terça-feira, 28 de janeiro de 2014
Eduardo e a vida sadia
Seu Marciano tornou-se sócio do clube, o filho praticava natação.
— Por que você não joga basquete? — sugeria Letícia — Natação é tão sem graça...
— Porque natação não depende de ninguém, só de mim.
Em seis meses era o melhor nadador de sua categoria, e ameaçava já o recorde dos adultos. Uma espécie diferente de emoção — a de poder contar consigo mesmo, e de se saber, numa competição, antecipadamente vencedor. Os entendidos sacudiam a cabeça, admirados:
— Quem diria, esse menino...
Era uma espécie de êxtase: fazer de simples prova de natação, a que ninguém o obrigava, uma disputa em que parecia empenhar o destino, fazer da arrancada final uma luta contra o cansaço, em que a vida parecia querer prolongar-se além de si mesma.
Dia de competição. As luzes da piscina acesas, as arquibancadas cheias. Ambiente de expectativa, medo, alegria, excitação. Alto-falantes comandando ordens, convocando nadadores, apostas, previsões, torcida, gritaria. Nada da paz quase bucólica da piscina da torcida, gritaria. Nada da paz quase bucólica da piscina nos dias de treino — o rigor e a monotonia dos exercícios, de manhã e de tarde, o longo, lento e meticuloso esforço durante meses e meses, para ganhar décimos de segundo na luta contra o cronômetro. Refugiado no vestiário, enrolado em cobertor, Eduardo aguardava o momento de sua prova, ouvindo, lá fora, os aplausos da multidão. Logo chegaria a sua vez. Chico, o roupeiro, aparecia para dar-lhe a notícia da competição. — Estamos ganhando. Daqui a pouco é você.
Encolhido num canto, o nadador mal ouvia as palavras do preto. Sua emoção se traduzia em longos bocejos, o medo era quase náusea, a expectativa era uma ilusória, persistente e irresistível vontade de urinar. A multidão voltava a aplaudir lá fora. — “Daqui a pouco é você”.
Nunca saía do vestiário antes da hora de nadar.
— Quanto está a água hoje? — perguntava ao roupeiro. Era o único nadador que não interrompia os treinos no inverno, sozinho, a água gelada, a piscina fechada aos sócios. Tudo importava: a temperatura da água, a raia que lhe caberia, as condições do adversário. Já o tinha sob controle, sabia o que deveria fazer desde a saída — sabia que deveria esquecê-lo tão logo começasse a nadar, esquecer a assistência, nadar apenas contra o cronômetro — a menor quebra do ritmo necessário significaria um décimo de segundo a menos, talvez — significaria a derrota. Nadar era difícil, ficava cada vez mais difícil... Onde quer que surgisse um recordista, logo surgia outro para abaixar-lhe o recorde. — Estamos ganhando. Daqui a pouco é você.
Encolhido num canto, o nadador mal ouvia as palavras do preto. Sua emoção se traduzia em longos bocejos, o medo era quase náusea, a expectativa era uma ilusória, persistente e irresistível vontade de
urinar. A multidão voltava a aplaudir lá fora. — “Daqui a pouco é você”.
Nunca saía do vestiário antes da hora de nadar.
— Quanto está a água hoje? — perguntava ao roupeiro. Era o único nadador que não interrompia os treinos no inverno, sozinho, a água gelada, a piscina fechada aos sócios. Tudo importava: a temperatura da água, a raia que lhe caberia, as condições do adversário. Já o tinha sob controle, sabia o que deveria fazer desde a saída — sabia que deveria esquecê-lo tão logo começasse a nadar, esquecer a assistência, nadar apenas contra o cronômetro — a menor quebra do ritmo necessário significaria um décimo de segundo a menos, talvez — significaria a derrota. Nadar era difícil, ficava cada vez mais difícil... Onde quer que surgisse um recordista, logo surgia outro para abaixar-lhe o recorde. Ignorar tudo, concentrar-se. Vontade de dormir, de desistir, fugir, sair correndo, esquecer aquele suplício. Medo. Os outros também se sentiriam assim, fragilizados pela emoção, sucumbidos pela espera?
Munira-se de alguns minutos de descanso e solidão, curtidos em agonia no vestiário — era a sua reserva. Ali fora, os nervos se esbandalhariam ante o que o aguardava — que viesse imediatamente.
— Mostra a essa gente, Eduardo.
— É pra valer!
— Capricha, menino.
— Está bem, está bem...
Deslumbrado pela luz dos refletores, desprotegido e nu, ia caminhando para o sacrifício. Era como se o mundo interrompesse o seu giro e se equilibrasse, oscilante, debaixo dos pés. Nada mais existia senão a fatalidade, da qual agora não poderia fugir. Os homens se dividiam em duas espécies: os que nadam e os que veem os outros nadar; os que já nadaram e os que ainda vão nadar; os que vencem e os que perdem.
— Eduardo Marciano!
Apresentava-se.
— Raia quatro.
A seu lado, o adversário mais temido. A assistência os identificava, à borda da piscina, prorrompia em gritos. Um fotógrafo se aproximava, o flash explodia, iluminando por um instante o rosto juvenil dos nadadores, envelhecidos pela emoção, como num palco.
— Concorrentes a postos! — comandava o alto-falante. — Para a saída!
Mafra, o treinador, ditava-lhe rapidamente as últimas instruções:
— Rodrigo vai forçar para você nos primeiros cinquenta. Deixe ele ir. Olhe o ritmo. Nade sozinho.
Subia vagarosamente a banqueta, relaxava o corpo. Curvado, ficava à espera, sem olhar para os lados. A superfície da água ia-se amansando, depois da agitação da última prova. Raios de luz dos refletores submersos dançavam lentos, verberando nos azulejos e dando uma limpidez fantástica ao verde-azul da piscina.
— Atenção!
O apito do juiz. A multidão silenciava, de súbito, e não se ouvia um só ruído, como se algo de terrível estivesse para acontecer. Os nadadores se imobilizavam, crispados nas suas banquetas, aguardando
o tiro de saída. O juiz erguia o revólver, o dedo se contraía no gatilho.
— Oh! — fazia a assistência. Um dos concorrentes armara o salto, mas dera saída em falso. Um desastre para o nadador, seus nervos não resistiriam.
— Atenção!
Ouvia-se novo apito do juiz. Outra vez a assistência silenciava, em suspenso, e os nadadores se enrijeciam como estátuas, curvados e tensos. Um tiro, e todos se atiravam para a frente, a água se estilhaçava.
Quebrou vários recordes, foi ao Rio e a São Paulo competir com os maiores nadadores nacionais. Vivia para a natação: dormia cedo, alimentava-se bem, fazia ginástica. O pai começou a preocupar-se:
— Você não está exagerando? De que lhe serve tanto esforço...
— Seus estudos — dizia a mãe.
Fernando Sabino, O Encontro marcado