Para onde vão os trens meu pai?
Para Mahal, Tamí, para Camirí, espaços
no mapa, e depois o pai ria: também
pra lugar algum meu filho,tu podes
ir e ainda que se mova o trem
tu não te moves de ti
TADEU
Porque um enorme fervor se aguça em mim, eu Tadeu, de joelhos te peço que
OUVE, Rute, que me escutes: como se um rio grosso encharcasse os juncos e eles mergulhassem no espírito das águas, como se tudo, luta repouso dentro de mim se entranhasse, como se a pedra fosse minha própria alma viva, assim minha vida, olho espiralado olhando o mundo, volúpia de estar vivo, ouve Rute o que se passa quando os meus olhos se abrem na manhã de gozo, (de desgosto, se repenso o mundo) muito bem, Rute, esse olho me olhando agora é bem o teu, já sei, te preocupas se fiz bem o discurso, claro, me saí como sempre, as palavras estufadas, continuo no meu alto posto se é isso o que te importa, oligopólio-impacto-dinamizado, até comedores de excedentes eu usei, a água mineral perlada à minha frente
Tadeu, a empresa é um corpo que precisa um dirigente, vão notar a estria vermelha no teu olho, mandaste o Balanço para os jornais? falavas na manhã
Na sôfrega manhã de mim, no sol da minha hora, sol da minha manhã, Vida, que esse fio de aço nunca se estilhace, liga-me ao teu nervo, OUVE , Rute, nunca fui esse que pretendes, nem nunca posso ser marido ou presidente de qualquer coisa, agora aos cinquenta as cordas que me ligavam à tua vida apodreceram, sou novo, olha ao redor e entende que nada dentro da casa é carne de mim, apenas as minhas pedras, aquelas de ágata, e a minha mesa e a enorme gaveta, os papéis os versos os desenhos, apenas essas coisas fazem parte do meu corpo novo
Dispenso o motorista? podemos estudar à noite teu primeiro relatório de política empresarial, tenho a minha parte nisso, por exemplo a taxa de crescimento, eu te dizia, Tadeu, que você minimizava a espantosa habilidade dos sócios fundadores, olha para mim, não é nada fácil, o meu amor de sempre, esta esperança: um dia sim Tadeu vai me tocar de novo, não é justo, o que há com as coisas? não são as mesmas? escolhemos os quadros a casa as jarras de prata, eu vivi inteira para o teu momento, vou buscar as compressas, quem sabe um colírio, pare de esfregar os olhos, não está bem limpa a vidraça, não te assustes, vê-se mesmo embaçado o lá de fora
Que horas são Rute?
Nove. Dispenso o motorista?
Subo as escadas, o corrimão gelado, os degraus largos, volto-me. Te amei. As falanges pequeninas me alisando a cara, mas tudo se pulveriza, pulverizar a empresa, a cara de todos bufolamente parda, mas senhor diretor doutor presidente excelência agora que chegamos à maximização do lucro, o lucro nervo-núcleo da empresa, excelentíssimo senhor Tadeu , um momento, alguma coisa aqui de beber para as nossas coronárias, o senhor disse que vai viajar durante um tempo? Estilete de luz pousando no Ativo e no Passivo, dez horas da manhã reunião da diretoria, as caras ainda pardacentas, as mandíbulas caídas, alguns balbucios, eu estufando de vida e querendo discursar pausadamente comecei: Senhores faz-se necessário e premente que continuem a existir sem o meu corpo presente, não estou aqui, na verdade nunca estive aqui, jamais tornarei a estar aqui. Sorriram. Pensam que repito bizarrias matinais de executivos. O rapaz dos copos e da água mineral também sorriu. Rute agora também sorri. Caminho, a ponta dos pés na passadeira da escada, vou subindo desenho sinuoso e colorido, quantas vezes subindo ponta dos pés tocando os caixilhos dourados, o corredor marmóreo o banco de convento
claro, Rute, evidente que é uma peça rara, e essa estupenda samambaia, o coração pulsando, uma extrassístole derrepente
Tadeu, tome beladenal, eu sendo teu médico e teu amigo faço uma sugestão: pare de olhar a vida com esse jeito assombrado, o que é que andas vendo que o pessoal não vê? A porta do meu quarto. A primeira vez que nos deitamos ali, Rute, (tínhamos um comovente passado?) um comovido presente, Tadeu junto de ti, homem convencional, a Causa acima de tudo. O que é a Causa? A empresa. Um passional da ideia. Que ideia? A empresa.
Comovidos comoventes todos esse anos, o suco de laranja as torradas o sol batendo na imensa vidraça, Tadeu é reflexão postura, tiro os sapatos, caminho até o terraço do quarto, que coisa é essa em mim que aspira esse fulgor da noite, que coisa é mais que demasia em mim? Já vi outras vezes a mesma lua e no entanto isso vivo amarelo brilhoso redondo sobre a casa é
outra lua como se fosse esforço de ser Tadeu suspenso sobre a casa. O que há com as coisas? Não são as mesmas? Não, Rute, uma coisa em mim, atenta, vê mais luz, de início é como se fosse uma névoa correndo, por isso é que te pergunto sempre, limparam as vidraças? limparam os porta-retratos? Sépia sobre as nossas caras, véu devagar se diluindo, ainda não te vejo, o crepe do teu vestido pousando no meu braço, ventava, a flor diminuta dos limoeiros salpicava os sapatos, pedimos a alguém que passava
por favor, pode nos tirar um retrato? é que a tarde está linda, é só apertar aqui. Rias porque tudo era cheiro e transparência e o meu toque era vermelho sobre a tua vida, factível de repente perguntaste, o que é factível, Tadeu? Por quê? Porque vi nos teus papéis assim: factível sim uma pirâmide solar sustentando a vida. Que pode ser feito, Rute. Não há mais névoa agora, há fatos e retratos, quando pensavas que víamos juntos as mesmas coisas não era verdade, que os fatos as coisas os retratos o verde o branco coalhado da flor dos limoeiros estava ali à nossa frente e viamos tudo isso com o mesmo olho, ah, nada nada, não víamos, teu limite é distante do meu, as descobertas não serão jamais as mesmas, sofro de sofreguidão, vejo através, difícil dizer aos outros que estou sofrendo de vida, que nunca mais vou morrer porque me incorporei à vida, não é que não te ame mais, mas devo ir, direi assim?
Hilda Hilst, Tu não te moves de ti