Emil Cioran
(Breviário de Decomposição, pág.188, ed. Rocco, 2011)
Emil Cioran
(Breviário de Decomposição, pág.188, ed. Rocco, 2011)
Ao pentear-se, com o sol
a entrar pela janela, perguntava
a si própria se era a mesma de ontem,
como se houvesse
alguma lógica na relação entre a luz
e o pensamento que nascia do seu gesto. Mas
o que a manhã trazia era um sentimento
que interrompia o passar
dos minutos, e a levava a descobrir
que a vida pode ser um parêntesis
entre uma hora e outra. E quando
se olhava ao espelho, o tempo
voltava a passar no mostrador do relógio,
com o ponteiro a correr no sentido inverso,
trazendo-a de volta a um hoje
em que amanhã é o mesmo
dia de ontem.
Nuno Júdice
Emil Cioran
reinventada.
Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo... - mais nada.
Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.
Não te encontro, não te alcanço...
Só - no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só - na treva,
fico: recebida e dada.
Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
Cecília Meireles
com todas as datas,
e não serei eu.
Repetirás o que ouviste,
o que leste de mim, e mostrarás meu retrato,
e nada disso serei eu.
Dirás coisas imaginárias,
invenções sutis, engenhosas teorias,
e continuarei ausente.
Somos uma difícil unidade,
de muitos instantes mínimos,
isso seria eu.
Mil fragmentos somos, em jogo misterioso,
aproximamo-nos e afastamo-nos, eternamente.
Como me poderão encontrar?
Novos e antigos todos os dias,
transparentes e opacos, segundo o giro da luz,
nós mesmos nos procuramos.
E por entre as circunstâncias fluímos,
leves e livres como a cascata pelas pedras.
Que mortal nos poderia prender?
Cecília Meireles
Gilles Deleuze
Arthur Schopenhauer
Aforismos para Sabedoria de Vida
eu também já reparei nisso. Meu Deus, talvez não lhe assente bem, talvez lhe faça a mão larga
demais. Ou pode ser que ela julgue o uso da aliança costume muito burguês. Andar assim com
uma argola lisa no dedo – só falta o molho de chaves num cestinho... Não, senhor, ela é muito
moderna para isso. Eu sei positivamente que todas as mulheres russas têm no seu modo de ser
qualquer coisa de liberdade e desembaraço. E esse tipo de anel é tão prosaico, tão negativo! É,
por assim dizer, um símbolo da servidão. Dá às mulheres um quê de freira, faz delas umas
florzinhas não-me-toques. Não me admiro de que Mme Chauchat não queira ser assim... Uma
mulher encantadora, na flor da idade!... Provavelmente não tem vontade nem vê motivos para
mostrar os seus laços conjugais a todo cavalheiro que lhe aperte a mão...
Thomas Mann
A Montanha Mágica
Eu imaginei o barulho límpido de gotas de água caindo na água — só que esse mínimo e delicado ruído seria aumentado até além do som, em enormes gotas cristalinas com um badalar molhado de sinos que submergem. No ar gelado e atordoante as estátuas adormecidas.
Clarice Lispector,
Um sopro de vida (pulsações)
Ficou, então, neste mundo de almas, a ruína visível, a desgraça patente, sem a treva que a cobrisse do seu carinho falso. As almas viram-se tais quais eram.
Começou, então, nas almas recentes aquela doença a que se chamou romantismo, aquele cristianismo sem ilusões, aquele cristianismo sem mitos, que é a própria secura da sua essência doentia.
O mal todo do romantismo é a confusão entre o que nos é preciso e o que desejamos. Todos nós precisamos das coisas indispensáveis à vida, à sua conservação e ao seu continuamento; todos nós desejamos uma vida mais perfeita, uma felicidade completa, a realidade dos nossos sonhos e é humano querer o que nos é preciso, e é humano desejar o que não nos é preciso, mas é para nós desejável. O que é doença é desejar com igual intensidade o que é preciso e o que é desejável, e sofrer por não ser perfeito como se se sofresse por não ter pão. O mal romântico é este: é querer a lua como se houvesse maneira de a obter.
“Não se pode comer um bolo sem o perder.”
Na esfera baixa da política, como no íntimo recinto das almas — o mesmo mal.
O pagão desconhecia, no mundo real, este sentido doente das coisas e de si mesmo. Como era homem, desejava também o impossível; mas não o queria. A sua religião era e só nos penetrais do mistério, aos iniciados apenas, longe do povo e dos, eram ensinadas aquelas coisas transcendentes das religiões que enchem a alma do vácuo do mundo.
Bernardo Soares. Fernando Pessoa
O Livro do Desassossego
SIGMUND FREUD, OBRAS COMPLETAS EM 20 VOLUMES
Coordenação de Paulo César de Souza
🖋️ Alejandra Pizarnik | Diarios.
Chorei porque nunca vou conhecer o encanto da comunicação plena. Chorei porque a chave que abriu a porta indicou um claustro (o tão desejado trancamento junto aos livros! Solidão infinita! ). Sim, sim! Chorei porque acabou a charada. Abaixo as máscaras! Este é o seu lugar, Alejandra, e você nunca sairá daqui. Aqui é o seu lugar, junto a Rimbaud e Nerval. Ao lado de Vallejo! Junto com os adorados seres inexistentes que nunca te desiludirão e que nunca te cansarás com os teus andares de neurótica mundana.
Inundação
Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo. E as lembranças são peixes nadando ao invés da corrente. Acredito, sim, por educação. Mas não creio. Minhas lembranças são aves. A haver inundação é de céu, repleção de nuvem. Vos guio por essa nuvem, minha lembrança.
A casa, aquela casa nossa, era morada mais da noite que do dia. Estranho, dirão. Noite e dia não são metades, folha e verso? Como podiam o claro e o escuro repartir-se em desigual? Explico. Bastava que a voz de minha mãe em canto se escutasse para que, no mais lúcido meio-dia, se fechasse a noite. Lá fora, a chuva sonhava, tamborileira. E nós éramos meninos para sempre.
Certa vez, porém, de nossa mãe escutamos o pranto. Era um choro delgadinho, um fio de água, um chilrear de morcego. Mão em mão, ficamos à porta do quarto dela.
Nossos olhos boquiabertos. Ela só suspirou:
– Vosso pai já não é meu.
Apontou o armário e pediu que o abríssemos. A nossos olhos, bem para além do espanto, se revelaram os vestidos envelhecidos que meu pai há muito lhe ofertara. Bastou, porém, a brisa da porta se abrindo para que os vestidos se desfizessem em pó e, como cinzas, se enevoassem pelo chão. Apenas os cabides balançavam, esqueletos sem corpo.
– E agora – disse a mãe -, olhem para estas cartas.
Eram apaixonados bilhetes, antigos, que minha mãe conservava numa caixa. Mas agora os papéis estavam brancos, toda a tinta se desbotara.
– Ele foi. Tudo foi.
Desde então, a mãe se recusou a deitar no leito. Dormia no chão. A ver se o rio do tempo a levava, numa dessas invisíveis enxurradas. Assim dizia, queixosa. Em poucos dias, se aparentou às sombras, desleixando todo seu volume.
– Quero perder todas as forças. Assim não tenho mais esperas.
– Durma na cama, mãe.
– Não quero. Que a cama é engolidora de saudade.
E ela queria guardar aquela saudade. Como se aquela ausência fosse o único troféu de sua vida.
Não tinham passado nem semanas desde que meu pai se volatilizara quando, numa certa noite, não me desceu o sono. Eu estava pressentimental, incapaz de me guardar no leito. Fui ao quarto dos meus pais. Minha mãe lá estava, envolta no lençol até à cabeça. Acordei-a. O seu rosto assomou à penumbra doce que pairava. Estava sorridente.
– Não faça barulho, meu filho. Não acorde seu pai.
– Meu pai?
– Seu pai esta aqui, muito comigo.
Levantou-se com cuidado de não desalinhar o lençol. Como se ocultasse algo debaixo do pano. Foi à cozinha e serviu-se de água. Sentei-me com ela, na mesa onde se acumulavam as panelas do jantar.
– Como eu o chamei, quer saber?
Tinha sido o seu cantar. Que eu não tinha notado, porque o fizera em surdina. Mas ela cantara, sem parar, desde que ele saíra. E agora, olhando o chão da cozinha, ela dizia:
– Talvez uma minha voz seja um pano; sim, um pano que limpa o tempo.
No dia seguinte, a mãe cumpria a vontade de domingo, comparecida na igreja, seu magro joelho cumprimentando a terra. Sabendo que ela iria demorar eu voltei ao seu quarto e ali me deixei por um instante. A porta do armário escancarada deixava entrever as entranhas da sombra. Me aproximei. A surpresa me abalou: de novo se enfunavam os vestidos, cheios de formas e cores. De imediato, me virei a espreitar a caixa onde se guardavam as lembranças de namoro de meus pais. A tinta regressara ao papel, as cartas de meu velho pai se haviam recomposto? Mas não abri. Tive medo. Porque eu, secretamente, sabia a resposta.
Saí no bico do pé, quando senti minha mãe entrando. E me esgueirei pelo quintal, deitando passo na estrada de areia. Ali me retive a contemplar a casa como que irrealizada em pintura. Entendi que por muita que fosse a estrada eu nunca ficaria longe daquele lugar. Nesse instante, escutei o canto doce de minha mãe. Foi quando eu vi a casa esmorecer, engolida por um rio que tudo inundava.
Mia Couto, conto ‘Inundação’, do livro “O fio das missangas”
Meu medo maior
não é do corte necessário
em direção ao maduro.
Temo as horas mornas dos dias infindos
quando o ser estanca cansado de si.
As frutas apodrecem nas geladeiras.
Os passarinhos morrem nas gaiolas.
Donizete Galvão
Emil Cioran (In: “Cadernos: 1957–1972”)
Emil Cioran
(In: “Do inconveniente de ter nascido”)
A primeira categoria almeja o olhar de uma infinidade de olhares anônimos, ou seja, o olhar do público.
A segunda categoria é composta por pessoas que têm uma necessidade vital de serem olhadas por muitos olhos conhecidos. São os incansáveis anfitriões de coquetéis e jantares. São mais felizes do que as pessoas da primeira categoria, que, ao perderem seu público, têm a sensação de que as luzes se apagaram na sala de suas vidas. Isso acontece com quase todos eles, mais cedo ou mais tarde. As pessoas da segunda categoria, por outro lado, sempre podem apresentar os olhos de que precisam.
Depois, há a terceira categoria, a categoria de pessoas que precisam estar constantemente diante dos olhos da pessoa que amam. A situação deles é tão perigosa quanto a situação das pessoas da primeira categoria. Um dia, os olhos de sua amada se fecharão e o quarto ficará escuro.
E, finalmente, há a quarta categoria, a mais rara, a categoria de pessoas que vivem sob o olhar imaginário de quem não está presente. Eles são os sonhadores.
Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser