sexta-feira, 30 de outubro de 2009
O Peso da Existência
O que ocupa todos os vivos e os conserva em contínua atividade, é a necessidade de assegurar a existência. Mas feito isto, não sabem que mais hão de fazer. Assim o segundo esforço dos homens é aliviar o peso da vida, torná-lo insensível, “matar o tempo”, isto é, fugir do aborrecimento. Vemo-los, logo que se livram de toda a miséria material e moral, logo que sacudiram dos ombros todos os fardos, tomarem sobre eles mesmos o peso da existência, e considerarem como um ganho toda a hora que têm conseguido passar, ainda que no fundo ela seja tirada dessa existência, que se esforçam por prolongar com tanto zelo. O aborrecimento não é um mal para desdenhar: que desespero faz transparecer no rosto! Faz com que os homens, que se amam tão pouco uns aos outros, se procurem com todo o entusiasmo; é a origem do instinto social. O Estado considera-o como uma calamidade pública, e por prudência toma medidas para o combater.
Este flagelo, que não é menor que o seu extremo oposto, a fome, pode impelir os homens a todos os desvarios; o povo precisa “panem et circenses”. O rude sistema penitenciário de Filadélfia, fundado sobre o isolamento e a inatividade, faz do aborrecimento um instrumento de suplício tão terrível, que mais de um condenado tem recorrido ao suicídio para lhe fugir. Se a miséria é o aguilhão perpétuo para o povo, o tédio é o igualmente para os ricos. Na vida civil, o domingo representa o aborrecimento, e os seis dias da semana a miséria.
Arthur Schopenhauer in As Dores do Mundo
Se o mundo...
James Van Fossan |
Se o mundo não tivesse palavras
a palavra do mar, com toda a sua paixão,
bastava. Não lhe falta
nada: nem o enigma nem
a obsessão. Entregue ao seu ofício
de grande hospitaleiro
o mar é um animal que se refaz
em cada momento.
O amor também. Um mar
de poucas palavras.
Casimiro de Brito
Nicolas Ségur, O leito conjugal
“Outrora, o casamento era indissolúvel, baseado de um lado sobre o domínio do homem, que era pilar-mestre da casa, o único responsável, e doutro lado, sobre a inferioridade da mulher, a quem só incumbia embalar humildemente o senhor, servi-lo, assegurar a sua continuidade. Nessa época, u’a mulher que se mostrava infiel cometia um crime perante seu senhor e era uma generosidade suprema, da parte deste, o fato de a perdoar. Em nossos dias, com a faculdade do divórcio, [...] e com a decadência dos privilégios masculinos, o casamento tornou-se simples pacto, um modo de associação.
U’a mulher [...] rivaliza com qualquer homem, quanto à educação, à capacidade e ao talento. Rivaliza com ele até mesmo pela firmeza de caráter e punho forte com o qual se avantaja a domar a vida. [...] A maioria dos maridos engana sua mulher. Por que, pois, tendo-se alçado ao mesmo nível social que nós e não mais estando mesmo retidas pelas barreiras morais que faziam suas antepassadas deterem-se, não nos enganariam as mulheres? Por que não pretenderiam elas os memos direitos que nós? Tenhamos coragem de confessar que, em nossa época, o único obstáculo que se opõe ao livre derrame dos instintos da mulher é sua escravatura sensual a um homem, o qual, criando para ela a ilusão do amor, obriga-a mui naturalmente à felicidade. Sim, somente o perpétuo atolar-se produzido pela misteriosa demência que se chama amor, pode manter puros os liames do casamento. [...] Perdoar é, talvez, o único meio que doravante resta ao homem para reter a mulher. E, entretanto, sabes por ti mesmo quanto é difícil perdoar a traição da mulher que se ama."
Nicolas Ségur, O leito conjugal
quinta-feira, 29 de outubro de 2009
Era uma vez...
Respondi que gostaria mesmo era de poder um dia afinal escrever uma história que começasse assim: "era uma vez...". Para crianças? perguntaram. Não, para adultos mesmo, respondi já distraída, ocupada em me lembrar de minhas primeiras histórias aos sete anos, todas começando com "era uma vez"; eu as enviava para a página infantil das quintas-feiras do jornal de Recife, e nenhuma, mas nenhuma, foi jamais publicada. E era fácil de ver por quê. Nenhuma contava propriamente uma história com os fatos necessários a uma história. Eu lia as que eles publicavam, e todas relatavam um acontecimento. Mas se eles eram teimosos, eu também.
Mas desde então eu havia mudado tanto, quem sabe eu agora já estava pronta para o verdadeiro "era uma vez". Perguntei-me em seguida: e por que não começo? agora mesmo? Seria simples, senti eu.
E comecei.
Ao ter escrito a primeira frase, vi imediatamente que ainda me era impossível.
Eu havia escrito: " Era uma vez um pássaro, meu Deus".
Clarice Lispector
Bolero
Que vaidade imaginar
que posso dar-te tudo, amor e fortuna,
itinerários, música, brinquedos.
É verdade que sim:
dou-te tudo que é meu, é verdade,
mas isso tudo que é meu não te basta
como a mim não me basta que me dês
tudo que é teu.
Por isso nunca seremos
o casal perfeito, o bilhete postal,
se não formos capazes de aceitar
que só na aritmética
o dois nasce de um mais um.
Um papelito por aí
diz simplesmente:
Foste sempre o meu espelho,
quer dizer, para me ver tinha que olhar-te.
E este fragmento:
A lenta máquina do desamor
a engrenagem do refluxo
os corpos que deixam as almofadas
os lençóis os beijos
e de pé frente ao espelho interrogando-se
cada um a si mesmo
já não olhando-se entre si
não já nus para o outro
não já te amo,
meu amor
Júlio Cortázar
***
Qué vanidad imaginar
que puedo darte todo, el amor y la dicha,
itinerarios, música, juguetes.
Es cierto que es así:
todo lo mío te lo doy, es cierto,
pero todo lo mío no te basta
como a mí no me basta que me des
todo lo tuyo.
Por eso no seremos nunca
la pareja perfecta, la tarjeta postal,
si no somos capaces de aceptar
que sólo en la aritmética
el dos nace del uno más el uno.
Por ahí un papelito
que solamente dice:
Siempre fuiste mi espejo,
quiero decir que para verme tenía que mirarte.
Y este fragmento:
La lenta máquina del desamor
los engranajes del reflujo
los cuerpos que abandonan las almohadas
las sábanas los besos
y de pie ante el espejo interrogándose
cada uno a sí mismo
ya no mirándose entre ellos
ya no desnudos para el otro
ya no te amo,
mi amor.
***
Qué vanidad imaginar
que puedo darte todo, el amor y la dicha,
itinerarios, música, juguetes.
Es cierto que es así:
todo lo mío te lo doy, es cierto,
pero todo lo mío no te basta
como a mí no me basta que me des
todo lo tuyo.
Por eso no seremos nunca
la pareja perfecta, la tarjeta postal,
si no somos capaces de aceptar
que sólo en la aritmética
el dos nace del uno más el uno.
Por ahí un papelito
que solamente dice:
Siempre fuiste mi espejo,
quiero decir que para verme tenía que mirarte.
Y este fragmento:
La lenta máquina del desamor
los engranajes del reflujo
los cuerpos que abandonan las almohadas
las sábanas los besos
y de pie ante el espejo interrogándose
cada uno a sí mismo
ya no mirándose entre ellos
ya no desnudos para el otro
ya no te amo,
mi amor.
Em busca do tempo perdido
E meu pensamento não seria também, por acaso, um esconderijo em cujo fundo eu sentia que permanecia oculto, até para olhar o que se passava lá fora? Quando eu via um objeto exterior, a consciência de que o estava olhando permanecia entre mim e ele, bordava-o com uma tênue orla espiritual que me impedia de nunca tocar diretamente a sua matéria; volatilizava-se esta de alguma forma antes que eu tomasse contato com ela, como um corpo incandescente que se aproxima de um objeto molhado não chega a tocar sua umidade, pois se faz sempre anteceder de uma zona de evaporação. Nesse tipo de tela colorida de estados diversos que, enquanto eu lia, minha consciência ia desenrolando simultaneamente, e que iam desde as aspirações mais profundamente escondidas dentro de mim até a visão inteiramente exterior que eu tinha do horizonte diante dos olhos, na extremidade do jardim, o que havia de principal em mim, de mais íntimo, o leme que governava o resto num movimento incessante, era a minha crença na riqueza filosófica, na beleza do livro que estava lendo, e meu desejo de me apropriar delas, fosse qual fosse esse livro
*
Depois desta crença central que, durante a leitura, executava movimentos incessantes de dentro para fora, no sentido da descoberta da verdade, vinham as emoções que me dava a ação na qual tomava parte, pois as tardes eram mais cheias de acontecimentos dramáticos do que, muitas vezes, uma vida inteira. Eram os acontecimentos que ocorriam no livro que estava lendo; é verdade que as personagens a quem interessavam não eram "reais", como dizia Françoise. Mas todos os sentimentos que nos fazem experimentar a alegria ou a desgraça de uma personagem real só ocorrem em nós por intermédio de uma imagem dessa alegria ou dessa desgraça; a engenhosidade do primeiro romancista consistiu em compreender que, no aparelho das nossas emoções, sendo a imagem o único elemento essencial, a simplificação que consistiria em suprimir pura e simplesmente as personagens reais seria um aperfeiçoamento decisivo. Um ser real, por mais profundamente que simpatizemos com ele, em grande parte só o percebemos através dos sentidos, isto é, permanece opaco para nós, oferece um peso morto que nossa sensibilidade não consegue erguer. Se uma desgraça o atinge, esta só poderá nos comover numa pequena parte da noção global que temos dele, e ainda mais, só numa pequena parte da noção total que tem de si mesmo é que sua própria desgraça poderá comovê-lo. O achado do romancista foi ter tido a ideia de substituir essas partes impenetráveis à alma por uma quantidade idêntica de partes materiais, isto é, que nossa alma pode assimilar. Desde então, que importa que as ações, as emoções desses seres de um novo tipo nos pareçam verdadeiras, visto que fizemo-las nossas, que é dentro de nós que se produzem, que mantêm sob seu domínio, enquanto viramos febrilmente as páginas do livro, a rapidez da nossa respiração e a intensidade do nosso olhar. E uma vez que o romancista nos pôs nesse estado, no qual, como em todos os estados exclusivamente interiores, toda emoção é duplicada, e onde seu livro vai perturbar-nos, à maneira de um sonho, mas de um sonho mais claro que os que temos ao dormir, e cuja lembrança vai durar mais, então, eis que ele deflagra em nós, durante uma hora, todas as fortunas e todas as desgraças possíveis, algumas das quais iríamos levar a vida inteira para conhecer, ao passo que outras, as mais intensas, jamais nos seriam reveladas porque a lentidão com que se produzem impede que as percebamos. (Assim vai mudando o nosso coração, durante a vida, e esta é a pior das dores; porém só a conhecemos através da leitura, pela imaginação: na realidade o coração se transforma da mesma maneira como se produzem certos fenômenos da natureza, tão vagarosamente que, embora possamos verificar de modo sucessivo seus estados diferentes, em compensação nos foge a própria sensação da mudança.)
*
Quando um homem está dormindo tem em torno, como um aro, o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos. Ao despertar, consulta-os instintivamente, e, em um segundo, lê o lugar da terra em que se acha, o tempo que transcorreu até seu despertar; mas estas ordenações podem confundir-se e quebrar-se. Se depois de uma insônia, na madrugada, surpreende-o o sonho enquanto lê em uma postura distinta da que está acostumado a tomar para dormir, bastará elevar o braço para parar o Sol; para fazê-lo retroceder: e no primeiro momento de seu despertar não saberá que horas são, imaginará que acaba de deitar-se. Se dormitar em uma postura ainda menos usual e recolhimento, por exemplo, sentado em uma poltrona depois de comer, então um transtorno profundo se introduzirá nos mundos exagerados, a poltrona mágica percorrerá a toda velocidade os caminhos do tempo e do espaço, e no momento de abrir as pálpebras perceberá que dormiu uns meses antes e em uma terra distinta. Mas a mim, embora dormisse em minha cama de costume, bastava-me com um sonho profundo que afrouxasse a tensão de meu espírito para que este deixasse escapar o plano do lugar aonde eu dormia, ao despertar a meia-noite, como não sabia onde me encontrava, no primeiro momento tampouco sabia quem era; em mim não havia outra coisa que o sentimento da existência em sua simplicidade, primitiva, tal como pode vibrar no fundo de um animal, encontrar-se em maior nudez com o homem das cavernas; mas então a lembrança, ainda não era a lembrança do lugar em que me achava, mas, o de outros lugares aonde eu tinha vivido e aonde poderia estar. Descia até mim como um socorro que tivesse chegado do alto para me tirar de um nada, porque eu sozinho nunca poderia sair; em um segundo passava por cima de séculos de civilização, a imagem opaca vista das lamparinas de petróleo, das camisas com gola alta dobrada, foram recompondo lentamente os rasgos peculiares de minha personalidade.
Essa imobilidade das coisas que nos rodeiam, acaso é uma qualidade que impomos, com nossa certeza de que elas são essas coisas, nada mais que essas coisas, com a imobilidade que toma nosso pensamento frente a elas. O caso é que quando eu despertava assim, com o espírito em comoção, para averiguar, sem chegar a obtê-lo, em onde estava, tudo girava em volta de mim, na escuridão: as coisas, os países, os anos. Meu corpo, muito torpe para mover-se, tentava, fora de forma de seu cansaço, determinar a posição de seus membros para daí induzir a direção da parede e o lugar de cada móvel, para reconstruir e dar nome à morada que o abrigava. Sua memória dos flancos, dos joelhos, dos ombros, oferecia-lhe sucessivamente as imagens dos vários quartos em que dormisse, enquanto que, ao seu redor, as paredes, invisíveis, trocando de lugar, segundo a habitação imaginada, giravam nas trevas. Antes do meu pensamento vacilante, na soleira dos tempos e das formas, identificasse, engrenado às diversas circunstâncias ofereciam, o lugar de que se tratava, o outro, meu corpo, ia acordando para cada lugar de como era a cama, de onde estavam as portas, de onde davam as janelas, se havia um corredor, e, além disso, dos pensamentos que ao dormir ali preocupavam e que ao despertar voltava a encontrar. O lado de meu corpo, ao tentar adivinhar sua orientação, acreditava-se, por exemplo, estar jogado de cara à parede, em um grande leito com dossel, eu em seguida dizia: «Ah! Por fim dormi, embora mamãe não veio me dizer adeus», é que estava no campo, na casa de meu avô, morto já fazia tanto tempo; e meu corpo, aquele lado de meu corpo em que me apoiava, fiel guardião de um passado que eu nunca devesse esquecer, recordava-me a chama da lamparina de cristal da Boêmia, em forma de urna, que pendia do teto por leves correntinhas; a chaminé de mármore de Siena, no quarto de casa de meus avós, no Combray; naqueles dias longínquos que eu me figurava naquele momento como atuais, mas sem representar com exatidão; teria que ver muito mais claro um instante depois, quando despertasse, por completo.
Marcel Proust
*
Depois desta crença central que, durante a leitura, executava movimentos incessantes de dentro para fora, no sentido da descoberta da verdade, vinham as emoções que me dava a ação na qual tomava parte, pois as tardes eram mais cheias de acontecimentos dramáticos do que, muitas vezes, uma vida inteira. Eram os acontecimentos que ocorriam no livro que estava lendo; é verdade que as personagens a quem interessavam não eram "reais", como dizia Françoise. Mas todos os sentimentos que nos fazem experimentar a alegria ou a desgraça de uma personagem real só ocorrem em nós por intermédio de uma imagem dessa alegria ou dessa desgraça; a engenhosidade do primeiro romancista consistiu em compreender que, no aparelho das nossas emoções, sendo a imagem o único elemento essencial, a simplificação que consistiria em suprimir pura e simplesmente as personagens reais seria um aperfeiçoamento decisivo. Um ser real, por mais profundamente que simpatizemos com ele, em grande parte só o percebemos através dos sentidos, isto é, permanece opaco para nós, oferece um peso morto que nossa sensibilidade não consegue erguer. Se uma desgraça o atinge, esta só poderá nos comover numa pequena parte da noção global que temos dele, e ainda mais, só numa pequena parte da noção total que tem de si mesmo é que sua própria desgraça poderá comovê-lo. O achado do romancista foi ter tido a ideia de substituir essas partes impenetráveis à alma por uma quantidade idêntica de partes materiais, isto é, que nossa alma pode assimilar. Desde então, que importa que as ações, as emoções desses seres de um novo tipo nos pareçam verdadeiras, visto que fizemo-las nossas, que é dentro de nós que se produzem, que mantêm sob seu domínio, enquanto viramos febrilmente as páginas do livro, a rapidez da nossa respiração e a intensidade do nosso olhar. E uma vez que o romancista nos pôs nesse estado, no qual, como em todos os estados exclusivamente interiores, toda emoção é duplicada, e onde seu livro vai perturbar-nos, à maneira de um sonho, mas de um sonho mais claro que os que temos ao dormir, e cuja lembrança vai durar mais, então, eis que ele deflagra em nós, durante uma hora, todas as fortunas e todas as desgraças possíveis, algumas das quais iríamos levar a vida inteira para conhecer, ao passo que outras, as mais intensas, jamais nos seriam reveladas porque a lentidão com que se produzem impede que as percebamos. (Assim vai mudando o nosso coração, durante a vida, e esta é a pior das dores; porém só a conhecemos através da leitura, pela imaginação: na realidade o coração se transforma da mesma maneira como se produzem certos fenômenos da natureza, tão vagarosamente que, embora possamos verificar de modo sucessivo seus estados diferentes, em compensação nos foge a própria sensação da mudança.)
*
Quando um homem está dormindo tem em torno, como um aro, o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos. Ao despertar, consulta-os instintivamente, e, em um segundo, lê o lugar da terra em que se acha, o tempo que transcorreu até seu despertar; mas estas ordenações podem confundir-se e quebrar-se. Se depois de uma insônia, na madrugada, surpreende-o o sonho enquanto lê em uma postura distinta da que está acostumado a tomar para dormir, bastará elevar o braço para parar o Sol; para fazê-lo retroceder: e no primeiro momento de seu despertar não saberá que horas são, imaginará que acaba de deitar-se. Se dormitar em uma postura ainda menos usual e recolhimento, por exemplo, sentado em uma poltrona depois de comer, então um transtorno profundo se introduzirá nos mundos exagerados, a poltrona mágica percorrerá a toda velocidade os caminhos do tempo e do espaço, e no momento de abrir as pálpebras perceberá que dormiu uns meses antes e em uma terra distinta. Mas a mim, embora dormisse em minha cama de costume, bastava-me com um sonho profundo que afrouxasse a tensão de meu espírito para que este deixasse escapar o plano do lugar aonde eu dormia, ao despertar a meia-noite, como não sabia onde me encontrava, no primeiro momento tampouco sabia quem era; em mim não havia outra coisa que o sentimento da existência em sua simplicidade, primitiva, tal como pode vibrar no fundo de um animal, encontrar-se em maior nudez com o homem das cavernas; mas então a lembrança, ainda não era a lembrança do lugar em que me achava, mas, o de outros lugares aonde eu tinha vivido e aonde poderia estar. Descia até mim como um socorro que tivesse chegado do alto para me tirar de um nada, porque eu sozinho nunca poderia sair; em um segundo passava por cima de séculos de civilização, a imagem opaca vista das lamparinas de petróleo, das camisas com gola alta dobrada, foram recompondo lentamente os rasgos peculiares de minha personalidade.
Essa imobilidade das coisas que nos rodeiam, acaso é uma qualidade que impomos, com nossa certeza de que elas são essas coisas, nada mais que essas coisas, com a imobilidade que toma nosso pensamento frente a elas. O caso é que quando eu despertava assim, com o espírito em comoção, para averiguar, sem chegar a obtê-lo, em onde estava, tudo girava em volta de mim, na escuridão: as coisas, os países, os anos. Meu corpo, muito torpe para mover-se, tentava, fora de forma de seu cansaço, determinar a posição de seus membros para daí induzir a direção da parede e o lugar de cada móvel, para reconstruir e dar nome à morada que o abrigava. Sua memória dos flancos, dos joelhos, dos ombros, oferecia-lhe sucessivamente as imagens dos vários quartos em que dormisse, enquanto que, ao seu redor, as paredes, invisíveis, trocando de lugar, segundo a habitação imaginada, giravam nas trevas. Antes do meu pensamento vacilante, na soleira dos tempos e das formas, identificasse, engrenado às diversas circunstâncias ofereciam, o lugar de que se tratava, o outro, meu corpo, ia acordando para cada lugar de como era a cama, de onde estavam as portas, de onde davam as janelas, se havia um corredor, e, além disso, dos pensamentos que ao dormir ali preocupavam e que ao despertar voltava a encontrar. O lado de meu corpo, ao tentar adivinhar sua orientação, acreditava-se, por exemplo, estar jogado de cara à parede, em um grande leito com dossel, eu em seguida dizia: «Ah! Por fim dormi, embora mamãe não veio me dizer adeus», é que estava no campo, na casa de meu avô, morto já fazia tanto tempo; e meu corpo, aquele lado de meu corpo em que me apoiava, fiel guardião de um passado que eu nunca devesse esquecer, recordava-me a chama da lamparina de cristal da Boêmia, em forma de urna, que pendia do teto por leves correntinhas; a chaminé de mármore de Siena, no quarto de casa de meus avós, no Combray; naqueles dias longínquos que eu me figurava naquele momento como atuais, mas sem representar com exatidão; teria que ver muito mais claro um instante depois, quando despertasse, por completo.
Marcel Proust
quarta-feira, 28 de outubro de 2009
Num exemplar das geórgicas
Marc Dalessio |
Os livros. A sua cálida,
terna, serena pele. Amorosa
companhia. Dispostos sempre
a partilhar o sol
das suas águas. Tão dóceis,
tão calados, tão leais.
Tão luminosos na sua
branca e vegetal e cerrada
melancolia. Amados
como nenhuns outros companheiros
da alma. Tão musicais
no fluvial e transbordante
ardor de cada dia.
Eugénio de Andrade
segunda-feira, 26 de outubro de 2009
Canto I, Inferno, A divina comédia
Nel mezzo del cammin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura
ché la diritta via era smarrita.
Ahi quanto a dir qual era è cosa dura
esta selva selvaggia e aspra e forte
che nel pensier rinova la paura!
Tant'è amara che poco è più morte;
ma per trattar del ben ch'i' vi trovai,
dirò de l'altre cose ch'i' v'ho scorte.
Io non so ben ridir com'i' v'intrai,
tant'era pien di sonno a quel punto
che la verace via abbandonai.
Dante Alighieri
Não! Não cabe a ti abrir os botões
Não! Não cabe a ti abrir os botões e fazê-los desabrochar! Podes balançar o botão e até bater nele... Está além de teu poder fazê-lo florescer! O teu toque apenas murcha e rasga as tuas pétalas. Fazendo-as cair em pedaços no chão. E então nenhuma cor se revela, e nenhum perfume se faz sentir.
Sim, não cabe a ti abrir o botão e fazê-lo desabrochar...
Aquele que pode abrir o botão realiza a sua tarefa de modo tão simples! Ele olha-o de relance, e a seiva da vida corre-lhe nas veias; ao seu sopro a flor abre as suas asas e esvoaça ao sabor do vento; e então as cores despontam na flor como anseios do coração, e o seu perfume trai um suave segredo.
Aquele que pode abrir o botão realiza a sua tarefa de modo tão simples...
Rabindranat Tagore (1991, p.19)
do livro A Colheita
domingo, 25 de outubro de 2009
Bruna Lombardi, Diário do Grande Sertão
Quarta, 12
Ambiguidade.
Noções de.
Me reservo o direito de ser contraditória e sei que isso me enriquece
Anoto no meu caderno: o conflito é o interessante, o dramático. Quem quer ouvir uma história sem conflito?
E no entanto, na história da nossa vida, estamos sempre tentando anular o conflito.
Madrugada
Corri sério risco de conhecer a vida só através de livros, filmes. Embareava dentro de tudo que lia e pirava, via um filme e entrava em órbita. Forte tendência a buscar na literatura a única realidade.
Me lembro quando troquei A Náusea do Sartre pelo Sexus de Miller e acho que quem troca a náusea pelo sexo está fora de perigo.
Se não fosse o teatrinho que inventei embaixo da escada, os beijos escondidos no irmão da minha amiga, acho que eu não teria descoberto a dinâmica, o movimento, a dança, o contato, a surpresa dos sentidos. Uma vida vivida em vez de uma vida pensada.
Decididamente o prazer me salvou.
Ambiguidade. Ambiguidade. Ambiguidade.
Novas Noções.
Ontem falei do prazer num lugar onde teoricamente o prazer não existe. Vivemos as mais precárias condições, total provação, misto de monastério, exército, prisão. Grandes batalhas. Comportamento estóico. Nessa brusca privação de todos os prazeres há de existir escondido algum fruto. A face de Deus.
“As pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas”
Sem dúvida, alguns caminhos levam à religiosidade. O Caminho de San Tiago. Nossa formação cristã tenta se equilibrar entre culpa e pecado.
O sofrimento se equipara à recompensa. Sou das que acreditam religiosamente no caminho do prazer.
No fundo, para alguma coisa útil contribuiu essa formação católica, fundamental pra nossa conduta de medos, culpas, neuras, dramas, pesos, castigos, crimes secretos.
Bruna Lombardi, Diário do Grande Sertão
Preciso sim, preciso tanto.
Preciso sim, preciso tanto. Alguém que aceite tanto meus sonos demorados quanto minhas insônias insuportáveis. Tanto meu ciclo ascético Francisco de Assis quanto meu ciclo etílico bukovskiano. Que me desperte com um beijo, abra a janela para o sol ou a penumbra. Tanto faz, e sem dizer nada me diga o tempo inteiro alguma coisa como eu sou o outro ser conjunto ao teu, mas não sou tu, e quero adoçar tua vida. Preciso do teu beijo de mel na minha boca de areia seca, preciso da tua mão de seda no couro da minha mão crispada de solidão. Preciso dessa emoção que os antigos chamavam de amor, quando sexo não era morte e as pessoas não tinham medo disso que fazia a gente dissolver o próprio ego no ego do outro e misturar coxas e espíritos no fundo do outro-você, outro-espelho, outro-igual-sedento-de-não-solidão, bicho-carente, tigre e lótus. Preciso de você que eu tanto amo e nunca encontrei. Para continuar vivendo, preciso da parte de mim que não está em mim, mas guardada em você que eu não conheço. Tenho urgência de ti, meu amor. Para me salvar da lama movediça de mim mesmo. Para me tocar, para me tocar e no toque me salvar. Preciso ter certeza que inventar nosso encontro sempre foi pura intuição, não mera loucura. Ah, imenso amor desconhecido. Para não morrer de sede, preciso de você agora, antes destas palavras todas cairem no abismo dos jornais não lidos ou jogados sem piedade no lixo. Do sonho, do engano, da possível treva e também da luz, do jogo, do embuste: preciso de você para dizer eu te amo outra e outra vez. Como se fosse possível, como se fosse verdade, como se fosse ontem e amanhã.
Caio Fernando Abreu
La poesia es como el pan
Andrew Atroshenko |
Yo como tu
amo el amor,
la vida,
el dulce encanto de las cosas
el paisaje celeste de los dias de enero.
También mi sangre bulle
y rio por los ojos
que han conocido el brote de las lágrimas.
Creo que el mundo é bello,
que la poesia es como el pan,
de todos.
Y que mis venas no terminan em mí,
sino que en la sangre unánime
de los que luchan por la vida,
el amor,
las cosas,
el paisaje y el pan,
la poesia de todos.
Roque Dalton
sexta-feira, 23 de outubro de 2009
O Outro
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
Mário de Sá-Carneiro
Paragem. Zona
Feliu Elias i Bracons |
Tragam-me esquecimento em travessas!
Quero comer o abandono da vida!
Quero perder o hábito de gritar para dentro.
Arre, já basta! Não sei o quê, mas já basta...
Então viver amanhã, hein? ... E o que se faz hoje?
Viver amanhã por ter adiado hoje?
Comprei por acaso um bilhete para esse espetáculo?
Que gargalhadas daria quem pudesse rir!
E agora aparece o elétrico - o de que estou à espera -
Antes fosse outro... Ter de subir já!
Ninguém me obriga, mas deixá-lo passar, por quê?
Só deixando passar todos, e a mim mesmo, e à vida...
Que náusea no estômago real que é a alma consciente!
Que sono bom o ser outra pessoa qualquer...
Já compreendo porque é que as crianças querem ser guarda-freios...
Não, não compreendo nada...
Tarde de azul e ouro, alegria das gentes, olhos claros da vida...
Álvaro de Campos
O Anticristo
Friedrich Nietzsche, O Anticristo
quinta-feira, 22 de outubro de 2009
Amigos
Os amigos chegam de um momento para o outro
deixam a bolsa de milho no umbral
Sentam-se e dizem olá
dizem amigo amiga mascando as bolachas da casa
bebem o vinho do amanhecer
escrevem uma história nas paredes
travam as janelas sacudidas pelo vento com um poema dobrado em quatro
vento louco do sul
e vão-se
Até sempre
Juan Antonio Vasco
quarta-feira, 21 de outubro de 2009
O primeiro objeto erótico de uma criança é o seio da mãe que a alimenta; a origem do amor está ligada à necessidade satisfeita de nutrição. Não há dúvida de que, inicialmente, a criança não distingue entre o seio e o seu próprio corpo; quando o seio tem de ser separado do corpo e deslocado para o “exterior”, porque a criança tão freqüentemente o encontra ausente, ele carrega consigo, como um “objeto”, uma parte das catexias libidinais narcísicas originais. Este primeiro objeto é depois completado na pessoa da mãe da criança, que não apenas a alimenta, mas também cuida dela e, assim, desperta-lhe um certo número de outras sensações físicas, agradáveis e desagradáveis. Através dos cuidados com o corpo da criança, ela se torna seu primeiro sedutor. Nessas duas relações reside a raiz da importância única, sem paralelo, de uma mãe, estabelecida inalteravelmente para toda a vida como o primeiro e mais forte objeto amoroso e como protótipo de todas as relações amorosas posteriores - para ambos os sexos.
Sigmund Freud , (Esboço de psicanálise, 1938)
Hora morta
Lenta e lenta a hora
Por mim dentro soa
(Alma que se ignora!)
Lenta e lenta e lenta,L
Lenata e sonolenta
A lua se escoa...
Tudo tão inútil!
Tão como que doente
Tão divinamente
Fútil - ah, tão fútil
Sonho que se sente
De si próprio ausente...
Naufrágio ante o ocaso...
Hora de piedade...
Tudo é névoa e acaso
Hora oca e perdida,
Cinza de vivida
(Que Poente me invade?)
Porque lenta ante olha
Lenta em seu som,
Que sinto ignorar?
Por que é que me gela
Meu próprio pensar
Em sonhar amar?
Fernando Pessoa
Woman on Beach, Looking for Sea Shells, Daryl Urig |
Nos teus olhos alguém anda no mar
alguém se afoga e grita por socorro
e és tu que vais ao fundo devagar
enquanto sobre ti eu quase morro.
E de repente voltas do abismo
e nos teus olhos há um choro riso
teu corpo agora é lava e fogo e sismo
de certo modo já não sou preciso.
Na tua pele toda a terra treme
alguém fala com Deus alguém flutua
há um corpo a navegar e um anjo ao leme.
Das tuas coxas pode ver-se a Lua
contigo o mar ondula e o vento geme
e há um espírito a nascer de seres tão nua.
Manuel Alegre
segunda-feira, 19 de outubro de 2009
Perdi-me muitas vezes pelo mar
Perdi-me muitas vezes pelo mar
Com o ouvido cheio de flores recém-cortadas
Com a língua, cheia de amor e de agonia
Muitas vezes me perdi pelo mar
Como me perco no coração de alguns meninos
Porque as rosas buscam em frente
Uma dura paisagem de osso
E as mão do homem não tem mais sentido
Que imitar as raízes sobre a terra
Como me perco no coração de alguns meninos
Perdi-me muitas vezes pelo mar
Ignorante da água
Vou buscando uma morte de luz que me consuma
Federico García Lorca
Poema para habitar
A casa desabitada que nós somos
pede que a venham habitar,
que lhe abram as portas e as janelas
e deixem passear o vento pelos corredores.
Que lhe limpem os vidros da alma
e ponham a flutuar as cortinas do sangue
– até que uma aurora simples nos visite
com o seu corpo de sol desgrenhado e quente.
Até que uma flor de incêndio rompa
o solo das lágrimas carbonizadas e férteis.
Até que as palavras de pedra que arrancamos da língua
sejam aproveitadas para apedrejarmos a morte.
Albano Martins
domingo, 18 de outubro de 2009
XL - O Guardador de rebanhos
Martin Johnson Heade |
Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.
Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa)
07/05/1914
Azul Sereno
O azul sereno e luminoso do amanhecer
A se intensificar com o dia
Azul... mais azul... o mais azul,
Nuvens brancas de prazer,
Alegria transbordando,
Até o pôr-do-sol
Envolvendo-nos em suave rosa
E nos fundindo numa
Despedida de magenta ardente,
Alma-Terra e alma-cósmica
Explodindo em beleza.
Quando a noite chegou,
A luz nascendo Riu de lado no escuro.
Também ri
E pensei: No outro lado do mundo
O seu céu
Está repleto com esse mesmo
Riso dourado,
E esperei que você,
Olhos azuis cintilantes, visse e ouvisse,
A fim de que nós três de alguma forma
Nos juntássemos em nossas alegrias,
Cada um em seu próprio espaço,
Juntos apartados,
A distância não importa.
E eu dormi
Num mundo
Cheio de sorrisos.
O seu céu
Está repleto com esse mesmo
Riso dourado,
E esperei que você,
Olhos azuis cintilantes, visse e ouvisse,
A fim de que nós três de alguma forma
Nos juntássemos em nossas alegrias,
Cada um em seu próprio espaço,
Juntos apartados,
A distância não importa.
E eu dormi
Num mundo
Cheio de sorrisos.
(Richard Bach)
Escrever
Gusti Yogiswara |
A escrita é o desconhecido. Antes de escrever não sabemos nada acerca do que vamos escrever. Com toda a lucidez.
É o desconhecido de nós mesmos, da nossa cabeça, do nosso corpo. Não é sequer uma reflexão, escrever é uma espécie de faculdade que temos ao lado da nossa pessoa, paralelamente a ela, de uma outra pessoa que aparece e que avança, invisível, dotada de pensamento, de cólera, e que, por vezes, pelos seus próprios fatos, está em perigo de perder a vida.
Se soubéssemos alguma coisa do que vamos escrever, antes de o fazer, antes de escrever, nunca escreveríamos. Não valeria a pena.
Escrever é tentar saber aquilo que escreveríamos se escrevêssemos - só o sabemos depois - antes, é a interrogação mais perigosa que nos podemos fazer. Mas é também a mais corrente.
Marguerite Duras
sexta-feira, 16 de outubro de 2009
“Quero escrever o borrão vermelho de sangue”
Daniel Gerhartz |
Quero escrever o borrão vermelho de sangue com as gotas e coágulos pingando de dentro para dentro. Quero escrever amarelo-ouro com raios de translucidez. Que não me entendam pouco-se-me-dá. Nada tenho a perder. Jogo tudo na violência que sempre me povoou, o grito áspero e agudo e prolongado, o grito que eu, por falso respeito humano, não dei. Mas aqui vai o meu berro me rasgando as profundas entranhas de onde brota o estertor ambicionado. Quero abarcar o mundo com o terremoto causado pelo grito. O clímax de minha vida será a morte.
Clarice Lispector
in: BORELLI, Olga.
Clarice Lispector – Esboço para um possível retrato.
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981, p. 65
Na trilha dos mistérios de Clarice
Quem conheceu Clarice sabe: ela não era mesmo muito deste mundo. Até hoje lembro de um encontro que tivemos em Porto Alegre, em 1975. Ela – que quase não falava, fumava muito e suportava pouco as pessoas – me convidou para um café na Rua da Praia. Fomos. Silêncio denso, lispectoriano. No balcão do bar, por trás da fumaça do cigarro e com aquele sotaque estranhíssimo, de repente ela perguntou: “Como é mesmo o nome desta cidade?” E estava em Porto Alegre há três dias...
Caio Fernando Abreu
Caderno 2 – OESP – Domingo, 7 de agosto de 1994
quinta-feira, 15 de outubro de 2009
francine van hove |
O espelho enche-se com a tua
imagem; e queria tirá-lo da tua
mão, e levá-lo comigo, para
que o teu rosto me acompanhe
onde quer que eu vá.
Mas sem ti, o espelho
fica vazio; e ao olhá-lo, vejo
apenas o lugar onde estiveste, e
os olhos que os meus olhos procuram
quando não sei onde estás.
Por que não fechas os olhos
para que o espelho te prenda, e
outros olhos te possam guardar,
para sempre, sem que tenham de olhar,
no espelho, o rosto que eu procuro?
Nuno Júdice
quarta-feira, 14 de outubro de 2009
Por que não?
Willem Haenraets |
Eu olhei e pensei por que não?
dezesseis anos mais velho, seguro
homem de opinião e nenhum caráter
o velho truque do maduro
um ator na vida, e eu pensei por que não?
vai ver é um menino com medo
vai ver se atrapalha
não, acho que não
deve ser um pouco canalha como todos são
um cruzar de pernas, um olhar grave
não sei direito o que se faz pra ser querida
uma posição mais provocante
uma atitude mais desinibida
logo eu que morro de vergonha
de tentar ser um pouco atrevida
logo eu que o que cometo em sonhos
seria incapaz de cometer na vida
mas pensei por que não o estímulo de uma aventura
o prazer de ceder à tentação
é tão raro acontecer esse desejo, dura
tão pouco isso
a novidade
e depois não tem o compromisso da paixão
come e depois espalha pra cidade
aquela coisa machista insuportável
estilo gosta de levar vantagem
— chega de pensar bobagem —
não é possível que ele seja assim
ele é sensível, inteligente, um homem que chora
só falta agora um sopro de coragem, uma insinuação
e se ele for um sujeito compulsivo
maníaco depressivo, do tipo que atormenta
astral anos sessenta
e eu me arrepender profundamente
— o ruim do porre é a ressaca —
se for um cara babaca desses dose pra analista
se ainda for comunista do antigo pecezão
não, claro que não
ele é brilhante, contemporâneo, atuante
ativo da linha de frente
e eu molhei os lábios sensualmente
e pensei por que não?
Bruna Lombardi
Bruna Lombardi
Cidadezinha Qualquer
terça-feira, 13 de outubro de 2009
Joseph Lorusso |
“Tudo se encaminha para o final, no cenário, um final apropriado. Por toda parte, imperceptivelmente ou não, as coisas estão passando, acabando, indo embora. E haverá outros verões, outros espetáculos de bandas, mas aquele ali, nunca mais, nunca mais como agora. No próximo ano eu não serei a pessoa que sou este ano. E por isso dou risada do que é passageiro, efêmero. As coisas estão funcionando, forças cegas, mas nenhuma força pessoal espiritual beneficente exceto sua própria inteligência e a boa vontade de alguns poucos malucos seus semelhantes. Aproveite enquanto é tempo.”
Sylvia Plath, In Diários
domingo, 11 de outubro de 2009
Plenilunio
Desmaia o plenilúnio. A gaze pálida
Que lhe serve de alvíssimo sudário
Respira essências raras, toda a cálida
Mística essência desse alampadário.
E a lua é como um pálido sacrário,
Onde as almas das virgens em crisálida
De seios alvos e de fronte pálida,
Derramam a urna dum perfume vário.
Voga a lua na etérea imensidade!
Ela, eterna noctâmbula do Amor,
Eu, noctâmbulo da Dor e da Saudade.
Ah! como a branca e merencórea lua,
Também envolta num sudário — a Dor,
Minh'alma triste pelos céus flutua!
Augusto dos Anjos
O rosto atrás do rosto
À frente do rosto dele estava um outro rosto desconhecido e o outro rosto não se movia então ele viu o outro rosto. E era lindo, o outro rosto. Ele ficou olhando, encantado com tanta beleza. Mas o outro rosto não se movia. Era tão bonito o outro que ele não resistiu a tentação de tocá-lo. Talvez não devesse, pensou. Quando pensou, já era tarde demais. Tinha estendido a mão para tocar devagarinho na pele do outro rosto. O outro rosto não se movia.Tão bonito, o outro rosto sob seus olhos e tão macia a pele do outro rosto sob seus dedos, que num impulso aproximou ainda mais seu próprio rosto. Tão próximo agora que conseguia sentir seu próprio hálito, como um vento miúdo fazendo esvoaçar os cabelos finos, perfumados, da cabeça do outro rosto. Mas o outro rosto não se movia.Com toda a suavidade que era capaz, e era muita, tomou entre as mãos o outro rosto e foi aproximando sua boca da boca do outro rosto. Até seus lábios tocarem nos lábios do outro rosto, à espera que a saliva da própria boca umedecesse também a boca daquele outro rosto. Com a ponta da língua, tentou abrir lentamente uma brecha entre os lábios do outro rosto. Os lábios do outro rosto estavam secos e não se abriam. E o outro rosto continuava a se mover.Mordeu então a boca do outro rosto. Primeiro de leve, depois mais forte. Cada vez mais faminto, arrancando pedaços de uma maçã vermelha. Mordeu os lábios, o queixo, e também as faces e o nariz e os olhos do outro rosto. Com doçura, com paixão, com ansiedade e fúria. Mas o outro rosto não se movia.Da mesma forma como tinha aproximado do seu o outro rosto, afastou-o com as duas mãos iradas. Uma das mãos segurou com força os cabelos finos, perfumados, enquanto a outra erguia-se para esbofeteá-lo uma, duas, várias vezes. Um fio de sangue escorreu do canto da boca do outro rosto. Que mesmo assim, não se movia. Então apanhou a navalha que trazia no bolso. Um click seco libertou a lâmina. E num golpe veloz, num único gesto, com todo ódio que era capaz, e era muito, cortou a pele macia do outro rosto. E o outro rosto, lavado de sangue, ainda assim não se movia. Então apanhou a pedra que trazia no bolso. Ergueu-a no ar e com um golpe duro bateu na boca do outro rosto, para quebrar-lhe os dentes. Os cacos escorreram pelos cantos da boca, pedras num rio de sangue. Cortado, os dentes quebrados: o outro rosto não se movia.Então apanhou o estilete agudo que trazia no bolso. E com um golpe preciso, furou os dois olhos do outro rosto. Cortado, os dentes quebrados, olhos vazados: e não - o outro rosto não se movia.Afastou o próprio rosto e contemplou novamente o outro rosto. Embora destruído, o que restava do outro rosto era uma máscara morta sobre um outro rosto vivo. Estendeu as duas mãos e arrancou a máscara do outro rosto.Por trás da máscara, por baixo do outro rosto estava o rosto dele mesmo. Inteiro e sem ferimento algum, o rosto dele mesmo. E era lindo, o próprio rosto vivo por trás da máscara morta do outro rosto. Ele ficou olhando o próprio rosto. Ele estendeu as mãos e tocou o próprio rosto com todo carinho - e era muito, esse carinho - que era capaz.Foi então que o próprio rosto - que não era o outro rosto nem o rosto de outro, mas sim o próprio rosto vivo por trás da máscara morta do outro rosto - finalmente começou a se mover.
sexta-feira, 9 de outubro de 2009
Borboleta
Borboleta dos amores,
Como a outra sobre as flores,
Porque és volúvel assim?
Porque deixas, caprichosa,
Porque deixas tu a rosa
E vais beijar o jasmim?
Pois essa alma é tão sedenta
Que um só amor não contenta
E louca quer variar?
Se já tens amores belos,
P'ra que vais dar teus desvelos
Aos goivos da beira-mar?
Não sabes que a flor traída
Na débil haste pendida
Em breve murcha será?
Que de ciúmes fenece
E nunca mais estremece
Aos beijos que a brisa dá?...
Borboleta dos amores,
Como a outra sobre as flores,
Porque és volúvel assim?
Porque deixas, caprichosa,
Porque deixas tu a rosa
E vais beijar o jasmim?!
Tu vês a flor da campina,
E bela e terna e divina,
Tu dás-lhe o que essa alma tem;
Depois, passado o delírio,
Esqueces o pobre lírio
Em troca duma cecém!
Mas tu não sabes, louquinha,
Que a flor que pobre definha
Merece mais compaixão?
Que a desgraçada precisa,
Como do sopro da brisa,
Os ais do teu coração?
Borboleta dos amores,
Como a outra sobre as flores,
Porque és volúvel assim?
Porque deixas, caprichosa,
Porque deixas tu a rosa
E vais beijar o jasmim?
Se a borboleta dourada
Esquece a rosa encarnada
Em troca duma outra flor;
Ela - a triste, molemente
Pendida sobre a corrente,
Falece à míngua d'amor.
Tu também minha inconstante
Tens tido mais dum amante
E nunca amaste a um só!
Eles morrem de saudade,
Mas tu na variedade
Vais vivendo e não tens dó!
Ai! és muito caprichosa!
Sem pena deixas a rosa
E vais beijar outras flores;
Esqueces os que te amam...
Por isso todos te chamam:
- Borboleta dos amores!
Casimiro de Abreu
Com minha vida escrevo
o rastro de uma estrela,
um labirinto em que acesa ando.
Imersa na sombra
mirada plena,
Há um voo que abre
a luz no interior
um caminhar sensível,
e cuidado
do coração desperto.
***
LABERINTO
Verônica Volkow
Tradução de Antonio Miranda
***
LABERINTO
Con mi vida escribo
la huella de una estrella,
un laberinto que encendida ando.
Sumergida en la sombra
mirada plena,
Hay un vuelo que abre
la luz en lo interno
un caminar sensible,
y cuidado
del corazón despierto.
Verônica Volkow
Tradução de Antonio Miranda
Texto de Libra
Libra é o signo da harmonia.
Da harmonia da valsa e da escola de samba.
Mas não da harmonia que faz tudo ficar igual e repetitivo.
É o signo do equilíbrio que das diferenças.
Dos mil tipos que somos e vemos no mundo.
Todos humanos. Deuses da imperfeição e lindos.
Mas não da harmonia que nos faz pensar, andar e vestir igual a todo mundo.
É o signo da balança.
Do equilíbrio que há no espaço e no fundo do fundo de cada homem.
Mas não do equilíbrio forçado que descaracteriza as pessoas e as torna sem brilho.
É o signo da harmonia de cada acorde desafinado, de toda árvore torta, de todo louco, de toda pedra pontuda.
É signo da balança.
Do equilíbrio das diferenças.
Como são diferentes e equilibradas as sete cores do arco-íris.
Que juntas, ainda diferentes e equilibradas, formam o branco da paz.
Oswaldo Montenegro
quarta-feira, 7 de outubro de 2009
Patrick Suskind, O Perfume
Sim, amá-lo é o que deveriam quando estivessem sob o fascínio do seu cheiro, não apenas aceitá-lo como igual, mas amá-lo até a loucura, até o sacrifício pessoal; deveriam tremer de encanto, uivar e gritar, chorar de prazer, sem saber por que, cair de joelhos - isto é que deveriam fazer como sob o incenso frio de deus, só por chegarem a cheirá-lo! Queria ser o Deus onipotente do aroma, como o fora em suas fantasias, mas agora no mundo real e sobre pessoas reais. E ele sabia que isso estava em seu poder. Pois as pessoas podiam fechar os olhos diante da grandeza, do assustador, da beleza, e podiam tapar os ouvidos diante da melodia ou de palavras sedutoras. Mas não podiam escapar ao aroma. Pois o aroma é um irmão da respiração. Como esta, ele penetra nas pessoas, elas não podem escapar-lhe caso queiram viver.
E bem para dentro delas é que vai o aroma, diretamente para o coração, distinguindo lá categoricamente entre atração e menosprezo, nojo e prazer, amor e ódio.
Patrick Suskind, O Perfume
segunda-feira, 5 de outubro de 2009
O guardador de rebanhos
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...
Alberto Caeiro
Para a appassionata
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