Depois de tudo, as crianças demoram muito tempo para descobrir que têm um corpo. Durante meses, durante mais de um ano, não têm mais que um corpo disperso, membros, cavidades, orifícios, e tudo isto não se organiza, tudo isto não se corporiza literalmente, senão na imagem do espelho. De uma maneira mais estranha ainda, os gregos de Homero não tinham uma palavra para designar a unidade do corpo. Por mais paradoxal que possa parecer, diante de Tróia, sob os muros defendidos por Heitor e seus companheiros, não havia corpo, havia braços levantados, havia peitos valorosos, pernas ágeis, cascos brilhantes acima das cabeças: não havia um corpo. A palavra grega que significa corpo só aparece em Homero para designar o cadáver. É esse cadáver, por conseguinte, é o cadáver e é o espelho que nos ensinam (enfim, que ensinaram os gregos e que ensinam agora as crianças) que temos um corpo, que esse corpo tem uma forma, que essa forma tem um contorno, que nesse contorno há uma espessura, um peso, numa palavra, que o corpo ocupa um lugar. O espelho e o cadáver assinalam um espaço à experiência profunda e originariamente utópica do corpo; o espelho e o cadáver fazem calar e apaziguam e fecham sobre um fecho – que agora está para nós selado – essa grande raiva utópica que deteriora e volatiliza a cada instante o nosso corpo. É graças a eles, ao espelho e ao cadáver, que o nosso corpo não é pura e simples utopia. Ora, se se pensa que a imagem do espelho está alojada para nós em um espaço inacessível, e que jamais poderemos estar ali onde estará o nosso cadáver, se pensamos que o espelho e o cadáver estão eles mesmos em um invencível outro lugar, então se descobre que só utopias podem encerrar-se sobre elas mesmas e ocultar um instante a utopia profunda e soberana de nosso corpo.
Michel Foucault, Corpo Utópico