quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Elogio da transitoriedade

Os senhores ficarão surpresos ao ouvir minha resposta à sua pergunta sobre aquilo em que acredito ou o que estimo estar acima de tudo: é a transitoriedade.

Mas a transitoriedade é muito triste, dirão os senhores. Não, replico eu, ela é a alma do ser, é o que confere valor, dignidade e interesse à vida, pois a transitoriedade produz o tempo – e o tempo é, ao menos potencialmente, a maior e a mais útil das dádivas, aparentada em sua essência ou, melhor, idêntica a tudo que é criador e ativo e vivaz, a toda vontade e esforço, a todo aperfeiçoamento, a todo progresso rumo ao melhor e ao mais elevado. Onde não há passado, começo e fim, nascimento e morte, ali não há tempo – e a atemporalidade é o nada estático, tão boa e tão ruim quanto este, quanto o absolutamente desinteressante.

Os biólogos estimam a idade da vida orgânica sobre a Terra em cerca de 550 milhões de anos. Ao longo desse tempo, a vida desenvolveu suas formas em inúmeras mutações até chegar ao homem, seu filho mais jovem e mais irrequieto. Ninguém saberia dizer se ainda está reservado à vida tanto tempo quanto já se passou desde o seu surgimento. Ela é muito tenaz, mas está presa a condições determinadas e, assim como teve um começo, também terá um fim. A habitabilidade de um corpo celeste é um episódio de sua existência cósmica. E se a vida completasse mais 550 milhões de anos – ainda assim, medido pelo metro dos éons, isso não seria mais que um interlúdio passageiro.

Ela perde por isso o seu valor? Ao contrário, penso eu, a vida ganha enormemente em valor e alma e interesse, torna-se propriamente cativante e desperta nossa simpatia por sua própria condição episódica – e, mais que tudo, por obra da condição misteriosa e indefinível que é a sua. Por seus componentes, não se distingue em nada de uma outra existência material qualquer. Quando se desligou do inorgânico, foi necessário que a ela se acrescentasse algo que nenhum laboratório até agora pôde fixar e compreender. E não parou aí. O homem destacou-se mais uma vez, desta feita do domínio animal – por obra da evolução, como se pretende, mas, na verdade, novamente por obra de um acréscimo que só se deixa capturar de modo deficiente com termos como “razão” e “cultura”. A elevação do homem acima do domínio animal, do qual muito ainda resta nele, é da escala e da importância de uma geração espontânea – a terceira, depois da criação do cosmo a partir do nada e do despertar da vida no seio da existência inorgânica.

Entre as características mais essenciais que distinguem o homem do resto da natureza está a consciência da transitoriedade, do começo e do fim e, portanto, da dádiva do tempo – desse elemento tão subjetivo, tão singularmente variável, tão inteiramente sujeito em seu uso à influência do elemento ético que uma partícula sua pode transformar-se em muita, muita coisa. Há corpos celestes de densidade tão incrível que uma polegada cúbica de sua matéria pesaria uma tonelada na Terra. Assim é o tempo do homem que cria: tem outra estrutura, densidade, fertilidade que o tempo da maioria, feito de trama mais frouxa e frágil; admirado com o muito que se acomoda nesse outro tempo, o mais dos homens pergunta: “Mas quando você faz tudo isso?”

A transitoriedade insufla alma ao ser, e isso se dá em grau máximo no homem. Não que ele seja o único a ter alma. Tudo tem alma. Mas a sua é a mais desperta, por conhecer a equivalência dos conceitos de “ser” e “transitoriedade”, por conhecer a dádiva do tempo. Ao ser humano é dado santificar o tempo, ver nele um campo fértil que clama por cultivo constante, concebê-lo como espaço da atividade, do esforço incessante, da autorrealização, do progresso rumo às suas mais altas possibilidades – ao homem é dado, com o auxílio do tempo, extrair o imperecível do transitório.

A astronomia, ciência grandiosa, ensinou-nos a considerar a Terra como uma estrela insignificante no gigantesco turbilhão do cosmo, uma estrelazinha secundária a vagar na periferia da própria Via Láctea. Tudo isso é sem dúvida correto em termos científicos – mas, ainda assim, duvido que a verdade se esgote nessa correção. No fundo da alma, acredito – e julgo que essa crença seja natural para toda alma humana – que cabe à Terra uma significação central na ordem do universo. No fundo da alma, guardo a suposição de que o “Faça-se” que criou o cosmo a partir do nada anorgânico e gerou a vida já mirava o homem, e de que com o homem teve início um grande ensaio. Um fracasso pelas mãos do homem equivaleria ao fracasso, à revogação de toda a criação.

Sendo ou não assim – seria bom que o homem se portasse como se assim fosse.

Thomas Mann, in Travessia marítima com Dom Quixote – Ensaios sobre homens e artistas