1
Não haverá um equívoco em tudo isso?
O que será em verdade transparência
Se a matéria que vê, é opacidade?
Nesta manhã sou e não sou minha paisagem
Terra e claridade se confundem
E o que me vê
Não sabe de si mesmo a sua imagem.
E me sabendo quilha castigada de partidas
Não quis meu canto em leveza e brando
Mas para o vosso ouvido o verso breve
Persistirá cantando.
Leve, é o que diz a boca diminuta e douta.
Serão leves as límpidas paredes
Onde descansareis vosso caminho?
Terra, tua leveza em minha mão.
Um aroma te suspende e vens a mim
Numas manhãs à procura de águas.
E ainda revestida de vaidades, te sei.
Eu mesma, sendo argila escolhida
Revesti de sombra a minha verdade.
2
Lenta será minha voz e sua longa canção.
Lentamente se adensam essas águas
Porque um todo de terra em mim se alarga.
E de constância e singeleza tanta,
Meus mortos hoje sobre um chão de linhos
Por algum tempo guardarão meu ritmo
Nos ouvidos da terra. De granito.
Pude aclarar a sombras nos oiteiros
E aquecer num sopro o vento da tarde.
Mas não vereis ainda meus prodígios
Porque haverá lideiras neste outono
E vossos olhos estarão por lá
Desocupados do sono, extremados
Para uma só visão num só caminho.
3
Quisera descansar as mãos
Como se houvesse outro destino em mim.
E castigar as falas, alimárias
Vindas de um outro mundo que não sei.
Fazê-las repetir suas longas árias
Até que a morte silencie as mandíbulas
4
Caminho. E a verdade
É que vejo alguns portais
E entre as grades uns pássaros a leste.
Não sabem de seus passos os meus pés
Nem de mim mesma sei
Mas tantas timidizes se esvaíram
E este meu corpo agora não as tem.
E atravessando os mármores e os muros
Como se fossem mais muros de vento,
Passeio nos jazigos
E um cordeiro de pedra eu apascento.
5
Também nos claros, na manhã mais plena,
A retina ferida nesse vôo que passa além do verde,
É sempre a morte o sopro de um poema.
Entre uma pausa e outra ela ressurge
Ilharga de sol. Ah, diante do efêmero
Hei de cantar mais alto, sem o freio
De uns cantares longínquos, assustados.
6
As aves eram brancas e corriam na brancura das lajes.
As aves eram tantas e sabiam do seu corpo de ave.
Esguias e vorazes consumiam
Os corpos que eram aves menos ágeis.
E as garras assombradas dividiam
As espessuras ínfimas da carne.
Na plumagem umas gotas de sangue
Dos corpos devorados se entrevia.
Mas da vida e do sangue não sabiam
As aves que eram tantas sobre as lajes.
O ritual sincopado das gargantas
Tinha o ruído oco de umas águas
Deitadas bem de leve em algum cântaro.
Todo o espaço se enchia desse canto
E atraía umas aves, outras tantas.
A face do meu Deus iluminou-se.
E sendo Um só, é múltiplo Seu rosto.
É uno em seus opostos, água e fogo
Têm a mesma matéria noutro rosto.
Alegrou-Se meu Deus.
Dessa morte que é vida, Se contenta.
7
O Deus de que vos falo
Não é um Deus de afagos.
É mudo. Está só. E sabe
Da grandeza do homem
(Da vileza também)
E no tempo contempla
O ser que assim se fez.
É mesmo difícil ser Deus.
As coisas O comovem.
Mas não da comoção
Que vos é familiar:
Essa que vos inunda os olhos
Quando o canto da infância
Se refaz.
A comoção divina
Não tem nome.
O nascimento, a morte
O martírio do heroi
Vossas crianças claras
Sob a a laje,
Vossas mães
No vazio das horas.
E podeis amá-Lo
Se eu vos disser serena
Sem cuidados,
Que a comoção divina
8
Vereis um outro tempo estranho ao vosso.
Tempo presente mas sempre um tempo só,
Onipresente.
A dimensão das ilhas eu não sei.
Será como pensardes ou como é
Vossa própria e secreta dimensão.
Às vezes pareciam infinitas
De larguras extremas e tão longas
Que o olhar desistia do horizonte
E sondava: ervas, água
Minúcias onde o tato se alegrava
Insetos, transparências delicadas
Tentando o voo quase sempre incerto.
O peito era maior que o céu aberto.
Parávamos. E sabeis
Que o que contenta mais o peito inquieto
É olhar ao redor como quem vê
e silenciar também como quem ama.
Éramos muitos? Ah, sim.
Eramos muitos em mim.
O perigo maior de conviver era o perigo de todos.
Nosso Deus era um Todo inalterável, mudo
E mesmo assim mantido. Nosso pranto
Continuadamente sem ouvido
Porque não é missão da divindade
Testemunhar o pranto e o regozijo.
O que esperais de um Deus?
Ele espera dos homens que O mantenham vivo.
E os verdes, os azuis, o chumbo delicado
De umas tardes, a pureza das aves
Os peixes de verniz
Na abertura mais funda de umas águas.
9
Em silêncio plantávamos nas ilhas
Se a noite era de lua prolongada.
Plantava-se na terra mais sagrada
Junto às colinas
Porque era ali que os mortos repousavam.
Ah, desamor, nosso tempo perdido
Nossa morte.
Não levávamos rosas como vós
Nem falávamos como falais
Imprudentes, o passo descuidado
E muita vez contente
De caminhar tão vivo na manhã
Sobre o chão dos ausentes.
O corpo se fechava
À entrada dos portais.
A mão direita resguardava o plexo
E só para plantar
10
Com esse caminhar que em sonho se percebe
Ou como um corpo pesado sob as águas
Movimento pausado, movimento leve
Ave maior em voo compassado
Os cavalos da ilha se moviam
Nas grandes areais ensolarados.
O que era corpo em mim, só descansava.
O que não era
Vencia aquele espaço que nos separava.
11
Cavalo, halo de memória, guardo-te no peito
Sobre esta grande artéria
Fonte de vida e alento que sustenta
Amor de madurez e adolescência
Cantando-te sou teu corpo e tua nudez.
E ombro a ombro seguimos a alameda
Casco de dor num caminho de sol
E labareda, indivisível água
Obrigando-me a ver o que tu vês.
12
Brando, o tempo escorria nos vitrais.
Brando meu passo, nos azulejos claros
Do terraço. O pássaro.
Ah, tempo de fúria sem tempo para contemplar!
Tantas vezes na tarde caminhei nos terraços
Nos pátios
E havia sempre uma limpeza rara nas muradas, na terra.
13
As faces encostadas nos vitrais
e através, as figuras e o jardim
E era tanta a vontade de ver mais
Que uma névoa descia sobre mim
E o que eu queria ver, via jamais.
O cheiro quase rubro dos jasmins
Redobrava meu pranto de ais
Nessa tarde de luz nos seus confins.
Voltou-se o amigo e olhou minha tristeza.
Eu só te vejo a ti. Antes não visse.
Imaginaste a tarde. Ela não existe.
Mas seu rosto era pleno de beleza
E por isso deixei que me mentisse
antes que só por mim ficasse triste.
14
E através dos vitrais as faces duras
contemplavam a tarde no jardim.
O movimento leve das figuras
Caía sobre a tarde e sobre mim.
E no passeio as leves criaturas
Aspiravam o cheiro do jasmim.
vistas de longe pareciam puras
Na claridade de uma tarde assim.
Mas o amigo voltou-se e viu meu pranto.
"É sempre a mesma noite na tua face.
Enquanto choras há lá fora um canto
que de chorees tanto não o sabes.
Bem sei que a noite é imóvel na tua face.
e não te peço alegria. Mas tu ardes."
15
De delicadezas me construo. Trabalho umas rendas
Uma casa de seda para uns olhos duros.
Pudesse livrar-me da maior espiral
Que me circunda e onde sem querer me reconstruo!
Livrar-me de todo olhar que quando espreita, sofre
O grande desconforto de ver alem dos outros.
Tenho tido essee olhar. E uma treva de dor
Perpetuamente.
Do êxodo dos pássaros, do mais triste dos cães,
De uns rios pequenos morrendo sobre um leito exausto.
Livrar-me de mim mesma. E que para mim construam
Aquelas delicadezas, umas rendas, uma casa de seda
16
E a que se fez criança, tece a rosa.
E a criança também, uma mulher
Contida de silêncio e de memória,
Espera o plenilúnio e elabora
17
Se possível se fizer o merecê-las
Peço-te dálias, senhor, altas e austeras
Como convém a mim vivendo em estupor.
Dirás que me concedes a cássia ferrugínea
Araucária excelsa, mais sombra e mais altura
Como convém a mim, vivendo nas planuras,
Mas peço-te dálias. De frêmito contínuo
Calcinadas de vento, como convém a mim
Aturdida de amor e pensamento.
Verás. É dávida melhor. E se possível
Uma de rubro cerne. De parca simetria.
Vendo-a, verei a mim mesma cada dia.
18
A descansada precisão da folha.
O que o olhar adivinha
Sob a mínima extensão.
E a gravidade da flor
Irrompendo de suas claras paredes.
Em tudo o estigma de amor de uma só mão.
Em mim. de um lado, uma garra de fogo
gigantesca, pronta para ferir
E de um gesto agudo incendiar-vos,
e de outro lado a minha outra mão
19
Um claro-escuro de sol nos meus cantares
Porque tem sido assim a alma do homem.
Enfeitamos as coisas aparentes
Dando ternura e nome. Em aflição
Deitamos a semente
E ficamos à espera de um verão.
Em fogo se refaz o amor de sempre.
A palavra não basta para o canto.
Nem é o canto de amor essa constante
Aragem de umas praias que escolheis.
Nas ilhas um mormaço, conjeturas,
Vizinhança de chuva, mortos, vivos
Rememorando a tarde em viuvez.
20
De um exílio passado entre a montanha e a ilha
Vendo o não ser da rocha e a extensão da praia.
De um esperar contínuo de navios e quilhas
Revendo a morte e o nascimento de umas vagas.
De assim tocar as coisas minuciosa e lenta
E nem mesmo na dor chegar a compreendê-las.
De saber o cavalo na montanha. E reclusa
Traduzir a dimensão aérea do seu flanco.
De amar como quem morre o que se fez poeta
E entender tão pouco seu corpo sob a pedra.
E de ter visto um dia uma criança velha
Cantando uma canção, desesperando,
É que não sei de mim. Corpo de terra.
21
Naquela casa azul e avarandada
As mulheres fiavam como irmãs.
Se eram de um mesmo pai as maduradas,
A que foi mãe, amou. Memórias vãs.
De todas em amor o pai cuida
Repartindo suas terras e suas lãs.
E a que pariu em dor, a mais amada
Vigia sob a terra as tecelãs.
Se ao longo do meu rio, nos arrozais,
Avistardes a casa e as mulheres
(Dedos de azul em luz em luz sobre o tear)
Que o passo seja breve. E muito mais
É dizer-vos que tecem malmequeres
E em vão se aquecem sob o vosso olhar.
22
Se a chuva continua, se nos ares
apodrece a romã e o mamoeiro
Deita-te leve sobre os teus linhares
E na mulher semeia o teu herdeiro.
Há de voltar o sol nos teus pomares
e assim terás um tempo o sol e o filho.
Deita-te. Nosso tempo de amar tem seus findares
E os frutos antecedem teu idílio.
Hilda Hilst
Livro: Exercícios, Editora Globo, São Paulo, 2002, p. 45-68
Imagens: Anatoly Piatkevich