ÂNGELA.- Viver me deixa trêmula.
AUTOR.- A mim também a vida me faz estremecer.
ÂNGELA.- Estou ansiosa e aflita.
AUTOR.- Vejo que Ângela não sabe como começar. Nascer é difícil. Aconselho-a a falar mais facilmente sobre fatos? Vou ensiná-la a começar pelo meio. Ela tem que deixar de ser tão hesitante porque senão vai ser um livro todo trêmulo, uma gota d'água pendurada quase a cair e quando cai divide-se em estilhaços de pequenas gotas espalhadas. Coragem, Ângela, comece sem ligar para nada.
ÂNGELA.- ...e me indago a mim mesma se estou perto de morrer. Porque escrevo quase em estertor e sinto-me dilacerada como numa despedida de adeus.
AUTOR.- Isto afinal é um diálogo ou um duplo diário? Só sei uma coisa: neste momento estou escrevendo: "neste momento" é coisa rara porque só às vezes piso com os dois pés na terra do presente: em geral um pé resvala para o passado, outro pé resvala para o futuro. E fico sem nada. Ângela é a minha tentativa de ser dois. Infelizmente, porém, nós, por força das circunstâncias, nos parecemos e ela também escreve porque só conheço alguma coisa do ato de escrever. (Apesar de que eu não escrevo: eu falo.) Fiz uma breve avaliação de posses e cheguei à conclusão espantada de que a única coisa que temos que ainda não nos foi tirada: o próprio nome. Ângela Pralini, nome tão gratuito quanto o teu e que se tornou título de minha trêmula identidade. Essa identidade me leva a algum caminho? Que faço de mim? Pois nenhum ato me simboliza.
ÂNGELA.- Astronomia me leva a uma estrela de Deus. Se evola em incenso puro que se quebra em palavras de vidro.
AUTOR.- Meu não-eu é magnífico e me ultrapassa. No entanto ela me é eu.
ÂNGELA.- Eu nasci amalgamada com a solidão deste exato instante e que se prolonga tanto, e tão funda é, que já não é minha solidão mas a Solidão de Deus. Alcancei afinal o momento em que nada existe. Nem um carinho de mim para mim: a solidão é esta a do deserto. O vento como companhia. Ah mas que frio escuro está fazendo. Cubro-me com a melancolia suave, e balanço-me daqui para lá, daqui para lá, daqui para lá. Assim. É! É assim mesmo.
AUTOR.- AS palavras de Ângela são antipalavras: vêm de um abstrato lugar nela onde não se pensa, esse lugar escuro, amorfo e gotejante como uma primitiva caverna. Ângela, ao contrário de mim, raramente raciocina: ela só acredita. Agora, por medo de escrever, deixo-te falar, mesmo inconsequentemente como te criei. Eis-te, no teu doido ininteligível diálogo comigo:
ÂNGELA.- Eu, gazela espavorida e borboleta amarela. Eu não passo de uma vírgula na vida. Eu que sou dois pontos. Tu, és a minha exclamação. Eu te respiro-me. Eu sou oblíqua como o voo dos pássaros. Intimidada, sem forças, sem esperança, sem avisos, sem notícias — tremo — toda trêmula. Me espio de viés. Que esforço eu faço para ser eu mesma. Luto contra uma maré em nau onde só cabem meus dois pés em frágil equilíbrio ameaçado. Viver é um ato que não premeditei. Brotei das trevas. Eu só sou válida para mim mesma. Tenho que viver aos poucos, não dá para viver tudo de uma vez. Nos braços de alguém eu morro toda. Eu me transfiguro em energia que tem dentro dela o atômico nuclear. Sou o resultado de ter ouvido uma voz quente no passado e de ter descido do trem quase antes dele parar — a pressa é inimiga da perfeição e foi assim que corri para a cidade perdendo logo a estação e a nova partida do trem e seu momento privilegiado que desperta espanto tão dolorido que é o apito do trem, que é adeus.
AUTOR.- Ei-la falando como se fosse comigo mas fala para o ar e nem sequer para si mesma e só eu aproveito do que ela fala porque ela é de mim para mim. Ângela é o meu personagem mais quebradiço. Se é que chega a ser personagem: é mais uma demonstração de vida além-escritura como além-vida e além-palavra. Amo Ângela, porque ela diz o que não tenho coragem de dizer porque temo a mim mesmo? ou porque acho inútil falar? Porque o que se fala se perde como o hálito que sai da boca quando se fala e se perde aquela porção de hálito para sempre.
ÂNGELA.- Eu te amo tanto como se sempre estivesse te dizendo adeus. Quando estou só demais, uso guisos ao redor dos tornozelos e dos pulsos. Então quase cada um de meus pensamentos se externam e voltam para mim como respostas. Minha mais tênue energia faz com que eles logo vibrem estremecendo em luz e som. Eu tenho que ser minha amiga, senão não aguento a solidão. Quando estou sozinha procuro não pensar porque tenho medo de de repente pensar uma coisa nova demais para mim mesma. Falar alto sozinha e para "o quê" é dirigir-se ao mundo, é criar uma voz potente que consegue — consegue o quê? A resposta: consegue o "o quê". "O quê" é o sagrado sacro do universo.
AUTOR.- EU também não sei não-pensar. Acontece sem esforço. Só é difícil quando procuro obter essa escuridão silenciosa. Quando estou distraído, caio na sombra e no oco e no doce e no macio nada-de-mim. Me refresco. E creio. Creio na magia, então. Sei fazer em mim uma atmosfera de milagre. Concentro-me sem visar nenhum objeto — e sinto-me tomado por uma luz. É um milagre gratuito, sem forma e sem sentido — como o ar que profundamente respiro a ponto de ficar tonto por uns instantes. Milagre é o ponto vivo do viver. Quando eu penso, estrago tudo. É por isso que evito pensar: só vou mesmo é indo. E sem perguntas por que e para quê. Se eu penso, uma coisa não se faz, não aconteço. Uma coisa que na certa é livre de ir enquanto não for aprisionada pelo pensamento.
ÂNGELA.- Tenho profundo prazer em rezar — e entrar em contato íntimo e intenso com a vida misteriosa de Deus. Não há nada no mundo que substitua a alegria de rezar. Hoje varri o terraço das plantas. Como é bom mexer nas coisas deste mundo: nas folhas secas, no pólen das coisas (a poeira é filha das coisas) Meu cotidiano é muito enfeitado. Estou sendo profundamente feliz.
AUTOR.- Fale, Ângela, fale mesmo sem fazer sentido, fale para que eu não morra completamente.
ÂNGELA.- Estou em agonia: quero a mistura colorida, confusa e misteriosa da natureza. Que unidos vegetais e algas, bactérias, invertebrados, peixes, anfíbios, répteis, aves, mamíferos concluindo o homem com os seus segredos.
AUTOR.- VOU tirar férias de mim e deixar Ângela falar. Se eu um dia for ler essas coisas que estou escrevendo, quero que no buraco negro da noite eu encontre milhares de fogos-de-artifício mudos mas acompanhados pelos estilhaços de milhares de cristais cantantes. É esta a noite escura que quero um dia encontrar fora de mim e de dentro. Ângela me deu agora um repente de mim e me senti feliz. Felicíssimo, não sei por quê. Aceito? Não, por algum motivo secreto sinto uma grande carga de mal-estar e ansiedade quando atinjo o cume nevado de uma felicidade-luz. Dói no corpo o ar purificado demais. Ângela tem asas.
ÂNGELA.- Eu gosto tanto do que não entendo: quando leio uma coisa que não entendo sinto uma vertigem doce e abismal.
AUTOR.- Quando eu era uma pessoa, e ainda não um rigoroso pleno de palavras, eu era mais incompreendido por mim. Mas era-me aceito na totalidade. Mas a palavra foi aos poucos me desmistificando e me obrigando a não mentir. Eu posso ainda às vezes mentir para os outros. Mas para mim mesmo acabou-se a minha inocência e estou mais em face de uma obscura realidade que eu quase, quase, pego na mão. É uma verdade secreta, sigilosa, e eu às vezes me perco no que ela tem de fugidia. Só valho como descoberta.
ÂNGELA.- Eu sou uma atriz para mim. Eu finjo que sou uma determinada pessoa mas na realidade não sou nada.
AUTOR.- EU pensava que um polídrico de sete pontas se dividisse em sete partes iguais dentro de um círculo. Mas não caibo. Sou de fora. É culpa minha se não tenho acesso a mim mesmo?
ÂNGELA.- Não caio na tolice de ser sincera.
AUTOR.- Afinal, Ângela, o que é que você faz?
ÂNGELA.- Cuido da vida. A grande noite do mundo quando não havia vida.
AUTOR.- Ângela significa o único ser que ela é: só existe uma Ângela. Nenhum ato meu sou eu. Ângela será o ato que me representará. Eu perdi de vista o meu destino. Meu pedido nunca se esgota. Eu peço. O que peço? Isto: a possibilidade de eternamente pedir. Eu não tenho nenhuma missão: vivo porque nasci. E morrerei sem que a morte me simbolize. Fora de mim sou Ângela. Dentro de mim sou anônimo. Viver exige tal audácia. Me sinto perdido como se estivesse dormindo no deserto do Ministério da Fazenda. — Ângela, agora estou me dirigindo diretamente a você e peço-lhe pelo amor de Deus para você enfim chorar. Queira, por favor, consentir e chore. Porque, quanto a mim, não aguento mais a espera. Dê um grito de dor! Um grito vermelho! E as lágrimas rebentam a comporta e lavam um rosto cansado. Lavam como se fossem orvalho.
ÂNGELA.- Sou pura?
AUTOR.- A pureza seria tão violenta quanto a cor branca. Ângela é cor de avelã. Tenho grande necessidade de viver de muita pobreza de espírito e de não ter luxo de alma. Ângela é luxo e me incomoda. Vou me afastar dela e entrar em mosteiro, isto é, empobrecer. Escolhi hoje para me vestir umas calças muito velhas e uma camisa rasgada. Sinto-me bem em molambos, tenho nostalgia de pobreza. Comi só frutas e ovos, recusei o sangue rico da carne, eu quis comer apenas o que era de nascedouros e provindo sem dor, só brotando nu como o ovo, como a uva. Essa noite não dormi com minha mulher porque mulher é luxo e luxúria, e faz dois de mim, e eu quero ser um apenas para não ser um número divisível por nenhum outro. Bebi água em jejum. E entrei devagar no meu próprio e inestimável e infinito deserto. Quando nesse deserto a penúria fica insuportável — crio Ângela como miragem, ilusão de ótica e de espírito, mas tenho que me abster de Ângela porque ela é riqueza de alma. Agora me deu vontade de fazer Ângela pintar.
ÂNGELA.- Estou pintando um quadro com o nome de "Sem Sentido". São coisas soltas — objetos e seres que não se dizem respeito, como borboleta e máquina de costura. [Autor narrando os fatos da vida de Ângela] Eu PASSO PELOS FATOS o mais rapidamente possível porque tenho pressa. A meditação secretíssima me espera. Para escrever eu antes me despojo das palavras. Prefiro palavras pobres que restam. Rapidamente dou os traços biográficos de Ângela Pralini: rapidamente porque dados e fatos me chateiam. Vejamos, pois: nasceu no Rio de Janeiro, tem 34 anos, um metro e setenta de altura e é bem nascida, embora filha de pais pobres. Uniu-se a um industrial, etc.
ÂNGELA.- Eu sou individual como um passaporte. Eu sou fichada no Félix Pacheco. Devo me orgulhar de pertencer ao mundo ou devo me desconsiderar por?
AUTOR.- Ângela tem um doce olhar adoidado, veludo úmido, pérolas mornas mas castanhas e às vezes duras como duas nozes castanhas. Às vezes tem olhos como os de vaca que está sendo ordenhada. Olhos suados. Abelha coruscante e melíflua que me sobrevoa em busca do meu mel para ocultá-lo em casulo como estava ocultado em mim. Ângela é ainda um casulo fechado, como se eu ainda não tivesse nascido, enquanto eu não abrir em metamorfose, Ângela será minha. Quando eu tiver forças de ficar sozinho e mudo — então soltarei para sempre a borboleta do casulo. E mesmo que só viva um dia, essa borboleta, já me serve: que esvoe suas cores brilhantes sobre o brilho verde das plantas num jardim de manhã de verão. Quando a manhã ainda é cedo, se parece igual a uma borboleta leve. O que há de mais leve que uma borboleta. Borboleta é uma pétala que voa.
ÂNGELA.- A dança dos convidados. Irlanda, tu nunca me verás. Malta, de Malta, tu és a prisão. Um dedo sangrento aponta para cima. E eu me lembro do futuro. Neerlandesa — é o que sou. E sou setembro também. A quantidade de frutas que a madame tem. O cachorro à procura do próprio rabo. Acudam! incêndio! E eu sou música de câmara.
AUTOR.- Ângela é uma curva em interminável sinuosa espiral. Eu sou reto, escrevo triangularmente e piramidalmente. Mas o que está dentro da pirâmide — o segredo intocável o perigoso e inviolável — esse é Ângela. O que Ângela escreve pode ser lido em voz alta: suas palavras são voluptuosas e dão prazer físico. Eu sou geométrico, Ângela é espiral de finesse. Ela é intuitiva, eu sou lógico. Ela não tem medo de errar no emprego das palavras. E eu não erro. Bem sei que ela é uva sumarenta e eu sou a passa. Eu sou equilibrado e sensato. Ela está liberta do equilíbrio que para ela é desnecessário. Eu sou controlado, ela não se reprime — eu sofro mais do que ela porque estou preso dentro de uma estreita gaiola de forçada higiene mental. Sofro mais porque não digo porque sofro.
ÂNGELA.- E eu não passo de uma promessa. Mas sou estrela. Sinto que sou estrela. Espatifada. Sou caco de vidro no chão.
AUTOR.- Essa mulher é contundente para si própria ela é as pontas agudas de uma estrela. Essas pontas faiscantes me ferem também. Você não sabe viver a partir de um instanteclímax: você o sente mas não é capaz de prolongá-lo em atitude permanente. Você não aprende com ninguém, nem aprende consigo mesma. Respeito você embora você não seja meu igual. E eu sou o meu igual? Eu sou eu? Essa indagação vem do que observo que você não parece saber a si mesma. Você talvez desconheça que tem um centro de si mesma e que é duro como uma noz de onde se irradiam tuas palavras fosforescentes.
ÂNGELA.- Falando sério: o que é que eu sou? Sem resposta. Então tiro o corpo fora. Sou Strauss ou só Beethoven? Rio ou choro? Eu sou nome. Eis a resposta. É pouco. De repente eu me vi e vi o mundo. E entendi: o mundo é sempre dos outros. Nunca meu. Sou o pária dos ricos. Os pobres de alma nada armazenam. A vertigem que se tem quando num súbito relâmpago-trovoada se vê o clarão do não entender. Eu NÃO ENTENDO! Por medo da loucura, renunciei à verdade. Minhas ideias são inventadas. Eu não me responsabilizo por elas. O mais engraçado é que nunca aprendi a viver. Eu não sei nada. Só sei ir vivendo. Como o meu cachorro. Eu tenho medo do ótimo e do superlativo. Quando começa a ficar muito bom eu ou desconfio ou dou um passo para trás. Se eu desse um passo para a frente eu seria enfocada pelo amarelado de esplendor que quase cega.
AUTOR.- Ângela é o tremor vibrante de uma corda tensa de harpa depois que é tocada: ela fica no ar ainda se dizendo, dizendo — até que a vibração morra espraiando-se em espumas pelas areias. Depois — silêncio e estrelas. Conheço de cor o corpo de Ângela.Só não entendi o que ela quer. Mas dei-lhe tal forma à minha vida que ela me parece mais real do que eu. ÂNGELA.- Minha vida é um grande desastre. É um desencontro cruel, é uma casa vazia. Mas tem um cachorro dentro latindo. E eu — só me resta latir para Deus. Vou voltar para mim mesma. É lá que eu encontro uma menina morta sem pecúlio. Mas uma noite vou à Secção de Cadastro e ponho fogo em tudo e nas identidades das pessoas sem pecúlio. E só então fico tão autônoma que só pararei de escrever depois de morrer. Mas é inútil, o lago azul da eternidade não pega fogo. Eu é que me incineraria até meus ossos. Virarei número e pó. Que assim seja. Amém. Mas protesto. Protesto à toa como um cão na eternidade da Secção de Cadastro.
AUTOR.- Ângela é muito parecida com o meu contrário. Ter dentro de mim o contrário do que sou é em essência imprescindível: não abro mão de minha luta e de minha indecisão e o fracasso — pois sou um grande fracassado — o fracasso me serve de base para eu existir. Se eu fosse um vencedor? morreria de tédio. "Conseguir" não é o meu forte. Alimento-me do que sobra de mim e é pouco. Sobra porém um certo secreto silêncio.
ÂNGELA.- Eu só uso o raciocínio como anestésico. Mas para a vida sou diretamente uma perene promessa de entendimento do meu mundo submerso. Agora que existem computadores para quase todo o tipo de procura de soluções intelectuais — volto-me então para o meu rico nada interior. E grito: eu sinto, eu sofro, eu me alegro, eu me comovo. Só o meu enigma me interessa. Mais que tudo, me busco no meu grande vazio. Procuro me manter isolada contra a agonia de viver dos outros, e essa agonia que lhes parece um jogo de vida e morte mascara uma outra realidade, tão extraordinária essa verdade que os outros cairiam de espanto diante dela, como num escândalo. Enquanto isso, ora estudam, ora trabalham, ora amam, ora crescem, ora se afanam, ora se alegram, ora se entristecem. A vida com letra maiúscula nada pede me dar porque vou confessar que também eu devo ter entrado por um beco sem saída como os outros. Porque noto em mim, não um bocado de fatos, e sim procuro quase tragicamente ser. É uma questão de sobrevivência assim como a de comer carne humana quando não há alimento. Luto não contra os que compram e vendem apartamentos e carros e procuram se casar e ter filhos mas luto com extrema ansiedade por uma novidade de espírito. Cada vez que me sinto quase um pouco iluminada vejo que estou tendo uma novidade de espírito.
Clarice Lispector, Um sopro de vida