo em casa (em South San Francisco?) humilde embora seja, os confortos de lá também, a solidão que eu queria e agora não suporto. – Levantei e comecei a me vestir, pedir desculpas, ela deitada como uma mumiazinha no lençol virando os olhos castanhos sérios para mim, como olhos observadores de índio na floresta, com cílios castanhos se erguendo de repente com cilios negros para revelar súbitos olhos fantasticamente brancos com o íris castanho reluzente no centro, a seriedade do rosto dela acentuada pelo toque levemente oriental como de um nariz de lutador de Box e as bochechas ligeiramente inchadas de sono, como o rosto de uma linda máscara de pórfiro encontrada há muito e asteca. – “Mas por que você tem que sair tão depressa, como se quase histérico ou preocupado?” - “Bem eu tenho que ir eu tenho trabalho a fazer e tenho que acordar direito – ressaca – “ e ela mal acordada ainda, e aí eu saio de fininho com umas poucas palavras quando ela quase adormece de novo e eu passo uns dias sem vê-la -
O machão adolescente tendo feito sua conquista mal se preocupa em casa com a perda do amor da donzela conquistada, a linda moça dos cílios negros - não é confissão. - Foi numa manhã que eu dormi no Adam que eu a vi de novo, eu estava para me levantar, bater umas coisas à máquina e tomar café na cozinha o dia inteiro porque naquela época trabalho, trabalho era no que eu mais pensava, amor não - não a dor que me impele a escrever isto mesmo sem eu querer, a dor, que não será apagada pelo ato de escrever e sim acentuada, mas que será redimida, e se ao menos fosse uma dor digna que pudesse ser colocada em outro lugar que não essa sarjeta negra de vergonha e perda e loucura barulhenta na noite e pobre suor na minha testa - Adam levantando para ir ao trabalho, eu também, me lavando, mastigando conversa fiada, quando o telefone tocou e era Mardou, que estava indo para a terapia, mas precisava de um trocado para o ônibus, morava logo ali perto, "Tudo bem pinta aqui mas rápido que eu estou indo pro trabalho ou então deixo o dinheiro com o Leo" - "Ah ele está aí?" - "Está." - na minha mente pensamentos machos de transar de novo e de realmente curtir vê-la de novo de repente, como se eu achasse que ela não havia gostado da primeira noite (sem razão nenhuma para achar isso, antes do sexo ela havia deitado no meu peito comendo a fritada chinesa e me curtindo com os olhos brilhantes de alegria) (que hoje à noite meu inimigo devora?) ideia que me faz largar minha testa quente usada numa mão cansada - ó amor, fugiste de mim - ou será que telepatias se cruzam empaticamente na noite? - Cacoetes que surgem para que o amante frio de lascívia mereça o sangrar quente do espírito - assim ela veio, às oito da manhã, Adam foi pra o trabalho e nós ficamos sozinhos e imediatamente ela enroscou-se no meu colo, por convite meu, na poltrona grande e começamos a falar, ela começou a contar a história dela e eu liguei (no dia cinzento) a lâmpada vermelha fraca e assim começou nosso verdadeiro amor -.
Jack Kerouac, Os subterrâneos