Poderíamos até dizer que, quanto mais se distanciam do presente, melhor corresponderão à sua qualidade essencial e mais adequadas serão ao narrador, este mago que evoca o pretérito. Acontece, porém, com a história o que hoje em dia também acontece com os homens, e entre eles, não em último lugar, com os narradores de histórias: ela é muito mais velha que seus anos; sua vetustez não pode ser medida por dias, nem o tempo que sobre ela pesa, por revoluções em torno do Sol. Numa palavra, não é propriamente ao tempo que a história deve o seu grau de antiguidade – e com esta observação feita de passagem queremos aludir ao caráter problemático e à peculiar duplicidade desse elemento misterioso.
Mas, para não se obscurecer artificialmente um estudo de coisas claro em si, seja dito que a idade sumamente avançada de nossa história provém do fato de ela se desenrolar antes de determinada peripécia e de certo limite que abriram um sulco profundo na nossa vida e na nossa consciência... Desenrola-se – ou para evitarmos propositadamente qualquer forma de presente – desenrolou-se numa época transata, outrora, nos velhos tempos, naquele mundo de antes da Grande Guerra, cujo deflagrar marcou o começo de tantas coisas que ainda mal deixaram de começar. Passa-se, pois, antes desse período, se bem que não muito antes. No entanto, não será o caráter de antiguidade de uma história tanto mais profundo, perfeito e lendário, quanto mais próxima do presente ela se passar? Além disso, poderia ser que também sob outros aspectos a nossa história, pela sua natureza íntima, tenha isto e aquilo em comum com a lenda.
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Tal qual o tempo, o espaço gera o olvido; porém o faz, desligando o indivíduo das suas relações e pondo-o num estado livre, primitivo; chega até mesmo a transformar, num só golpe, um pedante ou um burguesote numa espécie de vagabundo. Dizem que o tempo é como o rio Letes; mas também o ar de paragens longínquas representa uma poção semelhante, e seu efeito, conquanto menos radical, não deixa de ser mais rápido.
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Levava sobre os ombros, comodamente e com certa dignidade, a elevada civilização que a alta sociedade dessa democracia municipal de comerciantes transmite aos seus filhos. Ia lavadinho como um nenê e fazia-se vestir pelo alfaiate que gozava da confiança dos jovens da sua esfera social. O pequeno tesouro de roupa de dentro cuidadosamente marcada, que abrigavam as gavetas inglesas de seu armário, era lealmente administrado por Shalleen. Ainda quando Hans Castorp passou a estudar fora, continuava mandando regularmente a roupa branca para casa, a fim de que ali a lavassem e consertassem – afirmava ele que fora de Hamburgo ninguém sabia engomar. Um pedacinho puído no punho de uma das suas bonitas camisas de cor seria capaz de enchê-lo de violento mal-estar. Suas mãos, posto não fossem tipicamente aristocráticas, tinham a pele bem cuidada e macia, e eram adornadas pelo anel-sinete, herança do avô, e por outro anel de platina, em forma de corrente. Seus dentes, de consistência mole, haviam sofrido algumas avarias, reparadas por trabalhos de ouro.
Ao caminhar ou estar de pé, avançava um pouco o ventre, o que não dava propriamente uma impressão de energia marcial. Em compensação era impecável a sua postura à mesa. Voltava cortesmente o tronco muito teso para o vizinho com quem falava, pausadamente e com leve acento hamburguês. Os cotovelos achegavam-se ligeiramente do corpo, enquanto dissecava um pedaço de frango ou habilmente extraía, mediante o instrumento especial, a carne rosada de uma pinça de lavagante. Terminada a refeição, era sua primeira necessidade a tigelinha de água perfumada para lavar os dedos, e a segunda, o cigarro russo, sonegado ao imposto alfandegário, uma vez que Hans Castorp tinha uma fonte conveniente onde comprá-lo a contrabando. Ao cigarro seguia-se um charuto, de uma saborosa marca bremense, de nome Maria Mancini, do qual se falará mais adiante, e cujos tóxicos picantes se combinavam deliciosamente com os do café.
Hans Castorp punha as suas provisões de fumo a salvo das influências prejudiciais da calefação a vapor, guardando-as no porão, aonde descia todas as manhãs, para abastecer a charuteira com a dose diária. Só com relutância teria comido manteiga que lhe servissem num bloco e não em forma de bolinhas estriadas.
Como se vê, empenhamo-nos em anotar tudo quanto possa prevenir o espírito do leitor a favor de Hans Castorp. Mas julgamo-lo sem exagero, e não o apresentamos nem melhor nem pior do que era. Hans Castorp não era nem um gênio nem um imbecil, e a razão de evitarmos, para sua qualificação, o termo “medíocre”, reside em circunstâncias que nada têm que ver com sua inteligência e quase nada com a sua singela personalidade; fazemo-lo devido ao respeito que temos pelo seu destino, ao qual nos sentimos inclinados a atribuir certa significação ultraindividual. Seu cérebro satisfazia as exigências do curso científico do colégio, sem que tivesse de recorrer a excessivos esforços que decerto não teria realizado em nenhuma ocasião e por nenhum objetivo; menos por medo de se prejudicar do que por não ver nenhum motivo para empreendê-los; ou melhor: por não ver nenhum motivo absoluto. É precisamente por isso que não o chamamos de medíocre, já que ele percebia, desta ou daquela forma, a ausência de tais motivos.
O homem não vive somente a sua vida individual; consciente ou inconscientemente participa também da vida de sua época e dos seus contemporâneos. Até mesmo uma pessoa inclinada a julgar absolutas e naturais as bases gerais e ultrapessoais da sua existência, e que da ideia de criticá-las permaneça tão distante quanto o bom Hans Castorp – até uma pessoa assim pode facilmente sentir o seu bem-estar moral um tanto diminuído pelos defeitos inerentes a essas bases. O indivíduo pode visar numerosos objetivos pessoais, finalidades, esperanças, perspectivas, que lhe deem o impulso para grandes esforços e elevadas atividades; mas, quando o elemento impessoal que o rodeia, quando o próprio tempo, não obstante toda a agitação exterior, carece no fundo de esperanças e perspectivas, quando se lhe revela como desesperador, desorientado e falto de saída, e responde com um silêncio vazio à pergunta que se faz consciente ou inconscientemente, mas em todo caso se faz, a pergunta pelo sentido supremo, ultrapessoal e absoluto, de toda atividade e de todo esforço – então se tornará inevitável, justamente entre as naturezas mais retas, o efeito paralisador desse estado de coisas, e esse efeito será capaz de ir além do domínio da alma e da moral, e de afetar a própria parte física e orgânica do indivíduo. Para um homem se dispor a empreender uma obra que ultrapassa a medida das absolutas necessidades, sem que a época saiba uma resposta satisfatória à pergunta “Para quê?”, é indispensável ou um isolamento moral e uma independência, como raras vezes se encontram e têm um quê heroico, ou então uma vitalidade muito robusta. Hans Castorp não possuía nem uma nem outra dessas qualidades, e portanto deve ser considerado medíocre, posto que num sentido inteiramente decoroso.
Tudo isso se refere à mentalidade do nosso jovem, não só durante a sua vida escolar, senão também durante os anos posteriores a ela, quando já escolhera a sua profissão civil.
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– Já faz quase oito anos – dizia – que te levantamos sobre esta bacia, e que a água com que foste batizado caiu dentro dela. O sacristão Lassen da paróquia de São Jacó verteu-a na concha da mão do bom pastor Bugenhagen, e dali escorreu ela sobre a tua cabeça até a bacia. A água tinha sido amornada, para que não te assustasses e chorasses. E de fato não choraste nem um pouquinho, embora antes gritasses de tal maneira que Bugenhagen tinha dificuldades de fazer seu sermão. Mas quando sentiste a água, ficaste quietinho, e quero acreditar que foi por respeito ao Santo Sacramento. E por estes dias vai fazer quarenta e quatro anos que teu saudoso pai recebeu o batismo, e a água que escorreu da cabeça dele caiu nesta mesma bacia. Foi aqui, nesta casa, sua casa paterna, na sala ao lado, e quem o batizou foi ainda o velho pastor Hesekiel, o mesmo a quem os franceses quase que fuzilaram, quando jovem, porque pregara contra suas rapinagens e saques; esse pastor também já faz muito que está junto de Deus. E há setenta e cinco anos batizaram a mim. Foi também nesta mesma sala, e mantiveram a minha cabeça por cima da bacia, exatamente como a vês agora colocada sobre a bandeja; e o pastor pronunciou as mesmas palavras como no teu batizado e no de teu pai, e a água morna e límpida escorreu da mesma forma dos meus cabelos (não tinha muito mais do que tenho agora), e caiu aqui, nesta bacia dourada. O pequeno levantava os olhos para a fina e comprida cabeça do ancião, que voltava a inclinar-se para a bacia, como fizera naquele momento já longínquo a que se referia. E se apoderava do menino uma sensação ia muitas vezes experimentada, a impressão estranha, entre sonhadora e angustiante, de algo que desfilava sem se mover, que se mudava e contudo permanecia, algo que era reiteração tanto como vertiginosa monotonia – impressão que ele conhecia de outras ocasiões, e cuja volta esperara e desejara. Era em parte pelo prazer de senti-la mais uma vez que pedia ao avô que lhe mostrasse a relíquia da família, na sua imutável progressão. Quando, mais tarde, o jovem se examinava a si mesmo, verificava que a imagem do avô se lhe gravara na memória com muito maior nitidez, intensidade e significação do que a de seus próprios pais; isso talvez se devesse a alguma simpatia ou afinidade física particular, pois o neto se parecia com o avô, tanto quanto um fedelho de faces rosadas pode ter semelhança com um septuagenário encanecido e esclerótico. Mas, antes de tudo, esse fato falava em favor do ancião, que incontestavelmente fora a figura mais característica, a personalidade pitoresca da família. No que se refere aos assuntos públicos, o tempo, já muito antes do traspasse de Hans Lorenz Castorp, passara por cima da sua maneira de ser e pensar. Fora ele um homem profundamente cristão, membro da Igreja Reformista, e de opiniões rigorosamente tradicionalistas; empenhara-se em manter de pé a restrição aristocrática da única classe social capaz de produzir os futuros governantes, e o fizera com tamanha tenacidade como se vivesse no século XIV, quando o artesanato, vencendo a encarniçada resistência do patriciado livre, conquistara o direito de voto e assento no Conselho Municipal. O velho sentia grande dificuldade em adaptar-se a inovações. Sua vida coincidia com uma época de rápido desenvolvimento e múltiplas revoluções, com decênios de progresso em marcha forçada, que haviam exigido muita audácia e grande abnegação nos negócios públicos. Mas Deus sabe que não era culpa do velho Castorp que o espírito moderno obtivesse seus conhecidos e brilhantes triunfos. Ligara ele maior importância às tradições ancestrais e às instituições antigas do que às arriscadas ampliações do porto e outros arremedos ímpios de cidades grandes; refreara e se opusera, sempre que lhe era possível, e se fosse por ele, a administração seria ainda hoje tão idílica e antiquada como o seu próprio escritório. Era assim que o ancião, em tempos de vida e mesmo depois, se apresentava aos olhos de seus concidadãos, e posto que o pequeno Hans Castorp nada entendesse de assuntos públicos, os olhares silenciosos e contemplativos da criança faziam pouco mais ou menos as mesmas observações; observações mudas, despidas de crítica, porém cheias de vida, e que mais tarde, como reminiscência consciente, conservavam o seu caráter de irrestrita aprovação, hostil a qualquer análise verbal. Como já dissemos, havia nisso um quê de simpatia, aquele laço íntimo, aquela afinidade de almas que não raras vezes salta uma geração. Os filhos e os netos olham para admirar, e admiram na intenção de aprender e aperfeiçoar, o que se acha preparado na sua massa hereditária. * A úmida atmosfera da grande cidade marítima, mescla de vida farta e mercantilismo de envergadura mundial, esse ar que enchera de prazer a vida dos seus antepassados, Hans Castorp respirava-o com profunda aprovação, saboreando-o como uma coisa natural. Com o olfato penetrado pelas emanações da água, da hulha e do alcatrão e pelos acres odores de montões de produtos coloniais, via como no cais do porto os enormes guindastes a vapor imitavam a calma, a inteligência e a gigantesca força de elefantes a serviço do homem, transportando toneladas de sacos, fardos, caixas, barris e tambores, do bojo de transatlânticos ancorados até os armazéns das docas ou os vagões da via férrea. Via os comerciantes, com impermeáveis amarelos, tal qual o dele próprio, afluírem à Bolsa, por volta do meio-dia, onde, como ele sabia, se jogava alto, e facilmente acontecia que alguém se visse obrigado a distribuir convites apressados para um grande banquete, destinado a salvar-lhe o crédito. Via – e era este o campo em que mais tarde se concentraram os seus interesses – a multidão que fervilhava nos estaleiros; via os corpos de mamute, de vapores regressados da Ásia ou da África, do dique seco, altos como torres, com as quilhas e as hélices no ar, escorados em pontaletes grossos como árvores, monstruosos na sua paralisia, invadidos por exércitos de operários que pareciam pigmeus, ocupados em raspar, martelar e pintar; via nos picadeiros cobertos erguerem-se, envoltos numa cerração fumosa, os esqueletos de navios em construção, enquanto engenheiros, com os planos de construção e as tabelas de zonchadura na mão, davam ordens aos capatazes. Todas essas coisas eram familiares a Hans Castorp, desde a sua infância, e despertavam nele apenas a sensação confortável e habitual de fazer parte de tudo isso; impressão que culminava, quando, numa manhã de domingo, em companhia de James Tienappel ou de seu primo Ziemssen – Joachim Ziemssen – comia no Pavilhão do Alster pãezinhos quentes com carne defumada, regados por um copo de vinho velho do Porto, após o que se reclinava na poltrona, para aspirar com volúpia a fumaça de seu charuto. Pois era justamente neste ponto que Hans Castorp representava um produto genuíno da sua terra: gostava de viver bem, e apesar da sua aparência anêmica e refinada, agarrava-se com fervor e firmeza, qual um lactente deliciado pelos seios da mãe, aos prazeres físicos que a vida lhe oferecia.
(...) Mas então, o que era a vida? Era calor, o produto calorífico de uma instabilidade preservadora da forma, uma febre da matéria que acompanhava o processo de incessante decomposição e reconstituição de moléculas de albumina, estas mesmas insubsistentes, dadas a complicação e engenhosidade de sua estrutura. Era o ser daquilo que em realidade não podia ser, daquilo que, a muito custo e mediante um esforço delicioso e aflitivo, consegue chegar, nesse processo complexo e febril de decadência e de renovação, ao equilíbrio no ponto do ser. Não era nem matéria nem espírito. Era qualquer coisa entre os dois, um fenômeno sustentado pela matéria, tal e qual o arco-íris sobre a queda-d’água, e igual à chama. Mas, se bem não fosse material, era sensual até a volúpia e até o asco, o impudor da natureza tornada irritável e sensível com respeito a si própria, e a forma lasciva do ser. Era um movimento clandestino, mas perceptível no casto frio do universo, uma secreta e voluptuosa impureza composta de sucção e de evacuação, uma exalação excretória de gás carbônico e de substâncias nocivas de procedência e qualidade ignotas. Era vegetação, desenvolução e configuração — possibilitadas pela hipercompensação da sua instabilidade e controladas pelas leis de formação que lhe eram inerentes — de uma coisa túmida de água, albumina, sal e gorduras, uma coisa que se chamava carne e se convertia em forma, em imagem sublime, em beleza, mas que, ao mesmo tempo, era o princípio da sensualidade e do desejo.
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– “Não faça tanta fita!”, costuma dizer ele – respondeu Joachim. – Foi pelo menos o que disse recentemente numa ocasião dessas. Quem nos contou a história foi a enfermeira-chefe, que estava lá para segurar o agonizante. Era um daqueles que no leito de morte ainda fazem uma cena pavorosa e absolutamente não querem morrer. Então o Behrens ralhou com ele. “Deixe de fazer tanta fita!”, disse, e o paciente logo ficou quietinho e morreu com toda a calma. Hans Castorp deu uma palmada na coxa, e reclinando-se no encosto do banco, dirigiu os olhos para o céu: – Escute, essa é muito forte! – exclamou. – Ralhar com o doente e dizer-lhe simplesmente: “Não faça tanta fita!” A um moribundo! É demais. Afinal de contas, um moribundo merece algum respeito. Não se pode dizer-lhe sem mais aquela... Parece-me que um moribundo é, de certo modo, sagrado. – Não digo o contrário – concedeu Joachim. – Mas quando alguém se comporta covardemente... – Não senhor! – insistiu Hans Castorp, com uma violência que não estava proporcional à oposição que se lhe fazia. – Ninguém me tirará da cabeça que um moribundo é mais nobre do que um indivíduo qualquer que passeia e ri e ganha dinheiro e enche a pança. Não é possível... – Sua voz vacilou estranhamente. – Não é possível que se trate assim... – E de súbito suas palavras se afogaram numa gargalhada que se apoderou dele e o dominou; o mesmo riso da véspera, um riso que lhe brotava das entranhas, lhe sacudia todo o corpo e não tinha fim, que lhe cerrou os olhos e extraiu lágrimas por entre as pálpebras comprimidas.
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O senhor já chegou a conhecê-lo? Hans Castorp disse que sim. – E agora? Estou disposto a acreditar que também ele lhe agrada. – Francamente, Sr. Settembrini, não sei. Falei com ele apenas poucos instantes, e não tenho o hábito de formar uma opinião precipitada. Costumo olhar a gente e pensar: “Então és assim? Muito bem”. – Isto é pura apatia – respondeu o italiano. – Por que não julga? É para esse fim que a natureza lhe deu os olhos e o cérebro. O senhor achou que eu era malicioso, mas quando eu falava assim talvez o fizesse com intenções pedagógicas. Nós, os humanistas temos todos uma veia pedagógica... Meus senhores, o laço histórico entre o humanismo e pedagogia é a prova do laço psicológico que existe entre ambos. Não convém privar os humanistas da sua função educadora... Não se lhes pode arrebatar essa função, porque só entre eles se encontra a tradição da dignidade e da beleza do Homem. Um dia, o humanista substituiu o sacerdote, que numa época sombria e misantrópica ousara arrogar-se a direção da juventude. Desde então, senhores não surgiu mais nenhum tipo novo de educador. O ginásio humanista – o senhor pode me chamar de reacionário, meu caro engenheiro, mas, por princípio, in abstrato, queira compreender-me bem, continuo seu adepto...
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Que é o tempo, afinal? – perguntou Hans Castorp comprimindo o nariz com tamanha violência, que a ponta se tornou branca e exangue. – Quer me dizer isto? Percebemos o espaço com nossos sentidos, por meio da vista e do tato. Muito bem! Mas que órgão possuímos para perceber o tempo? Pode me responder a essa pergunta? Bem vê que não pode. Como é possível medir uma coisa da qual, no fundo, não sabemos nada, nada, nem sequer uma única das suas características? Dizemos que o tempo passa. Está bem, deixe-o passar. Mas para que possamos medi-lo... Espere um pouco! Para que o tempo fosse mensurável, seria preciso que decorresse de um modo uniforme; e quem lhe garante que é mesmo assim? Para a nossa consciência, não é. Somente o supomos, para a boa ordem das coisas, e as nossas medidas, permita-me esta observação, não passam de convenções...
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❝Há duas atitudes: a livre e a piedosa. Ambas têm as suas vantagens, mas o que me faz antipatizar com a atitude livre, quero dizer, a de Settembrini, é que ela pretende ter o monopólio da dignidade. Isso é exagerado. A outra atitude encerra também, a seu modo, muita dignidade humana e resulta num vasto conjunto de decência, de procedimento correto e de cerimonial, muito mais do que a atitude livre, embora vise especialmente à fraqueza e à instabilidade dos homens e nela desempenhe um papel importante o papel da morte e da decomposição.
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❝- Meu amigo, não existe conhecimento puro. É indiscutível a legitimidade da concepção eclesiástica da ciência, que se pode resumir nas palavras de Santo Agostinho: “Creio para que possa conhecer”. A fé é o órgão do conhecimento, e o intelecto é secundário. A sua ciência incondicional não passa de um mito. Há sempre uma fé, um conceito do mundo, uma ideia, numa palavra: uma vontade, e cabe à razão explicá-la e comprová-la.
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À minha mesa há também uma senhora desse tipo, a Srª. Stöhr... Creio que o senhor a conhece. É de uma ignorância pavorosa, não há dúvida, e às vezes a gente não sabe para onde olhar, quando ela se mete a tagarelar. Contudo, lamenta-se essa mulher da sua temperatura e de se sentir tão lassa. Parece, infelizmente, que não se trata de um caso benigno. E isto é estranho, estupidez e doença, não sei se me expresso claramente, mas tenho uma impressão tão esquisita ao ver uma pessoa estúpida que ainda por cima está doente! Essas duas coisas reunidas, acho que são o que há de mais triste neste mundo. Não se sabe como comportar-se, pois todos gostam, afinal, de tratar um enfermo com seriedade e respeito, não é? A doença é, por assim dizer, uma coisa digna de reverência. Mas quando a estupidez, a cada instante, se intromete, dizendo “fómulo” ou “estabelecimento cósmico”, ou outras asneiras do mesmo quilate – francamente, então não sei se devo rir ou chorar. É um dilema para o sentimento humano, e uma situação tão lamentável que nem posso dizer. Na minha opinião, não há coerência nessas duas coisas; elas não combinam; a gente é incapaz de imaginá-las reunidas. Sempre se pensa que uma pessoa estúpida deve ser normalmente sadia; e que a doença torna as criaturas finas e cultas e diferentes. É assim que se pensa em geral, não é? (...) meu caro engenheiro! O senhor acaba de manifestar qualidades filosóficas que eu não esperava da sua parte. De acordo com a sua teoria, deveria estar menos sadio do que aparenta, porque, evidentemente, possui espírito. Permita-me, no entanto, observar que não pude acompanhar as suas deduções, que as rejeito e me oponho a elas com verdadeira hostilidade. Tal como o senhor me vê, sou um pouco intolerante em assuntos espirituais e prefiro ser tachado de pedante a deixar de combater opiniões que me parecem tão censuráveis como essas que o senhor nos apresentou... Per... mita-me... Já sei o que o senhor tenciona replicar. Quer dizer que não falou muito a sério, que os pontos de vista que acaba de expor não são propriamente os seus, que apenas apanhou uma opinião dentre as muitas possíveis que flutuam no ar, e que o fez a fim de se exercitar um pouco, sem assumir nenhuma responsabilidade. É o que está em harmonia com a sua idade, que ainda se compraz em dispensar a resolução viril e em tentar, provisoriamente, toda espécie de teorias. Placet experiri – acrescentou, pronunciando o “c” de placet brandamente, à italiana. – Uma excelente máxima. O que me deixa pasmado é apenas o fato de ver as suas experiências tomarem justamente este rumo. Não me parece tratar-se de um mero acaso. Receio que exista no senhor uma tendência capaz de se arraigar no seu caráter, se não for combatida a tempo. Por isso me creio na obrigação de corrigi-lo. O senhor opinou que a doença reunida à estupidez era a coisa mais triste que havia no mundo. Estou de acordo. Também eu prefiro um doente espirituoso a um bobalhão tísico, porém não posso deixar de protestar, quando o senhor se mete a considerar a combinação de enfermidade e tolice como uma espécie de falta de estilo, um ato de mau gosto praticado pela Natureza, e um dilema para o sentimento humano, conforme lhe aprouve expressar-se. E quando o senhor julga a doença tão nobre e – como dizia? – tão digna de reverência, que simplesmente não se pode harmonizar com a estupidez. É outra expressão sua. Pois bem, eu não concordo com isso. A doença absolutamente não é nobre, e nem um pouquinho digna de reverência. Essa concepção é por si mesma mórbida ou leva à morbidez.
Thomas Mann, A montanha mágica