Tradução e Introdução - Hélio Pólvora
Introdução
“Amar a Humanidade Inteira"
HÉLIO PÓLVORA
Entre as novidades deste romance, pelas quais Faulkner seria imitado, copiado e pastichado, convém destacar:
a) ausência do escritor em relação ao relato, ou seja, sua absoluta neutralidade;
b) a fragmentação da narrativa: o romance é um patchwork, uma colcha de retalhos;
c) predominância do tempo psicológico, interior, sobre o tempo convencional, cronológico — ou a alternância dos dois tempos, habilmente dosada;
d) a incerteza do romancista: ele não sabe, ou finge ignorar o que se passa ou o que virá;
e) a verdade do relato, ou dos vários relatos entrelaçados, é uma coisa sempre sujeita a contestação: depende de versões que ora lançam luz, ora obscurecem os fatos, e a verdade procurada será sempre, por conseguinte, ambivalente, ambígua, incompleta — e, no entanto, una, indivisível;
f) a narração é feita pelas personagens, que se explicam pela maneira de falar, de reagir aos acontecimentos: suas psicologias estão indissoluvelmente presas às suas palavras;
g) a linguagem das personagens deste romance equivale a um signo, é o reflexo de seus temperamentos, inclinações, conflitos;
h) os depoimentos fazem a ação do romance avançar e retroceder, e um vai esclarecendo o outro, embora certas zonas permaneçam obscuras — intencionalmente ou não.
O plot é bastante simples: a família Bundren, representante do poor white do Sul dos Estados Unidos, ao tempo da decadência agrícola, viaja até a cidade de Jefferson, em carroça, levando o caixão de Addie, que manifestara em vida o desejo de ser enterrada ali, e fizera o marido Anse prometer-lhe a satisfação de tão humilde vontade. "Não fiz mais que imaginar um grupo de pessoas e as submeti simplesmente a essas catástrofes naturais, universais, que são a inundação e o fogo, com um motivo lógico e simples, para dar sentido à sua evolução"
2, disse o romancista. Depois de várias peripécias (Addie fica oito dias sem sepultura), os Bundren chegam a Jefferson. Atravessaram um rio turbulento, pelo lugar do vau, e salvaram o caixão de um incêndio. Anse é um preguiçoso, um oportunista, um pobre diabo cheio de fraquezas morais, mas aferra-se à palavra empenhada. Sepultada a mulher, aparece com uma dentadura nova, cabelo bem alisado e outra Mrs. Bundren, que apresenta aos filhos sentados na carroça e todos eles atônitos. A abertura do Romance é solene: o quadro trágico de Addie agonizante, ouvindo pela janela aberta as marteladas de Cash e o ruído de sua serra, no preparo do caixão, somente é quebrado por algumas cenas grotescas, de humor negro, e descrições de um lirismo fundamental — um lirismo de começo de mundo. "A cena inicial tem o ar macabro de uma pintura medieval da Dança da Morte", dizem os críticos Campbell e Forster.
3 Mas são muitas, na verdade, as passagens literariamente admiráveis de Enquanto Agonizo — e eu citaria, entre outras, o monologo de Addie, alguns monólogos de Darl e Vardaman, as cenas de travessia do rio e o incêndio no celeiro de Gillespie. Campbell e Forster referem-se, a propósito dos capítulos sobre a travessia do rio, à capacidade que tem Faulkner de "dar o salto metafísico para o cósmico". As personagens de Enquanto Agonizo são pessoas rudes, toscas, assoberbadas por apetites mesquinhos e pequenos interesses. No entanto, têm, como a gente sofrida do povo, em qualquer parte, sobretudo no campo, uma compreensão da vida que envolve formulações não raro de alto teor filosófico. Este poder de aceitar os acontecimentos, por piores que sejam, e a eles resignar-se, equivale à submissão das dramatis personae ao Destino, no teatro grego que universalizou a tragédia. O romance parece, com efeito, desenvolver-se em função de dois cenários. No seu início, a figura magra de Addie na cama, ouvindo (e vendo) seu caixão mortuário ser preparado pelo filho mais velho. A partir da viagem para Jefferson, a carroça onde está o caixão, com o pai e filhos. O romance se compõe com estes dois elementos como núcleo. Eles funcionam como cenário, ponto de referência, ponto de partida, atração e repulsão. Enquanto Agonizo é a mais teatral das tragédias de Faulkner, e os capítulos curtos, esquemáticos, correspondem, sem dúvida, à entrada de protagonistas em cena e às suas falas.
Em 1962, pouco antes de falecer, William Faulkner foi sabatinado em West Point. Perguntaram-lhe, entre outras coisas, "em que medida a apresentação de personagens mais ou menos pervertidas pode contribuir para elevar o coração do homem". Sua resposta: "A primeira coisa que um escritor sente é compaixão por suas personagens, como, aliás, pelas personagens de não importa que outro autor. Ele não estima o poder que tem para julgá-las, e essas personagens permanecem com suas taras, quer o escritor queira ou não. Quando conta uma história, parece-lhe necessário, bom, essencial mesmo, ter em conta essa evidência. Não lhes advoga a causa, não as condena; uma vez consciente de seus defeitos, a primeira coisa que deve fazer é amar a humanidade inteira, embora chegue a odiar certos indivíduos. Entre as personagens que criei, há algumas que odeio ferozmente, mas não me compete julgá-las, condená-las: elas existem, fazem parte do quadro em que vivemos. E recusando falar delas não aboliremos o mal."
4 Ao receber o Prêmio Nobel, Faulkner disse, em discurso, que, enquanto permanecer o medo universal, físico, que caracteriza nossa época, o escritor "escreverá não do amor, mas do desejo, de derrotas em que ninguém perde nada de valor, de vitórias sem esperança e, o que é pior, sem piedade nem compaixão. (... ) Escreverá a respeito das glândulas, não do coração".
5 Das personagens de Enquanto Agonizo, a única moralmente boa, pura, será Cash, o carpinteiro. A tradução requer algumas palavras. O estilo de Faulkner, aqui, é direto, extremamente condensado, como se ele pretendesse carregar uma frase ou uma palavra do maior número possível de significações. O tradutor optou pela versão quase literal do texto, somente a ela fugindo quando forçado pela necessidade de clareza. O outro critério possível neste caso seria traduzir literariamente a linguagem de Faulkner; o texto ficaria mais bonito, mais fluente, mas não teria a rudeza, o coloquialismo e a feroz condensação do original, O leitor não afeiçoado a este universo deve nele procurar penetrar munido de paciência: a cena vai se esclarecendo aos poucos, à medida que falam as personagens. Certos trechos permanecerão obscuros, porque, em alguns casos, as personagens não sabem o que dizer ou como dizer. Conforme observou o próprio Faulkner, "ninguém procura ser obscuro só pelo prazer de sê-lo, Mas, em certos momentos, o escritor é simplesmente incapaz de encontrar um meio mais eficaz de contar a história que busca contar".
6 Preferiu o tradutor o diálogo à americana. Indicado por aspas, em vez de travessão. Não fosse assim e seria obrigado a alterar a estrutura de composição do livro, quebrando-lhe o ritmo, uma vez que muitos diálogos estão embutidos no texto. Procurou também manter a pontuação do autor, especialmente em certos monólogos que aparecem em grifo.
Foi a coisa mais comovente que já vi. Como se ele soubesse que jamais voltaria a vê-la, que Anse Bundren afastava-o do leito de morte de sua mãe, e que ele jamais voltaria a vê-la neste mundo. Eu sempre disse que Darl era diferente dos outros. Eu sempre disse que, entre todos, ele era o único com a natureza da mãe, o único que lhe dedicava afeto. Ao contrário de Jewel, que lhe deu tanto trabalho para nascer e que ela dengou e mimou, para ganhar, em troca, demonstrações de cólera e mau-humor, não se contando as diabruras que a atormentavam e que, se fossem comigo, eu lhe daria uma surra de quando em quando. Não será ele quem lhe virá dizer adeus. Não será ele quem vá perder a oportunidade de fazer três dólares extras, ao preço do beijo de despedida da mãe. Um Bundren da cabeça aos pés, que a ninguém ama e só se preocupa mesmo em ganhar algum dinheiro com o mínimo de trabalho. Mr. Tull diz que Darl lhes pediu para esperarem. Disse que Darl quase lhes suplicou de joelhos para não o obrigarem a deixá-la nessa situação. Mas Anse e Jewel não perderiam, por nada desse mundo, a oportunidade de fazer três dólares. Ninguém que conheça Anse poderia esperar outra atitude, mas pensar que esse rapaz, esse Jewel, venda todos esses anos de abnegação e ostensiva parcialidade (não me enganam: Mr. Tull diz que Mrs. Bundren gostava menos de Jewel, entre todos, mas eu é que sei. Sei que ela tinha predileção por ele, porque via nele a mesma qualidade que a fazia suportar Anse Bundren quando Mr. Tull dizia que ela devia envenená-lo) por três dólares, negando à sua mãe agonizante o beijo de despedida. Pois, nas últimas três semanas, eu tenho vindo aqui, sempre que posso, às vezes quando não devo, abandonando minha própria família e minhas obrigações para que alguém possa estar com ela nos seus derradeiros instantes e ela não tenha de enfrentar o Grande Desconhecido sem um rosto familiar a dar-lhe coragem. Não que eu deseje agradecimentos por isso: espero o mesmo quando chegar a minha hora. Mas, graças a Deus, terei os rostos dos meus, meu sangue e minha carne, pois em matéria de marido e filhos tenho sido mais feliz que muitas, apesar de provocações ocasionais. Ela vivia solitária, sozinha com seu orgulho, tentando fazer com que a gente pensasse outra coisa, ocultando o fato de que apenas a suportavam, pois, antes de esfriar no caixão, eles já estariam levando-a a sessenta quilômetros de distância, para enterrá-la, menosprezando, assim, a vontade de Deus. Negando-lhe o descanso na mesma terra desses Bundrens.
(...)
"Bom, nem todos são iguais", ele disse. Espero que sim, Tenho procurado viver com retidão aos olhos de Deus e dos homens, para honra e conforto de meu marido cristão e para o amor e respeito de meus filhos cristãos. De maneira que, quando tiver de morrer, consciente do dever e da recompensa que mereço, estarei cercada de rostos queridos, recebendo o beijo de adeus de cada um de meus afeiçoados, como recompensa. Não como Addie Bundren, morrendo sozinha, ocultando o orgulho e o coração despedaçado. Contente por deixar a vida. Estirada na cama, com a cabeça no alto para poder observar Cash a fazer o caixão, obrigada a vigiá-lo para que ele não poupe madeira, para que trabalhe bem, e os outros homens sem se preocuparem com nada, exceto se haverá tempo de ganhar mais três dólares antes que a chuva caia e o rio cheio impeça a travessia. Pois, se eles não houvessem resolvido pegar essa última carga, teriam levado Addie na carroça, sobre um cobertor, e cruzado logo o rio, e depois parado para dar tempo a que ela morresse da morte cristã que seria licito permitir-lhe. Exceto Darl. Foi a coisa mais confortadora que eu vi. As vezes, eu perco temporariamente a fé na natureza humana; sou assaltada pela dúvida. Mas sempre o Senhor restaura-me a fé e me revela Seu bondoso amor pelas criaturas. Não por Jewel, a quem ela tanto amou; não por ele. Ele só pensava nesses três dólares extraordinários. Foi por Darl, de quem todos dizem que é um estranho, um preguiçoso, sempre vadiando, igualzinho a Anse, enquanto Cash é bom carpinteiro sempre mais atarefado do que pode, e Jewel sempre a fazer algo que lhe rendesse dinheiro ou desse o que falar, e aquela mocinha quase nua, sempre em pé, ao lado de Addie, com um leque, de forma que, quando a gente tenta conversar com Addie e animá-la, responde logo em vez de Addie, como se quisesse impedir que a gente se aproxime dela. Foi por Darl. Ele chega à porta e fica parado, olhando a mãe agonizante. Apenas olha para ela, e eu sinto novamente o bondoso amor do Senhor e Sua misericórdia. Compreendi, então, que ela fora fingida a respeito de Jewel, mas que era entre ela e Darl que havia entendimento e verdadeiro amor. Ele apenas olha" para ela, sequer entra para que ela possa vê-lo, a fim de não sobressaltá-la, sabendo embora que Anse o espera e que nunca mais voltaria a vê-la. Ele não disse nada, apenas olhou para ela. "Que deseja. Dar!?", disse Dewey Dell, sem parar o leque, falando com rapidez, impedindo que ele, mesmo ele, se aproximasse. Ele não respondeu. Continuou em pé, olhando a mãe moribunda, o coração penalizado demais paia poder falar.
"Ela está se acabando", diz. "Não pensa em outra coisa." Sem dúvida, a vida das mulheres é dura. De algumas mulheres. Lembro que mamãe chegou até os setenta e poucos. Ocupada o dia inteiro, chovesse ou fizesse sol; não caiu de cama um só dia, desde que lhe nasceu o último filho, até que, um dia, pareceu olhar em volta, foi apanhar a camisola rendada que tinha há quarenta e cinco anos e nunca havia tirado da arca, vestiu-a, estirou-se na cama e, puxando o cobertor, fechou os olhos. "Agora vocês todos cuidem de Pai o melhor que puderem", disse ela. "Não aguento mais."
*
Anse
(...)
Diabo de estrada. E vai chover, com certeza. Parece que estou vendo: vai desabar um temporal atrás deles, levantando uma parede entre eles e a minha palavra empenhada. Faço o que posso, espremo a cabeça, mas o diabo desses rapazes. .. Estirada aqui, bem à minha porta, um lugar que favorece a má sorte. Eu disse a Addie que não era bom morar à beira de uma estrada, quando a estrada chegou até aqui, e ela respondeu, no seu rampante de mulher: "Então levante-se e mude-se." Mas eu lhe disse que não adiantava, porque Deus faz as estradas para a gente viajar: para isso é que Ele as estende por sobre a terra. Quando Ele quer que uma coisa se movimente, faz a coisa comprida, como uma estrada ou um cavalo ou uma carroça, mas quando Ele quer que uma coisa fique quieta, Ele faz a coisa para cima, como uma árvore ou um homem. Por isso, Ele nunca quis que as pessoas morassem em estradas, pois, afinal, quem veio primeiro, a estrada ou a casa? É possível colocar uma estrada perto de uma casa?, eu pergunto. Não, nunca, eu respondo, porque os homens não descansam numa casa onde cospem todos os que passam na estrada, em carroça, deixando as pessoas inquietas e desejosas de ir para outro lugar, pois Ele quis que ficassem quietas como uma árvore ou um monte de milho. Porque se Ele quisesse que os homens andassem sempre de um lado para outro, não lhes teria encompridado o ventre, como fez às cobras? Claro que sim, se Ele tivesse querido. Aí está a estrada, para que todo o azar venha por ela bater direto à minha porta, sem falar, acima de tudo, nos impostos. Tive de pagar para Cash aprender carpintaria, quando de não teria tido tal ideia se a estrada não viesse ter aqui; e não teria caído da igreja para ficar seis meses de mãos abanando e eu e Addie morrendo de trabalhar, quando, precisamente, havia tanta coisa a serrar, e ele teria serrado, se estivesse em condições.
*
A moça está em pé ao lado da cama, abanando-a. Quando entramos, ela vira a cabeça e nos encara. Há dez dias está como morta. Creio que, tendo sido uma parte de Anse durante tanto tempo, ela não se decide a fazer a mudança, se é que se trata de mudança. Lembro-me que, quando jovem, eu julgava a morte um fenômeno do corpo; agora, sei que não passa de função do espírito — também do espírito dos que sofrem a perda. Os niilistas dizem que a morte é o fim; os fundamentalistas, que é o princípio; quando, na realidade, não é mais que um inquilino ou uma família que sai de uma casa alugada ou de uma cidade. Ela olha para nós. Apenas seus olhos parecem mover-se. É como se nos tocasse, não com a vista ou os sentidos, mas como nos toca o jorro de uma mangueira, um jorro que, no instante do impacto, se houvesse dissociado do bocal, como se nunca tivesse saído por ali. Não olha de maneira alguma para Anse. Olha para mim, depois para o rapaz. Debaixo do cobertor ela está reduzida a um feixe de varas podres.
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Quando entramos no quarto ela está vigiando a porta. Olha para mim. Seus olhos parecem candeias que bruxuleiam antes que o querosene acabe. "Ela quer que o senhor vá embora", diz a moça. "Ora, Addie", diz Anse, "depois que ele veio de Jefferson para sarar você?" Ela me observa: posso sentir-lhe os olhos. Como se me enxotasse com os olhos. Já observei isto em outras mulheres. Já as vi expulsar do quarto as pessoas que iam levar-lhes simpatia e piedade, além de ajuda, e agarrarem-se a um animal insignificante para o qual nunca passaram de besta de carga. Eis o que elas entendem por amor acima de tudo: esse orgulho, esse furioso desejo de esconder a nudez abjeta que trazemos conosco, que levamos conosco às salas de cirurgia, e devolvemos conosco, de maneira estúpida e furiosa, à terra
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Ela se deita novamente e vira a cabeça, sem um olhar de relance, sequer, para Pai. Olha Vardaman; seus olhos, a vida neles, a vida que ainda tem, ali se concentra; os dois clarões luzem por um rápido instante, e depois se apagam, como se alguém, tendo se inclinado, houvesse soprado. "Mãe", diz Dewey Dell, "Mãe!" Inclinada sobre a cama, as mãos um pouco erguidas, o leque ainda agitando-se, como há dez dias, ela começa a lamuriar-se. Sua voz é forte, juvenil, trêmula e clara, arrebatada por seus próprio timbre e volume; ainda agita, o leque com firmeza, para cima e para baixo, sussurrando no ar inútil. Depois, ela cai sobre os joelhos e Addie Bundren, e agarrando-a, sacode-a com a furiosa força dos jovens, antes de estender-se, de súbito, sobre o punhado de ossos corroídos que resta de Addie Bundren, abalando a cama com o silvo rangente do colchão, os braços estendidos e o leque, numa das mãos, ainda a bater, com um sopro expirante, no cobertor. Por trás da perna de Pai, Vardaman espia, de boca bem aberta e a cor fluindo do rosto para a boca, como se, de certo modo, houvesse cravado os dentes em si mesmo, sugando. Começa a se afastar vagarosamente da cama, os olhos redondos, o rosto pálido desmaiando no crepúsculo qual pedaço de papel colado a uma parede arruinada, e sai pela porta. Pai inclina-.se para a cama; ao crepúsculo sua silhueta encovada assemelha-se ao aspecto eriçado, descontente, de um mocho que disfarça uma sabedoria por demais profunda, ou por demais inerte para ser, sequer, concebida. "Meninos danados", ele diz. Jewel, eu digo. Por cima, o dia definha, monótono e cinzento, escondendo o sol atrás de uma nuvem de lanças cinzentas, As mulas fumegam um pouco, sob a chuva, amarelecidas pelos respingos de lama, e a da direita, apesar de escorregar, mantém se na estrada, acima da valeta. A carga de madeira despede um brilho amarelo-escuro, empapado , de água e pesado como chumbo, inclinado de banda, para a valeta, por sobre a roda quebrada; em volta dos raios entrançados e em volta dos tornozelos de Jewel, um fio grosso de água e amarelo, nem água nem terra, gira, seguindo a estrada amarela, nem água nem terra, desce pela encosta em forma de massa dissoluta, verde-escuro, nem água nem céu. Jewel, eu digo Cash aparece à porta, de serra na mão. Pai continua em pé, ao lado da cama, curvado, os braços pendentes. Volta a cabeça; seu perfil gasto e seu queixo desaparecem devagar, enquanto ele comprime o fumo contra as gengivas. "Findou-se", diz Cash. "Foi embora e nos deixou", diz Pai. Cash não o olha. "Falta muito para acabar o trabalho?", pergunta Pai. Cash não responde- Entra carregando a serra. "Ê melhor acabar o trabalho", diz Pai. "Você tem de caprichar, agora que os rapazes estão a caminho." Cash pousa os olhos no rosto du mãe. Não ouve Pai de forma nenhuma. Não se aproxima da cama. Para no meio do quarto, a serra contra a perna, os braços suados polvilhados de serragem, o rosto grave. "Se estiver apertado, talvez alguém venha amanhã dar-lhe ajuda", diz Pai. "Vernon, por exemplo." Cash não está ouvindo. Olha o rosto da mãe, pacificado e rígido, esmaecendo ao crepúsculo como se as sombras se antecipassem à última terra, até que, por fim, o rosto parece flutuar, destacado de si mesmo, leve como o reflexo de uma folha morta. "Não faltam bons cristãos para ajudar você", diz Pai. Cash não escuta. Depois de algum tempo, vira-se sem olhar Pai e deixa o quarto. Depois, a serra começa a roncar novamente. "Vão nos ajudar em nossa desgraça", diz Pai. O som da serra é firme, competente, sereno; agita a claridade mortiça, de forma que, a cada golpe, o rosto da morta parece despertar um pouco, em expressão de atenção e espera, como se ela estivesse contando os golpes. Pai baixa o olhar para o rosto, junto aos cabelos pretos e esparramados de Dewey Dell que, de braços abertos, tem o leque agora imóvel sobre o cobertor descorado. "Acho que é melhor você preparar o jantar", ele diz. Dewey Dell não se move. "Levante-se, já e já, e vá servir o jantar", diz Pai. "Temos de manter as forças. O Dr. Peabody deve estar faminto por causa da caminhada, E Cash terá de comer ligeiro e voltar ao trabalho a fim de terminar tudo a tempo." Dewey Dell levanta-se com dificuldade. Contempla o rosto da morta. Ele parece um molde de bronze pálido sobre o travesseiro somente nas mãos um ligeiro vestígio de vida: uma inércia encrespada, nodosa; um aspecto de coisa gasta, mas ainda vigilante, do qual ainda não saíram a preocupação, a fadiga, o trabalho, como se duvidassem ainda da realidade do repouso, guardando com penosa e eriçada vigilância a imobilidade que bem sabem não pode durar. Dewey Dell inclina-se, puxa o cobertor debaixo das mãos e estende-o ate o queixo, alisando-o, estirando-o até que fique bem macio. Depois, sem olhar Pai, ela contorna a cama e sai do quarto. Vai ao encontro de Peabody, a um lugar onde passa, em pé «a penumbra, fitar-lhe as costas com tal expressão que, sentindo seus olhos e voltando-se, ele dirá: "Não fique as sim tão desgostosa. Ela era velha e estava doente. Sofria mais do que se podia imaginar Não ia ficar boa. Vardaman está crescendo e, como você, tomará conta de todos. Eu, em seu lugar, não ficaria tão desgostoso. Acho que é melhor ir aprontar o jantar. Não preciso fazer muita coisa. Mas eles têm de comer". E ela, olhando-o, parece dizer: "O senhor bem que podia me ajudar, se quisesse. Se soubesse. Eu sou eu e o senhor é o senhor e eu sei e o senhor não sabe e o senhor podia fazer muito por mim se quisesse e se o senhor quisesse então eu lhe contaria e então ninguém precisaria ficar sabendo exceto o senhor e eu e Darl". Pai está em pé ao lado da cama, de braços pendentes, encurvado, imóvel. Leva a mão à cabeça, puxa o cabelo, ouvindo a serra. Aproxima-se e esfrega a mão, a palma e as costas da mão na coxa, e depois põe a mão no rosto e no dorso do cobertor, onde estão as mãos dela. Toca o cobertor como viu Dewey Dell fazer, tentando alisá-lo até o queixo, mas, em vez disso, enrugando-o. Procura alisá-lo de novo, desajeitadamente; a mão trapalhona como uma garra alisa as rugas que ele fez e que continuam a emergir debaixo da mão, com perversa ubiquidade, de forma que, por fim, ele desiste; a mão tomba na ilharga e ele volta a esfregar palma e costas da mão na coxa. O som da serra ronca com firmeza dentro do quarto. Pai respira com um som tranquilo e rascante, mastigando o tabaco contra as gengivas. "Seja o que Deus quiser", diz. "Agora posso comprar a dentadura." O chapéu de Jewel pende mole sobre seu pescoço, escorrendo água sobre o empapado saco de aniagem amarrado ao ombro, enquanto ele, enterrando os pés na valeta lamacenta, levanta o eixo com um pedaço de pau escorregadio e podre, que usa como alavanca. Jewel, eu digo, ela está morta, Jewel. Addie Bundren morreu.
*
Vardaman
Então eu começo a correr. Corro para os fundos e chego ao canto do alpendre e paro. Então começo a chorar. Eu posso sentir onde o peixe estava na poeira. Está cortado agora em pedaços, em pedaços de coisas que não são peixe, e não tenho sangue nas mãos e no macacão. Ainda não tinha acontecido isto. Isto nunca tinha acontecido. E agora ela está tão longe que eu não posso alcançá-la. As árvores parecem galinhas quando se revolvem na poeira fria, nos dias quentes. Se eu saltar pelo alpendre, cairei no lugar onde o peixe estava, o peixe que não é mais peixe, cortado que foi em pedaços. Posso ouvir a cama e o rosto dela e eles todos e posso sentir o chão estalar quando ele caminha, ele que veio e fez isto. Ele que veio e fez isto quando ela estava boa, mas ele veio e fez isto. "O gordo filho da puta." Salto o corrimão, na carreira. O topo do celeiro emerge, em curva desgraciosa, do crepúsculo. Se eu saltar, posso atravessá-lo como a senhora de maiô cor-de-rosa do circo, e penetrar no cheiro quente, sem precisar esperar. Minhas mãos agarram os arbustos; debaixo dos meus pés, as pedras e a terra escorregam. Agora posso respirar outra vez, no cheiro quente. Entro na cavalariça, (tentando tocar nele, e então posso chorar mas engulo o choro. Assim que ele para de dar coices, eu posso chorar, eu consigo chorar. "Ele matou-a. Ele matou-a." A vida corre embaixo de sua pele, debaixo de minha mão, corroído pelas manchas, cheirando em meu nariz onde a coceira começa a se transformar em choro, engolindo o choro, e então eu posso respirar, contendo o choro. Tudo isto faz barulho. Posso cheirar a vida correndo embaixo de minhas mãos, subindo pelos meus braços, e então cu posso sair da cavalariça. Não consigo encontrá-lo. No escuro, na poeira, nas paredes, não consigo encontrá-lo. O choro faz muito barulho. Eu queria que não fizesse tanto barulho. Então eu o encontro na cocheira, no pó, e cruzo o pátio, na carreira, e entro na estrada, o pau balançando em meu ombro. Eles me olham enquanto eu subo, e começam a recuar aos saltos, rolando os olhos, resfolegando, puxando as rédeas que os prendem. Eu bato. Posso ouvir o pau batendo; posso ver o pau atingir-lhes as cabeças, as rédeas, falhando às vezes, enquanto eles recuam e tentam soltar-se, mas eu estou contente. "Você matou minha mãe!" O pau quebra-se; eles corcoveiam e resfolegam, suas patas batem surdas no chão; surdas, porque vai chover e o ar está vazio para receber chuva. Mas o pedaço de pau que me restou ainda é comprido. Corro em volta, enquanto eles resfolegam e saltam e puxam as rédeas, e eu bato.
"Você matou-a!" Bato neles, bato, eles giram em longa investida, e o carro gira sobre as duas rodas até ficar imóvel, como se cravado ao chão, e os cavalos param, imóveis, como se pregados pelas patas traseiras ao centro de uma prancha giratória. Corro sobre a poeira. Não consigo ver, correndo como estou na poeira absorvente, onde o carro desaparece, inclinado sobre as duas rodas. Bato, o pau fere o chão, ressalta, fere a poeira e, depois, sobe novamente, e a poeira absorvente corre pela estrada, mais depressa que um automóvel por ali passando. E outra vez posso chorar, olhando o pau. Está quebrado em minha mão, um pau comprido agora reduzido a um pedaço de lenha para o fogão. Atiro-o fora e posso chorar. Agora o choro não faz muito barulho. A vaca está à porta do estábulo, ruminando. Quando me vê entrar no pátio, ela muge, a boca cheia de um verde gotejante, a língua gotejando. "Não vou ordenhar você. Não quero fazer isto para eles," Ouço-a virar-se quando passo. Quando me viro, ela está bem atrás de mim, soprando seu hálito doce, quente, pesado. "Já não falei que não vou ordenhar?" Ela me empurra, resfolegando. Geme por dentro, com a boca fechada. Levanto a mão e praguejo contra ela, como Jewel faz. "Dê o fora." Abaixo a mão e corro para ela. Ela retrocede com um pulo, gira e para, observando-me. Muge. Dirige-se à vereda e para ali, olhando o alto da vereda, O estábulo está escuro, quente, cheiroso, silencioso. Posso chorar em paz, olhando o cimo da colina. Cash aparece na colina, coxeando por causa da queda que sofreu da igreja. Olha, embaixo, a nascente, depois a estrada, em cima, e embaixo, de novo, o estábulo. Desce pela vereda, rígido, olha as 'rédeas partidas e a poeira da estrada e em seguida a estrada, mais acima, onde a poeira desapareceu. "Acho que, a essa hora. passavam pela casa de Tull. É o que espero." Cash volta-se e sobe, coxeando, a vereda. "Maldito seja ele. Vou dar-lhe uma lição. Maldito seja." Não «atou chorando agora, Não sou nada. Dewey Dell aparece na colina e me chama. "Vardaman." Não sou nada. Estou tranquilo. "Venha cá, Vardaman." Agora posso chorar em paz, sentindo e ouvindo minhas lágrimas. "Então, não havia acontecido nada. Ainda não havia acontecido. Ele estava aqui, ali, estirado no chão. E agora ela se prepara para cozinhá-lo." Escureceu. Posso ouvir o bosque, o silêncio: eu os conheço. Mas os sons não são de coisa viva, nem sequer dele. É como se a escuridão o retirasse de sua integridade, espalhando seus elementos desconjuntados — sopros e ruídos de cascos; cheiros de carne fresca e de cabelo cheirando a amoníaco; a ilusão de uma totalidade coordenada com pele malhada e ossos fortes sob os quais, isolado e secreto e familiar, há um ser diferente de meu ser. Eu o vejo dissolver-se — pernas, um olho assustado, manchas escuras semelhantes a frias labaredas — e flutuar na escuridão, em caldo evanescente; nem um, nem outro; um e outro, os dois e, no entanto, nenhum deles. Posso vê-lo, ouvi-lo a recompor-se, acariciando, modelando sua rude forma — machinho, anca, espádua e cabeça; cheiro e som. Não tenho medo. "Cozido e comido. Cozido e comido."
*
Terras duras para o homem. Muito duras. Doze quilômetros do suor de alguém, tirado da terra do Senhor, onde o mesmíssimo Senhor lhe disse para mourejar. Em parte alguma deste mundo pecador um homem honesto, trabalhador, pode tirar proveito. Os que lucram são os donos de negócios da cidade, que não suam, que vivem do suor alheio. Não os que trabalham duro, não os lavradores. Às vezes eu penso porque continuamos insistindo. É porque há uma recompensa para nós no alto, onde eles não podem levar seus automóveis e coisa que o valha. Ali, todos os homens são iguais, e Deus tomará dos que têm para dar aos que não têm. Parece, no entanto, que teremos de esperar muito por isso. Não é direito que um homem obtenha recompensa por sua boa conduta depois de virar pó e de enterrar seus mortos. Rodamos o resto do dia e chegamos, ao cair da noite, na fazenda de Samson, e vemos, então, que a ponte também desapareceu na enxurrada. Nunca se viu o rio tão cheio e a chuva não parou de cair ainda. Os velhos daqui nunca viram coisa semelhante, nem ouviram falar, que se lembrem. Sou o eleito do Senhor, pois Ele castiga as pessoas a quem ama. Mas o diabo me leve se Ele não escolheu maneiras estranhas de demonstrar amor. Mas agora posso mandar colocar os dentes. Será um conforto. Sem dúvida.
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Um dia nós conversávamos. Ela nunca foi muito religiosa, nem mesmo depois daquela reunião ao ar livre, no verão, quando o Irmão Whitfield lutou com seu espírito, levou-a à parte e combateu o orgulho em seu coração mortal, e eu lhe disse muitas vezes: "Deus lhe deu filhos para confortá-la em sua miséria e como penhor de Seu próprio sofrimento e amor, pois no amor você os concebeu e os trouxe à luz." Eu disse isto porque ela não tinha seu amor por Deus e seus deveres para com Ele em muita conta, e tal comportamento não lhe agrada. Eu disse: "Ele nos deu o dom de elevar nossas vozes em louvor de sua glória imortal", porque, segundo creio, há mais alegria no céu por um pecador arrependido do que por uma centena de pessoas que nunca pecaram. E eu disse: Minha vida diária é o reconhecimento e expiação de meu pecado", e frisei: "Quem é você para dizer o que é pecado é o que não é pecado? O Senhor é quem julga; compete-nos apelar à Sua misericórdia e ao Seu santo nome em benefício dos nossos Irmãos mortais", porque só ele pode ver no fundo dos corações, e embora a vida de uma mulher pareça direita aos olhos de todos, ela não tem certeza de não haver pecado em seu coração, a não ser que abra o coração ao Senhor e receba Sua graça." Eu disse: "O fato de ser fiel ao seu mando não é sinal de que não existe pecado em seu coração, e as durezas de sua vida não significam também que a graça do Senhor a esteja absolvendo." E ela disse: "Conheço meu próprio pecado. Sei que mereço castigo. Não o lamento." E eu disse: "É por orgulho que você quer julgar o pecado e a salvação em lugar do Senhor. É nosso fado mortal sofrer e elevar nossas vozes em Seu louvor, pois Ele é que julga o pecado e oferece a salvação mediante provações e atribulações, desde o princípio dos séculos amém. Não, você não pode julgar, sobretudo agora depois que o Irmão Whitfield, um santo homem que respira o hálito de Deus, orou por você e lutou como nenhum outro poderia lutar, a não ser ele", eu disse. Porque não nos compete julgar nossos pecados ou saber o que é pecado aos olhos do Senhor. Ela tem tido uma vida atormentada, mas assim é a vida das mulheres. Mas a gente pensaria, pela maneira como ela falava, que sabia mais acerca de pecado e salvação do que o próprio Deus Nosso Senhor, do que os que trabalham e lutam para tirar o pecado deste mundo dos homens. Quando o único pecado que ela cometeu foi o de ser parcial para com Jewel, que nunca a amou — e por isso foi castigada —, em prejuízo de Darl, que foi tocado pela graça de Deus e julgado esquisito por nós, mortais, e que a queria de verdade. Eu disse: "Eis o seu pecado. E também o seu castigo. Jewel é o seu castigo. Mas onde está sua salvação? E veja que a vida é muito curta para se conquistar a graça eterna. E Deus é um Deus ciumento. Ele, e não nós, é quem julga e oferece recompensa." "Eu sei", ela disse. "Eu..." E então ela parou, e eu disse: "Sabe o quê?" "Nada", ela disse. "Ele é minha cruz e será minha salvação. Ele me salvará da água e do fogo. Mesmo que eu já esteja dormindo o sono eterno, ele me salvará."
"Como é que você tem a certeza disso, sem ter aberto seu coração a Deus e erguido a voz em Seu louvor?", eu disse. Então, percebi que ela não se referia a Deus. Percebi que, levada pelo orgulho que havia em seu coração, ela falara de forma sacrílega. E eu me ajoelhei ali mesmo. Pedi-lhe para se ajoelhar também e abrir o coração e expulsar dele o demônio do orgulho e entregar-se à misericórdia do Senhor. Mas ela não quis. Continuou sentada, perdida na sua vaidade e no seu orgulho, que lhe tinham fechado o coração a Deus e posto, em Seu lugar, aquele rapaz mortal, cheio de egoísmo. Rezei por aquela pobre mulher cega como nunca tinha orado por mim e por minha família.
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Addie
A tarde, quando a escola fechava e o último aluno saia com seu narizinho sujo, em vez de ir para casa eu descia a colina até a fonte, onde podia ficar tranquila e odiá-los. Tudo ali era tranquilo, com a água fluindo e rumorejando e o sol caindo oblíquo nas árvores e o calmo odor das folhas úmidas e meio podres e da terra nova, principalmente no início da primavera, quando, então, era pior. Eu só me lembrava, então, de como meu pai costumava dizer que a verdadeira razão de se viver era preparar-se para ficar morto durante muito tempo. E quando eu descobria que tinha de olhar para eles, dia após dia, cada um, homem e mulher, com seus segredos e egoísmos, o sangue de um alheio ao sangue de outro e diferente do meu; e pensava que aquela seria a única maneira de eu me preparar para morrer, eu odiava, então, meu pai por me haver concebido. Eu fazia tudo para apanhá-los em falta e chicoteá-los. Quando o chicote tombava, eu o sentia em minha cama; quando fazia vergões e inchava a pele, era meu sangue que corria, e eu pensava, a cada golpe do chicote: "Agora vocês têm consciência de minha pessoa. Agora eu sou alguma coisa em suas vidas secretas e egoístas, eu que marquei seus sangues com o meu, para todo o sempre." De modo que aceitei Anse. Eu o vi passar pela escola três ou quatro vezes, antes de saber que fazia uma volta de seis quilômetros para me ver. Observei, então, como ele começava a ficar encurvado, embora sendo alto e moço, de tal maneira que já parecia um pássaro grande, encolhido no inverno, assim sentado no banco da carroça. Passava pela escola, a carroça estalando vagarosamente, e a cabeça virava-se, sem pressa, para olhar a porta da escola, enquanto a carroça passava, até que ele desaparecia na curva. Um dia eu fui à porta e fiquei ali quando ele passava. Ao me ver, olhou rapidamente para ou ira direção e não voltou a olhar a escola. No início da primavera era pior. Às vezes eu pensava que não ia aguentar aquilo, deitada na' cama a noite toda, com os patos selvagens voando para o norte e seus grasnidos chegando nítidos, altos e selvagens, como se saídos da escuridão selvagem, e durante o dia era como se eu mal pudesse esperar que o último aluno saísse, a fim de descer à fonte. Assim, quando ergui os olhos, aquele dia, e vi Anse de pé, em suas roupas domingueiras, amassando o chapéu nas mãos, eu disse: "Se há mulheres em sua casa, então por que diabo não lhe dizem para cortar o cabelo?" "Não tenho nenhuma", ele disse. Em seguida, acrescentou de súbito, fixando em mim os olhos que pareciam dois cães bravios em terreiro alheio: "Foi por isso que eu vim lhe ver." "E fazer você endireitar estes ombros", eu disse. "É verdade que não tem mulher? Mas deve ter uma casa. Disseram-me que você tem casa e uma boa fazenda. E vive sozinho, fazendo tudo sozinho, não é?" Ele continuava a me olhar, girando o chapéu nas mãos. "Uma casa nova", eu disse. "Você pretende casar-se?" E ele disse outra vez, olhando-me com firmeza: "Foi para isto que eu vim lhe ver." Mais adiante, confessou: "Não tenho parentes. De forma que, por este lado, você não terá preocupações. Não creio que você possa dizer o mesmo."
"Não. Eu tenho parentes. Em Jefferson." Seu rosto emsombreceu-se um pouco. "Bem, possuo uma pequena propriedade. Sou econômico, tenho nome limpo. Sei bem como são as pessoas da cidade, mas talvez, quando me ouvirem..." "Talvez o ouçam", eu disse. "Mas dificilmente falarão com você." Ele me observava o rosto. "Estão no cemitério." "Mas seus parentes vivos", ele disse. "Com certeza serão diferentes." "Serão mesmo?", eu disse. "Não sei. Nunca tive outros parentes."
Desse modo, aceitei Anse. E quando soube que ia ter Cash, percebi que viver era terrível e que aquilo era a resposta. Então eu soube que palavras não têm importância; que palavras nunca exprimem o que tentam dizer. Quando ele nasceu, compreendi que a palavra maternidade foi inventada por alguém que precisava de uma palavra para justificar-se, pois os que têm filhos não se preocupam em arranjar palavra para isso. Eu soube que a palavra medo foi inventada por alguém que nunca teve medo; orgulho, por alguém que jamais teve orgulho. Compreendi, então, que a culpa não era de seus narizes sujos, mas de termos de trocar palavras que, como aranhas, pendiam das bocas, por um fio, oscilantes, sem nunca se tocarem; e que, somente por meio de golpes do chicote, meu sangue e o sangue deles poderiam fluir num fluxo único. Compreendi que minha solidão em verdade nunca fora violada, até que Cash chegou . Nem mesmo por Anse, à noite. Também ele tinha uma palavra. Amor, era como ele a chamava. Só que eu estava acostumada às palavras há muito tempo. Eu sabia que aquela palavra era como as outras: apenas uma forma de preencher uma lacuna; que, quando chegasse a ocasião adequada, não precisaríamos de uma palavra para isso, a exemplo de orgulho ou medo. Cash não precisou dizer-me a palavra, nem eu a ele, e eu pensava: "Anse que a diga, então, se quiser." Seria, portanto. Anse ou amor; amor ou Anse; pouco importava. Eu assim pensava, mesmo quando deitada no escuro, ao lado dele, e Cash dormindo no berço, ao alcance de minha mão. Eu pensava, também, que se ele acordasse chorando, teria que dar-lhe de mamar. Anse ou amor: pouco importava. Minha solidão fora violada e restabelecida inteiramente pela violação: tempo, Anse, amor, tudo o que quisessem, fora do circulo. Depois descobri que estava grávida de novo, que ia ter Darl. A principio, não quis acreditar. Pensei que ia matar Anse. Foi como se ele me tivesse enganado, oculto dentro de uma palavra, como atrás de um biombo de papel, a fim de me atingir pelas costas. Mas então percebi que tinha sido enganada por palavras mais velhas que Anse ou amor, e que a mesma palavra enganara Anse também, e que minha vingança seria a de nunca deixá-lo saber que eu tirava vingança. E quando Darl nasceu, eu exigi de Anse a promessa de me levar a Jefferson quando eu morresse, porque eu sabia que meu pai tinha razão, mesmo que não soubesse que tinha razão, da mesma forma que eu podia não ter sabido que estava enganada. "Bobagem", disse Anse. "Com apenas dois filhos, você e eu ainda temos muito que fazer." Ele não sabia, então, que estava morto. As vezes, deitada junto dele, no escuro, ouvindo a terra que era agora meu sangue e minha carne, eu pensava: "Anse. Por que Anse?
Por que você é Anse?" Eu pensava em seu nome até que, dentro em pouco, eu via a palavra tomar uma forma, a de um vaso, e eu o observava liquefazer-se e escorrer, qual melado frio escorrendo na escuridão para o vaso, até que o vaso ficava cheio e imóvel: uma forma cheia de expressão, mas tão sem vida quanto a moldura de uma porta vazia; e, a essa altura, eu descobria que havia esquecido o nome do vaso. Eu pensava: a forma de meu corpo onde eu era virgem é a forma de um... e eu não podia pensar Anse, não conseguia lembrar Anse. Não, porém, que eu fosse capaz de pensar em mim como tendo recobrado a virgindade, porque, agora, eu era três. E quando pensava Cash e Darl, dessa mesma maneira, até seus nomes morrerem para se solidificarem numa forma e depois se desvanecerem, eu dizia: "Muito bem. Não importa. Não importa os nomes que lhes deem." Assim, quando Cora Tull me disse que eu não era uma mãe de verdade, pensei em como as palavras sobem retas, numa linha tênue, rápida, inofensiva, enquanto as ações rastejam, pegadas à terra, de forma que, decorrido algum tempo, as duas linhas se distanciam tanto que uma pessoa não pode mais abrangê-las com as pernas; e que o pecado, o amor e o medo não passam de sons que as pessoas que nunca pecaram, amaram ou temeram, empregam para denominar o que nunca sentiram e não poderiam sentir, até que viessem a esquecer as palavras. Como Cora, que nem mesmo aprendeu a cozinhar. Ela me falava das obrigações que eu devia a meus filhos e a Anse e a Deus. Dei a Anse os filhos. Não os pedi. Nem mesmo pedi-lhe o que ele poderia ter-me dado: o não Anse. Era minha obrigação não lhe pedir isto, e esta obrigação eu cumpri. Eu seria eu mesma; eu o deixaria ser a forma e o eco de sua palavra. Isto ultrapassava o que ele pedia, pois ele não podia pedir tal coisa e, ao mesmo tempo, ser Anse, servindo-se de si próprio por meio de uma palavra. E, então, ele morreu. Ele não soube que estava morto. Deitada ao seu lado, na escuridão, ouvindo a terra escura falar do amor de Deus e de Sua beleza e de Seu pecado; ouvindo a mudez escura em que urnas palavras são os feitos, e outras palavras não são os feitos, são apenas os espaços vazios do que falta às pessoas, descendo como. gritos de gansos saídos da escuridão selvagem nas terríveis noites de outrora, à procura de ações, como órfãos a quem são apontados, numa multidão, dois rostos, e se diz: "Este é o seu pai. Aquela é sua mãe." Acreditei que havia encontrado. Julguei que a razão era a obrigação para com a coisa viva, para com o sangue terrível, esse fluxo vermelho e amargo que borbulha pela terra. Eu pensava no pecado como pensava nas roupas que vestíamos aos olhos do mundo, por motivos de compostura, uma vez que ele era ele e eu era eu; o pecado supremo e mais terrível, pois ele era o instrumento ordenado de Deus, que havia criado o pecado, para santificar o pecado que havia criado. E enquanto eu o esperava no bosque, enquanto o esperava até que ele me via, eu o imaginava vestido de pecado. Eu pensava que ele me imaginava também vestida de pecado, só que ele estava mais bonito, porque a roupa que havia substituído pelo pecado estava santificada. Eu pensava no pecado como roupas que removíamos a fim de modelar e represar o terrível sangue segundo o eco da palavra morta perdida no ar. Depois, voltava a deitar-me ao lado de Anse — mas sem lhe mentir; apenas me recusava, tal como havia recusado o seio a Cash e a Darl após a fase da amamentação —, ouvindo o discurso inaudível da terra escura. Eu nada escondia. Não procurava enganar ninguém. Não tinha maiores preocupações.
Limitava-me às cautelas que ele julgava necessárias à sua segurança, não à minha, já que eu usava roupas aos olhos do mundo. E, quando Cora me falou, eu pendei até que ponto as mais sublimes palavras mortas parecem perder o significado de seu som morto.
Depois, tudo terminou. Acabou no sentido de que ele foi embora e eu me dei conta de que, embora ainda o quisesse, não voltaria a vê-lo, jamais,
aproximar-se rápido e furtivo ao meu encontro, nos bosques, vestido de pecado, como se levasse um galante terno que a rapidez de sua aproximação secreta já estivesse a entreabrir. Mas, para mim, não havia acabado. Quero dizer, acabado no sentido de começo e fim, porque, para mim não havia começo e fim de coisa alguma. Continuava a repelir Anse, não que pensasse agora, pela primeira vez, em furtar-me ao seu contato, mas como se isto houvesse sempre acontecido entre nós. Meus filhos eram só meus, do sangue selvagem que ferve na terra, meus e de tudo o que está vivo; de ninguém mais e de todos. Então eu descobri que ia ter Jewel. Quando recobrei o senso para ver o que havia acontecido, estava grávida há dois meses. Meu pai disse que a razão para se viver é preparar-se para ficar morto. Eu sabia, finalmente, o que ele queria dizer, e sabia, também, que ele não poderia ter sabido o que isto significava, porque um homem não entende de limpeza da casa no devido tempo. Portanto, limpei minha casa. Depois que Jewel nasceu — deitada junto à candeia, sustentando minha própria cabeça, eu vi o módico cortar e suturar, antes da criança chorar —, o sangue selvagem espalhou-se e cessou de ferver. Restou somente o leite, quente e tranquilo, e eu, deitada no silêncio vagaroso, também tranquila, aguardava a ocasião de limpar minha casa. Dei Dewey Dell a Anse, para compensar Jewel. Depois, dei-lhe Vardaman, para substituir o filho que lhe havia roubado. E agora ele tem três filhos que são seus e não meus. E então eu posso preparar-me para morrer. Certo dia, comecei a conversar com Cora. Ela rezou por mim, porque me julgava cega em relação ao pecado. Queria que eu me ajoelhasse e rezasse também, porque, para as pessoas que julgam o pecado apenas questão de palavras, a salvação também não passa de uma palavra.
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Às vezes eu me pergunto se alguém tem o direito de dizer se um homem está maluco ou não. Às vezes eu penso que nenhum de nós é inteiramente louco ou inteiramente são, até que a maioria nos identifica de uma ou de outra maneira. Não importa muito a maneira como um homem age, e sim a maneira como a maioria das pessoas olha-o enquanto ele age.
(....)
Mas não sei se alguém tem o direito de dizer se um homem está louco ou não está. É como se em cada homem houvesse uma personalidade à margem da sanidade ou da loucura, uma personalidade que observasse o são e o insano no homem com o mesmo horror e a mesma estupefação.
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Pai tinha aquele jeito característico, a um tempo humilhado e orgulhoso, que assumia sempre ao fazer uma coisa que tinha a certeza de desgostar Mãe. Tinha uma maleta na mão, e Jewel perguntou: "O que é?". Então, vimos que não era a maleta que o fazia parecer diferente; era sua cara, e Jewel disse: "Ele mandou pôr os dentes." Era verdade. Parecia ter agora mais uns trinta centímetros de altura, mantinha a cabeça aprumada, humilhado e ao mesmo tempo orgulhoso, e então nós a vimos atrás dele, carregando a outra maleta — uma mulher com jeito de pato, toda embonecada, com olhos saltados e duros, como se desafiassem todo mundo a dizer-lhe alguma coisa. Sentados, nós os observamos; Dewey Dell e Vardaman ficaram com as bocas meio-abertas e com as bananas meio comidas nas mãos, e ela se aproximando, atrás de Pat, olhando-nos como se nos desafiasse. E então eu vi que a maleta que ela trazia era um dos pequenos gramofones, Não havia dúvida: fechado como estava, parecia tão bonito quanto um quadro, e sempre que um novo disco chegasse pelo correio e a gente se sentasse, no inverno, para ouvi-lo, eu pensaria: "Que pena Darl não estar aqui para apreciá-lo também. Mas assim é melhor para ele. Este não e o seu mundo; sua vida é outra." "Apresento-lhe Cash e Jewel e Vardaman e Dewey Dell", diz Pai, com aquele seu jeito entre humilhado e orgulhoso, de dentadura nova e todo o resto, mas sem se atrever a nos olhar de frente. "Esta é Mrs. Bundren."
William Faulkner, Enquanto agonizo