|
Alex Bagnato |
Quando se aproxima a hora de sua chegada, decide que ela deve partir, mas por si mesma, que deve compreender por si mesma que ele nada pode ordenar, nunca. Gostaria de falar com alguém. Mas não há ninguém, ela não está ali para falar. O sofrimento é claro, disseminado pelo quarto, pela cabeça, pelas mãos, o sofrimento priva de forças, aplaca a solidão, deixa-o ali, a pensar que talvez vá morrer.
Encostados na parede, os lençóis que ela dobrou. Ela os colocou cuidadosamente no chão, como uma convidada. Ele dirige-se aos lençóis dobrados, desdobra-os e cobre-se: de repente, o frio.
A noite ela bate na porta que ficou aberta. Quanto aos heróis da história, diria um ator, não se saberia
quem são nem por quê. Às vezes, para se poder olhá-los, deixavam-nos entregues a eles mesmos, no silêncio, por um longo momento: em volta deles os atores parados, sem voz, e eles, na luz, surpreendidos pelo silêncio.
Freqüentemente ela dorme. E ele a olha. Às vezes, nos movimentos do sono, as mãos se tocam para
em seguida fugirem. Eles estariam ofuscados pela luz, estariam nus, sexos nus, criaturas sem olhar, expostas.
Nas noites que se seguem, nada acontece além do sono. Caminha-se rumo a um certo esquecimento dos
acontecimentos do verão. Às vezes, na distração, os corpos se aproximam e se tocam e produz-se um breve despertar logo encoberto pelo sono.
Uma vez tocados, os corpos não mais se movem. Até que um deles se vire e se afaste. Mas nada de manifesto acontece. Sempre, nem um olhar. Nem uma palavra. Às vezes falam. O que dizem não se relaciona com o que está acontecendo no quarto, exceto pelo fato de não dizerem nada sobre ele.
Às vezes ela se vira, defende-se de uma ameaça exterior, do grito de um animal, do vento na porta, da boca maquiada dele, da doçura de seu olhar. Ela sempre volta a dormir. Às vezes, perto da madrugada, atingiria camadas mais profundas de ausência. Apenas a respiração permanece, às vezes. Às vezes pode-se pensar em um animal adormecido perto de si. De manhã, ele a ouve partir. Mas imperceptivelmente. Não se move. Poder-se-ia pensar que está na mesma ausência esmagadora da manhã. E ela, ela age como se fosse verdade ele estar dormindo.
Às vezes pode-se dizer que nada mais acontece além dessa mentira. Quando a noite chega ela está ali na hora marcada, o corpo acomodado sobre os lençóis brancos, nua, à luz do lustre. Faz-se de morta, o rosto abolido sob a seda preta. É o que ele pensa nos maus dias. Sem dúvida ainda é noite. Nenhuma claridade chega do lado de fora. Em torno dos lençóis brancos, o homem que caminha, que se volta.
O mar chegou em frente ao quarto. A manhã não deve estar longe. E o mar insone que está ali, bem próximo às paredes. É mesmo o seu rumor, vagaroso, exterior, aquele que leva a morrer.
Ela abriu os olhos. Eles não se olham. Há várias noites que isso acontece. Nenhuma definição exterior se apresenta para explicar o que estão vivendo. Nenhuma solução para evitar o sofrimento.
Ela dorme. Ele chora. Chora por uma imagem distante da noite de verão. Precisa dela, da sua presença no quarto para chorar o jovem estrangeiro de olhos azuis cabelos pretos. Sem ela no quarto a imagem permaneceria estéril, dissecaria seu coração, seu desejo. O corpo, ele não o vira. Apenas que usava roupas brancas, uma camisa branca. Pálido, era pálido, vinha do norte, do país secreto. Alto. A voz, ele não sabe.
Parou de se mexer. Refaz o trajeto do parque do hotel à janela do vestíbulo.
Ouve, olhos fechados. Ouve o grito. Continua não percebendo nenhuma palavra, nenhum sentido. Quando
abre os olhos já é muito tarde, o corpo de olhos azuis caminha em silêncio para a janela aberta. A ela não fala dele. Não lhe passa pela cabeça. Não fala de sua vida. Nunca pensou que se pudesse fazê-lo. As palavras não estão ali, nem a frase onde colocar as palavras. Para eles dizerem o que lhes acontece há o silêncio ou então o riso ou, às vezes, por exemplo, com elas, chorar. Ela o olha. E assim que o vê em sua ausência, tal como está ali. Repleto de imagens mudas, embriagado de sofrimentos diversos, do desejo de recuperar um objeto perdido assim como de comprar um que ainda não possui e de repente se
transforma em sua razão de ser, essa roupa, esse relógio, esse amante, esse carro. Onde quer que esteja, o que quer que faça, sempre um desastre particular.
Ela pode olhá-lo por muito tempo, noites. Ele percebe que seus olhos estão abertos. Sorri para ela como se tivesse sido de alguma forma desmascarado, contrito, sempre na interminável desculpa por viver, por ter de fazê-lo.
Ela fala para agradá-lo. Diz que mora na cidade durante o verão. Que vive perto dali, em uma cidade universitária, aquela onde nasceu. Que é uma moça do interior. Ela gosta muito do mar, principalmente desta praia. Aqui, ela não tem casa. Mora em um hotel. Prefere. No verão, é melhor. Para a arrumação, os cafés da manhã, os amantes.
Ele começa a ouvir. E um homem que ouve tudo que se conta com idêntica paixão. Impossível entender por que a esse ponto. Ele pergunta se ela tem amigos. Ela tem, sim, aqui e também na cidade onde mora no inverno. São velhos amigos? Alguns são, mas é claro que são principalmente pessoas que conheceu na universidade. Ela está na universidade? Sim. Estuda ciências. Também é professora-assistente de ciências, sim. Ela conta. Ele diz ter percebido que ela fizera estudos superiores. Ela ri. Ele ri, confuso por ter percebido a que ponto era grande sua conivência. Depois, bruscamente, percebe que ela não está mais rindo, que o deixou, que o olha como se ele fosse adorável, ou estivesse morto. E depois, que ela volte. Em seu olhar permanece um clarão do devaneio que acaba de atravessar em sua presença.
Eles não falam desse medo. Ela sabe menos do que ele que alguma coisa aconteceu. Mantêm-se distantes um do outro por muito tempo, tentando perceber o que aconteceu quando se olharam, esse pavor que ainda desconhecem.
Marguerite Duras, Olhos azuis cabelos pretos