sábado, 26 de maio de 2012

Corpo de Terra

Death be not pround, though some have called thee 
Mighty and dreadfull, for, thou art no soe, 
for those, whom thou think'st thou dost overthrow, 
Die not, poore death, nor yet canst thou kill me. 

 John Donne



I

Chaga de sol, rosácea ardente 
Aqueles linhos de sangue, o peito 
Mais profundo, aberto, extenso, 
Toda a delicadez do poeta 
Flui 
Exangue 
Num círculo de dor. Assim te lembro.

 

II

 Dorme o pastor. E sobre ele a pedra. 
E dentro dele, no coração, no ventre
A primeira libélula. Dorme 
Recente de raízes, o poeta.


 

III

 No seu corpo de terra, dorme o inocente. 
Cantou a solidão, a salamandra 
E um cavalo e um cavaleiro de barro 
Carmesim. E teve amor ao medo e à centelha 
Que o fez cantar assim.



IV

Dorme o profeta. E se não escuta o vento
Ouve na minha boca o seu Ofício de treva.
Em aflição, em amor eu te celebro
E na tua mão fechada está o meu grito:
O que esperaste da minha boca



V

Dorme o cantor: No dia de vossa ira
Lembrai-vos, Senhor, do sal e do carvão
Nas minas. E alguém há de calar os algozes
Do tempo, e há de nascer a flor sobre o teu sono
E pelo teu lamento.



VI

Dorme o amigo no seu corpo de terra.
E dentro dele a crisálida amanhece:
Ouro primeiro, larva, depois asa
Hás de romper a pedra, pastor e companheiro.




VII

Pastor, as violetas estão sobre os pilares
É tempo do poeta abrir seu canto
Tempo de iniciação, tempo de esfera
E de uma linha-mundo curvo-reta:
Trajetória de amor e de amplidão.



Hilda Hilst
do livro Exercícios, p. 17 - 19
imagens: Viktor Sheleg