quarta-feira, 30 de maio de 2012

As pessoas jamais se apaixonariam se não tivessem
 ouvido falar do amor. 
François de La Rochefoucauld . 


. E você pode se perguntar, bom, como foi que eu vim
 parar aqui? 
E você pode se dizer, 
Essa não é a minha linda casa. 
E você pode se dizer, 
Essa não é a minha linda esposa. 

Talking Heads 


 Para começar, olha quanto livro. Lá estavam os seus romances de Edith Wharton, organizados não por título mas por data de publicação; lá estava o conjunto completo de Henry James da Modern Library, presente do pai dela no seu aniversário de vinte e um anos; lá estavam os de capa mole e com orelhas de burro que ela teve que ler em disciplinas da faculdade, um monte de Dickens, uma pitada de Trollope, além de boas doses de Austen, George Eliot, e das temíveis irmãs Brontë. Lá estava uma montanha de volumes pretos e brancos da New Directions, quase tudo poesia de gente como H. D. ou Denise Levertov. Lá estavam os romances de Colette que ela lia às escondidas. Lá estava a primeira edição de Couples, que era da mãe dela, que Madeleine tinha sondado sub‑repticiamente na sexta série e que agora estava usando para dar apoio textual à sua monografia de conclusão de curso sobre o romance e o casamento. Lá estava, em resumo, uma biblioteca de tamanho médio, mas ainda portátil, que representava basicamente tudo que Madeleine tinha lido na universidade, uma coleção de textos, aparentemente escolhidos de maneira aleatória, cujo foco lentamente se fechava, como um teste de personalidade, um teste sofisticado em que você não conseguisse trapacear ao perceber as implicações das questões e em que finalmente você ficava tão perdida que o seu único recurso fosse responder a verdade pura e simples. E aí você ficava esperando o resultado, torcendo por “Artística”, ou “Passional”, pensando que podia aceitar “Sensível”, temendo secretamente “Narcisista” e “Caseira”, mas recebendo finalmente um veredito de dois gumes que lhe causava sensações diferentes dependendo do dia, da hora, ou do cara que por acaso você estivesse namorando: “Romântica Incurável”.

 Eram esses os livros no quarto em que Madeleine estava deitada, com um travesseiro em cima da cabeça, na manhã da sua formatura na universidade. Ela tinha lido cada um deles, muitas vezes relido, não raro sublinhando trechos, mas isso não lhe servia de nada agora. Madeleine estava tentando ignorar o quarto e tudo que estava nele. Estava torcendo para se deixar cair de novo no oblívio em que tinha ficado bem aconchegada pelas últimas três horas. Qualquer nível mais alto de consciência a forçaria a encarar certos fatos desagradáveis: por exemplo, a quantidade e a variedade de álcool que tinha ingerido na noite anterior e o fato de que tinha ido dormir sem tirar as lentes. Pensar nesse tipo de detalhe evocaria, por sua vez, os motivos de ela ter bebido tanto assim para começo de conversa, o que ela definitivamente não queria fazer. Então Madeleine ajeitou o travesseiro, bloqueando a luz do começo da manhã, e tentou pegar no sono de novo.

 Mas não adiantou. Porque bem naquela hora, na outra ponta do apartamento, a campainha começou a tocar.

 Começo de junho, Providence, Rhode Island, o sol no céu já há quase duas horas, iluminando a baía clara e as chaminés da Narragansett Electric, nascente como o sol do selo de Brown University gravado em todas as flâmulas e bandeiras desfraldadas sobre o campus, um sol de rosto sagaz, que representava o saber. Mas este sol — o que estava sobre Providence — estava saindo na frente do metafórico, porque os fundadores da universidade, com seu pessimismo batista, tinham escolhido representar a luz do saber amortalhada por nuvens, indicando que a ignorância ainda não tinha sido eliminada do reino dos homens, enquanto o sol de verdade estava naquele exato momento abrindo caminho à força por entre a cobertura de nuvens, soltando raios lascados de luz lá de cima e dando esperança aos esquadrões de pais, que tinham passado o fim de semana inteiro encharcados e gelados, de que o clima atípico não fosse estragar o dia de festa. Por todo o College Hill, nos jardins geométricos das mansões georgianas, os jardins com cheiro de magnólia das vitorianas, sobre calçadas de tijolos que margeavam grades negras de metal como as de uma tirinha de Charles Addams ou de um conto de Lovecraft; na frente dos estúdios da Rhode Island School of Design, onde um estudante de pintura, que passara a noite inteira acordado trabalhando, amplificava aos berros sua Patti Smith; reluzindo nos instrumentos (tuba e trompete, respectivamente) de dois dos membros da banda marcial de Brown que tinham chegado cedo ao lugar marcado e estavam olhando em volta nervosos, perguntando‑se onde é que estavam os outros; iluminando as ruelas de pedras que desciam a colina para o rio poluído, o sol brilhava em cada maçaneta de latão, cada asa de inseto, cada folha de grama. E, afinada com a luz que subitamente jorrava, como a arma que dá a largada de alguma atividade, a campainha do apartamento de quarto andar de Madeleine começou, clamorosamente, insistentemente, a tocar.

 A onda chegava até ela menos como som que como sensação, um choque elétrico que lhe corria espinha acima. Em um mesmo gesto Madeleine arrancou o travesseiro da cabeça e sentou na cama. Ela sabia quem estava tocando o interfone. Eram os seus pais. Ela tinha aceitado encontrar Alton e Phyllida para o café da manhã às sete e meia. Tinha combinado com eles dois meses atrás, em abril, e agora aqui estavam eles, na hora marcada, à sua maneira ansiosa, com que ela podia contar. O fato de que Alton e Phyllida tinham vindo de carro lá de Nova Jersey para ver a formatura dela, de que não estavam aqui hoje para comemorar apenas o sucesso dela, mas o deles como pais, não tinha em si nada de errado ou inesperado. O problema era que Madeleine, pela primeira vez na vida, não queria participar disso. Ela não estava com orgulho de si própria. Não estava a fim de comemorar. Tinha perdido a crença na relevância do dia e do que o dia representava.

 Ela pensou em não atender. Mas sabia que se não atendesse uma das suas colegas de quarto ia atender, e aí ela ia ter que explicar onde tinha ido parar ontem à noite, e com quem. Portanto, Madeleine escorregou da cama e relutantemente se pôs de pé.

 Por um momento pareceu dar certo, aquilo de ficar de pé. Sua cabeça parecia curiosamente leve, como que esvaziada. Mas aí o sangue, drenando‑se do crânio como se de uma ampulheta, encontrou um gargalo, e a parte de trás da cabeça explodiu de dor. No meio dessa pancada, como o núcleo furioso de que ela emanava, irrompeu de novo o interfone.

 Ela saiu do quarto e foi tropeçando descalça até o interfone da entrada, batendo no botão FALAR para calar a campainha.
 “Oi?”
 “O que aconteceu? Você não escutou o interfone?” Era a voz de Alton, grave e peremptória como sempre, apesar de estar saindo de um alto‑falante minúsculo.
 “Desculpa”, Madeleine disse. “Eu estava no chuveiro.”
 “Até parece. Será que dava para você deixar a gente entrar?”
 Madeleine não queria. Ela precisava se lavar antes.
 “Eu já estou descendo.”

 Dessa vez ela segurou demais o botão FALAR, cortando a resposta de Alton. Ela apertou de novo e disse: “Papai?”. Mas enquanto estava falando Alton também devia estar, porque quando ela apertou OUVIR só veio estática.

 Madeleine aproveitou essa pausa na comunicação para apoiar a cabeça no caixilho da porta. A madeira era uma sensação fresca e boa. Veio‑lhe a ideia de que, se pudesse deixar o rosto apertado contra a madeira pacificante, podia conseguir curar a dor de cabeça, e se pudesse deixar a testa contra o caixilho pelo resto do dia, de alguma maneira conseguindo ainda sair do apartamento, podia até conseguir aguentar tomar café com os pais, marchar no desfile de formatura, pegar um diploma e se formar.

 Ela ergueu o rosto e apertou FALAR de novo.

 “Papai?” 
Mas foi a voz de Phyllida que respondeu. “Maddy? O que está acontecendo? Abra para nós.”
 “As minhas amigas ainda estão dormindo. Eu vou descer. Não toquem mais.”
 “Nós queremos ver o seu apartamento!”
 “Agora não. Eu vou descer. Não toquem.”

 Ela tirou a mão dos botões e se afastou, olhando fixamente para o interfone como que para ver se ele tinha coragem de abrir a boca. Quando ele não abriu, ela voltou pelo corredor. Estava chegando ao banheiro quando a sua colega Abby emergiu, fechando o caminho. Ela bocejou, passando a mão pelo cabelo imenso, e aí, percebendo Madeleine, sorriu cúmplice.
 “Então”, Abby disse, “onde é que você foi se esconder ontem de noite?”
 “Os meus pais estão aqui”, Madeleine explicou. “Eu tenho que ir tomar café.”
 “Anda, me conta.”
 “Não tem nada pra contar. Eu estou atrasada.”
 “Mas como é que você está com a mesma roupa, então?”
 Em vez de responder, Madeleine baixou os olhos e se viu. Dez horas antes, quando tinha pegado o vestidinho preto Betsey Johnson emprestado com Olivia, Madeleine achou que tinha ficado bem nele. Mas agora o vestido parecia quente e grudento, o grande cinto de couro lembrava um artefato sadomasô e tinha uma mancha perto da barra que ela não queria identificar.

 Abby, enquanto isso, tinha batido na porta de Olivia e entrado. “O coração partido da Maddy já era”, ela disse. “Acorda! Você tem que ver isso aqui.”

 O caminho para o banheiro estava livre. A necessidade que Madeleine sentia de um banho era radical, quase patológica. No mínimo ela precisava escovar os dentes. Mas a voz de Olivia agora já era audível. Logo Madeleine teria duas colegas a interrogando. Havia o risco de que os seus pais começassem a tocar a campainha de novo a qualquer momento. Tentando fazer o mínimo de barulho, ela foi avançando pelo corredor aos poucos. Enfiou os pés em um par de mocassins que tinham ficado na porta, esmagando o calcanhar dos sapatos enquanto se equilibrava, e escapou para o corredor externo.

Jeffrey Eugenides, A trama do casamento
tradução de Caetano W. Galindo
Créditos: Blog Companhia das Letras