terça-feira, 28 de junho de 2016

A Queda, capítulo 2


Minha profissão satisfazia, felizmente, essa vocação das alturas. Ela me livrava de qualquer amargura em relação ao próximo, a quem eu sempre servia, sem nunca lhe dever nada.
Ela me colocava acima do juiz, que, por minha vez, eu julgava; acima do réu, que eu obrigava ao reconhecimento. Medite bem sobre isso, meu caro senhor: eu vivia impunemente.
Nenhum julgamento me dizia respeito, não me encontrava no palco do tribunal, mas em algum lugar nas galerias, como esses deuses que, de tempos em tempos, se fazem descer por meio de um maquinismo, para transfigurar a ação e dar-lhe sentido. Afinal, viver no alto ainda é a única maneira de ser visto e saudado pela maioria das pessoas.
Aliás, alguns de meus bons criminosos tinham, ao matar, obedecido ao mesmo sentimento.
A leitura dos jornais, na triste situação em que se encontravam, trazia-lhes, sem dúvida, uma espécie de infeliz compensação. Como muitos outros homens, eles já não suportavam o anonimato, e essa impaciência os havia, em parte, levado a lastimáveis extremos.
Em suma, para alguém se tornar conhecido, basta matar a porteira. Trata-se, infelizmente, de uma reputação efêmera, tantas são as porteiras que merecem e recebem uma facada. O crime está incessantemente em cena, mas o criminoso só figura fugazmente, para logo ser substituído.
Enfim, paga-se muito caro por estes breves triunfos. Pelo contrário, defender nossos infelizes aspirantes à fama resultava em ser verdadeiramente reconhecido, ao mesmo tempo e nos mesmos lugares, mas por meios mais econômicos. Isso animava-me também a envidar apreciáveis esforços para que eles sofressem a menor pena possível: a que sofriam, sofriam-na um pouco em meu lugar. A indignação, o talento, a emoção que eu despendia livravam-me, em compensação, de qualquer dívida em relação a eles. Os juízes condenavam, os réus expiavam e eu, livre de qualquer obrigação, isento tanto de julgamento quanto de sanção, eu imperava, livremente, numa luz edênica.
Na realidade, não seria isso o Éden, meu caro senhor: a vida bem engrenada? Foi assim a minha. Nunca tive necessidade de aprender a viver. A esse respeito, já sabia de tudo ao nascer.
Há pessoas cujo problema é resguardar-se dos homens ou, pelo menos, acomodar-se a eles.
Quanto a mim, a acomodação estava feita. Familiar quando era preciso, silencioso se necessário, capaz tanto de desenvoltura quanto de gravidade, estava sempre à altura. Dessa forma, era grande minha popularidade, e meus êxitos no mundo eu nem contava mais. Fazia boa figura, revelava-me simultaneamente incansável dançarino e erudito discreto, chegava a amar ao mesmo tempo, o que não é nada fácil, as mulheres e a justiça, praticava esportes e belas-artes. Em resumo: vou parar para que não me julgue imodesto. Mas imagine, eu lhe peço, um homem na força da idade, com a saúde perfeita, generosamente dotado, hábil tanto nos exercícios do corpo quanto da inteligência, nem pobre nem rico, de sono fácil, e profundamente satisfeito consigo mesmo, sem demonstrá-la, a não ser por uma alegre sociabilidade. Admitirá, então, que eu possa falar, com toda a modéstia, de uma vida bem-sucedida.
Sim, poucos seres terão sido mais integrados à natureza do que eu. Meu entendimento com a vida era total, eu aderia ao que ela era, de alto a baixo, sem nada recusar de suas ironias, de sua grandeza, nem de suas servidões. Particularmente a carne, a matéria, em resumo, o físico, que desconcerta ou desanima tantos homens no amor ou na solidão, dava-me, sem me escravizar, alegrias iguais. Fora feito para ter um corpo. Daí essa harmonia em mim próprio, esse autocontrole sem esforço que as pessoas sentiam e que, segundo confessavam, às vezes, ajudava-as a viver. Buscavam, pois, minha companhia. Muitas vezes, por exemplo, julgavam já me ter encontrado. A vida, seus seres e seus dons vinham ao meu encontro; eu aceitava essas homenagens com orgulho benevolente. Na verdade, à força de ser homem, com tanta plenitude e simplicidade, achava-me um pouco super-homem.
Era de origem honesta, mas obscura (meu pai era militar) e, no entanto, certas manhãs, humildemente o confesso, sentia-me um filho de rei ou uma sarça ardente. Tratava-se, repare bem, de algo bem diferente da certeza em que eu vivia de ser mais inteligente do que todo mundo. Tal certeza, aliás, não tem consequência, pelo fato de ser compartilhada por tantos imbecis. Não, por estar no auge, eu me sentia, hesito em confessá-la, um eleito. Eleito pessoalmente, entre todos, para este longo e constante êxito. Nisso residia, em suma, um efeito de minha modéstia. Negava-me a atribuir este êxito unicamente a meus méritos e não conseguia acreditar que a reunião, numa só pessoa, de qualidades tão diferentes e tão opostas resultasse de mero acaso. Eis por que, vivendo feliz, eu me sentia, de certo modo, autorizado a gozar esta felicidade por algum decreto superior. Se eu lhe disser que não tinha religião alguma, você compreenderá ainda melhor o que havia de extraordinário nessa convicção.
Extraordinária ou não, ela me ergueu durante muito tempo acima do tedioso dia a dia, e fiquei planando literalmente, durante anos, dos quais, para dizer a verdade, ainda tenho saudades. Planei até a noite em que... Mas, não, isso é outro assunto que deve ser esquecido. Aliás, talvez eu esteja exagerando. Sentia-me à vontade em tudo, é bem verdade, mas, ao mesmo tempo, nada me satisfazia. Cada alegria fazia com que desejasse outra. Ia de festa em festa. Chegava a dançar noites inteiras, cada vez mais louco com os seres e com a vida. Às vezes, já bastante tarde, nessas noites em que a dança, o álcool leve, meu modo desenfreado, o violento abandono de todos me lançavam a um arrebatamento ao mesmo tempo lasso e pleno, parecia-me no extremo da exaustão e no espaço de um segundo, compreender, enfim, o segredo dos seres e do mundo. Mas o cansaço desaparecia no dia seguinte e com ele o segredo; e eu me lançava outra vez com todo ímpeto. Assim corria eu, sempre pleno, jamais saciado, sem saber onde parar, até o dia, ou melhor, até a noite em que a música parou e as luzes se apagaram. A festa em que eu fora feliz...

Albert Camus
A Queda (Capítulo 2)