sexta-feira, 29 de julho de 2022
Poema
vestindo coisas longínquas
e alguns farrapos de sono,
eu vim para te dizer
que inutilmente contemplo
na planície de teus olhos
o incêndio do meu orgulho.
Senhora de muito espanto,
sentada além do crepúsculo
e perfeitamente alheia
a realejos e manhãs.
Eu vim para te mostrar
que se inaugurou um abismo
vertical e indefinido
que vai do meu lábio arguto
ao chumbo do teu vestido.
Senhora de muito espanto
e alguns farrapos de sono,
onde o céu é coisa gasta
que ao meu gesto se confunde.
Um dia perdi teu corpo
nas cores do mapa-múndi.
Carlos Pena
Painting by Timothy Rees |
Dentro das Circunstâncias
espaço, ocupo pouco
e uma certa letargia nos movimentos
já não se fala mais como antigamente
mas todos ganham mais dinheiro.
E se fazem intervalos
se criam movimentos débeis
tanta gente falando em viver.
Saber. Não sei de nada.
Deveriam olhar mais pros bichos
e aprender com eles.
Que esta racionalidade
parece não estar dando certo.
Espaço ocupo pouco
e mal me cabe dentro
tudo o que me mostram
e o que me fazem ouvir.
Bruna Lombardi
Formas de abençoar
Francesca Strino |
Fique aqui mesmo, morra antes
de mim, mas não vá para o mundo.
Repito: não vá para o mundo,
que o mundo tem gente, meu filho.
Por mais calado que você
seja, será crucificado.
Por mais sozinho que você
seja, será crucificado.
Há uma mentira por aí
chamada infância, você tem?
Mesmo sem a ter, vai pagar
essa viagem que não fez.
Grande, muito grande é a força
desta noite que vem de longe.
Somos treva, a vida é apenas
puro lampejo do carvão.
No início, todos o perdoam,
esperando que você cresça,
esperando que você cresça
para nunca mais perdoá-lo.
Alberto da Cunha Melo
De O Cão de Olhos Amarelos & Outros Poemas Inéditos
solto a direção do automóvel
para escrever alguma coisa
mais urgente que minha vida.
Devo portanto utilizar
o vocabulário econômico
do Século: é proibido
amar, fumar, pisar na grama.
Mas gostaria que restasse
algum tempo para dizer
no poema as palavras súbitas
de recompensa e remissão.
Ó meu Deus, eu quero escrever
a minha vida, não teu Céu.
Eu estou só e enlouquecido
como as ovelhas mais longínquas.
Dá pelo menos a esperança
de terminar o doloroso
poema. Dá isso a teu filho,
caído, e coberto de sal.
Alberto da Cunha Melo
De Oração pelo Poema
quarta-feira, 27 de julho de 2022
[43]
Há um cansaço da inteligência abstrata, e é o mais horroroso dos cansaços. Não pesa como o cansaço do corpo, nem inquieta como o cansaço do conhecimento pela emoção. É um peso da consciência do mundo, um não poder respirar com a alma.
Então, como se o vento nelas desse, e fossem nuvens, todas as ideias em que temos sentido a vida, todas as ambições e desígnios em que temos fundado a esperança na continuação dela, se rasgam, se abrem, se afastam tornadas cinzas de nevoeiros, farrapos do que não foi nem poderia ser. E por detrás da derrota surge pura a solidão negra e implacável do céu deserto e estrelado.
O mistério da vida dói-nos e apavora-nos de muitos modos. Umas vezes vem sobre nós como um fantasma sem forma, e a alma treme com o pior dos medos — a da encarnação disforme do não-ser. Outras vezes está atrás de nós, visível só quando nos não voltamos para ver, e é a verdade toda no seu horror profundíssimo de a desconhecermos.
Mas este horror que hoje me anula é menos nobre e mais roedor. É uma vontade de não querer ter pensamento, um desejo de nunca ter sido nada, um desespero consciente de todas as células do corpo e da alma. É o sentimento súbito de se estar enclausurado na cela infinita. Para onde pensar em fugir, se só a cela é tudo?
E então vem-me o desejo transbordante, absurdo, de uma espécie de satanismo que precedeu Satã, de que um dia — um dia sem tempo nem substância — se encontre uma fuga para fora de Deus e o mais profundo de nós deixe, não sei como, de fazer parte do ser ou do não-ser.
Bernardo Soares. Fernando Pessoa
O livro do desassossego
terça-feira, 26 de julho de 2022
Em um sentido mais amplo, pode-se dizer também que os quarenta primeiros anos da existência proporcionam o texto e os trinta seguintes o comentário. Esse então nos faz compreender bem o sentido verdadeiro e a sequência do texto, juntamente com sua moral e todas as suas nuances e sutilezas.
Em relação ao término da vida, há algo que lembra o final de um baile de mascarados quando as máscaras são retiradas. Nesse momento realmente se vê quais eram aqueles com os quais se esteve em contato durante sua vida. Os caracteres se revelaram, as ações deram seus frutos, as obras encontraram sua exata apreciação e todas as fantasmagorias desapareceram. Porque para isso foi necessário tempo. O mais curioso é que apenas no fim de nossas vidas realmente reconhecemos e compreendemos a nós próprios, nossas metas e objetivos, especialmente no que concerne às nossas relações com o mundo e com os demais. Muitas vezes, mas não sempre, teremos de nos classificar mais abaixo do que anteriormente supúnhamos merecer. Porém às vezes nos concederemos um posto superior, isso porque não tínhamos uma noção adequada da baixeza do mundo, e havíamos lançado aspirações mais elevadas que o restante da humanidade. A marcha da vida nos ensina a conhecer o que cada qual vale.
Arthur Schopenhauer
Aforismos para a sabedoria de vida
Roberto Ferri |
Quanto ao par de opostos sadismo-masoquismo, o processo pode ser apresentado da seguinte forma: a) O sadismo consiste em prática de violência, exercício de poder tendo uma outra pessoa como objeto. b) Esse objeto é abandonado e substituído pela própria pessoa. Com a volta contra a própria pessoa também se realiza a transformação da meta instintual ativa em passiva. c) Novamente se busca uma outra pessoa como objeto, a qual, em virtude da transformação de meta ocorrida, tem de assumir o papel de sujeito. O caso é o que comumente se chama de masoquismo. Também com ele a satisfação se dá pela via do sadismo original, o Eu passivo se colocando em fantasia no seu lugar anterior, agora deixado ao novo sujeito. É bastante duvidoso que exista uma satisfação masoquista mais direta. Não parece ocorrer um masoquismo original, que não surja a partir do sadismo, da maneira descrita.
Sigmund Freud
Obras Completas
Escuta, Zé Ninguém!
René Magritte –1946 |
Chamam-te “Zé Ninguém!” “Homem Comum” e, ao que dizem, começou a tua era, a “Era do Homem Comum”. Mas não és tu que o dizes, Zé Ninguém, são eles, os vice-presidentes das grandes nações, os importantes dirigentes do proletariado, os filhos da burguesia arrependidos, os homens de Estado e os filósofos. Dão-te o futuro, mas não te perguntam pelo passado. Tu és herdeiro de um passado terrível. A tua herança queima-te as mãos, e sou eu que te digo. A verdade é que todo o médico, sapateiro, mecânico ou educador que queira trabalhar e ganhar o seu pão deve conhecer as suas limitações. Há algumas décadas, tu, Zé Ninguém, começaste a penetrar no governo da Terra. O futuro da raça humana depende, a partir de agora, da maneira como pensas e ages. Porém, nem os teus mestres nem os teus senhores te dizem como realmente pensas e és, ninguém ousa dirigir-te a única critica que te podia tornar apto a ser inabalável senhor dos teus destinos.
És “livre” apenas num sentido: livre da educação que te permitiria conduzires a tua vida como te aprouvesse, acima da autocrítica.
Wilhelm Reich
Escuta, Zé Ninguém!
domingo, 10 de julho de 2022
Devir-mulher
Richard Macneil |
Estamos interessados em determinadas ideias sobre o amor, e essas o trazem como devir e não como dever. Para nós, recusar os deveres é o primeiro passo para tornar as coisas mais leves.
Entre dever e devir, nossa pergunta inicial se desenvolve em várias outras: primeiro, o que é dever-amor? Depois, o que é devir-amor? Afinal, por que o amor se constituiu como um dever? Ou, qual é o traço característico de um amor leve? Ou ainda, como torná-lo um devir? Não queremos desviar dos problemas nem nos livrar das perguntas, mas queremos que sejam o mais interessantes que podem ser. Viver, trata-se de buscar bons problemas; filosofar, trata-se de fazer boas perguntas.
O amor se torna um dever sempre que é subordinado a um modelo. Seja familiar, religioso ou biológico, há sempre um campo normativo que enrijece as relações, submetendo-as a um dever-ser. Qualquer ideia de “amor verdadeiro” nada mais é do que uma prática de resiliência fundamentada em ideais. A paixão infinita com seu brilho celeste nos atordoa ao ponto do constrangimento. O amor imutável e sua recorrente necessidade de provas pesa sobre nossos ombros. Aceitar, aceitar, aceitar, nunca questionar, nunca mudar.
Ainda que mais duras ou mais flexíveis, sempre haverá forças sociais a ditar o que é o amor verdadeiro e como as pessoas deveriam viver. Então, não é a questão utópica de pensar a liberdade absoluta, mas uma prática de questionamento. Nesse sentido, é muito bom que tenhamos achado nomes para essas forças produtoras: heteronormatividade, cisnormatividade, machismo… e muitos outros. São camadas de uma mesma prática de constrangimento operada sobre tudo aquilo que se diferencia do normal. No caso, o homem cis branco heterossexual e seu par fusional, a mulher submissa, “bela, recatada e do lar”.
O homem que ninguém é, mas todos deveriam ser, aí está uma forma vazia que nos aprisiona a todos. A destituição do homem de seu lugar de poder é fundamental se quisermos reinventar o amor. Devir-mulher é contestar o macho escroto que há em todos nós. A primeira força para revitalizar o amor é feminina. O homem se constituiu pela propensão perversa em fruir de um objeto passivo, dominá-lo a despeito de seu desejo, nada mais do que submetê-lo à sua violência.
Nosso amor estava decidido antes mesmo de nascermos? Desculpe, não podemos aceitar. Ainda crianças nos dizem o que amar e o que odiar como se nos depositassem na base de uma escada rolante, subindo em direção à realização da vida perfeita: paixão pelo marido, amor pelo patrão, obediência ao pai, tesão pelo carro, desejo pela grana. Em sua irredutível singularidade, nossos corpos desafiam esse dispositivo, eles gritam: não queremos chegar a lugar algum! Cada momento já é uma chegada, onde descobrimos um interesse, onde encontramos um caminho, onde integramos uma relação.
Para recuperar algum amor-próprio, precisamos emancipar o amor do plano ideal ao qual ele foi alçado, porque lá em cima ele só serve para julgar aquele que de fato existe. O óbvio precisa ser dito: ninguém é culpado por amar, nem por deixar de amar. A ternura que sentimos por outra pessoa é uma delicada exuberância, é resultado de uma abundância, de um atravessamento que não cessa de nos espantar. Não estamos sempre prontos para amar, assim como podemos ser sempre surpreendidos pelo amor.
Não há por que se envergonhar, o devir assusta. Quando amamos alguém, é compreensível que a mudança nos assombre. Mas pensando bem, não foi justamente alguma mudança, algum movimento, que nos trouxe a pessoa amada? É claro que a passagem de algo bom para algo ruim nos incomoda – é inevitável – mas não faz sentido culpar a mudança. É tão ingênuo como culpar a gravidade por nos fazer tropeçar! No limite, é preciso tentar acompanhar a mudança, porque de um jeito ou de outro ela ocorre. O dia em que nos apaixonamos guarda uma semelhança com o dia em que partimos: o devir.
Devir é fundamental, pois é revolucionário por excelência. A metamorfose como princípio faz todos os modelos fugirem. Não há norma eterna, lei fixa, código rígido, o que há são relações se modificando segundo suas próprias medidas – quando não são aprisionadas dentro dos modelos, é claro. Em vez de nos enquadrar e aprisionar os outros, queremos a capacidade de acompanhar com o máximo possível de alegria os movimentos necessários, o perpétuo vir-a-ser que faz da vida aquilo que ela é.
Sempre e nunca são palavras muito pesadas, o amor começa no meio. O amor não é um território, é um fluxo que o atravessa e o modifica. É triste pensar as relações como conquista, como luta territorial. O desejo de conquistar não está muito distante do desejo de colonizar. Um princípio para viver o amor como um devir é deixar de amar os territórios para ligar-se aos seus movimentos. Habitar não é interromper, mas envolver-se com os fluxos, não trata de colocar armadilhas para aprisionar o amor, mas de estar atento aos encontros e presente nos afetos.
Falando em limites, outro bom princípio: não separar a amizade do amor. Mais uma vez, não são territórios distintos. Limites não são leis infalíveis, ao contrário, são medidas que estipulamos para nos relacionar bem. A amizade não é uma zona fria onde traçamos fronteiras intransponíveis. Ao contrário, a amizade já é um amor, só não se sabe até que ponto – é uma questão de devir. O amor está para além de deveres e direitos, ele contesta os limites mais rígidos propondo uma nova vida. Acolher este afeto, ainda que com alguma dificuldade, é o nosso objetivo.
Qualquer devir nos apresenta a novos verbos, e não é uma questão apenas linguística. A afeição que sentimos pelo outro é um vetor de transformação, no sentido em que nos mostra possibilidades novas de sentir, de pensar, de fazer, de ser. Devir-amor é diferenciar-se junto com o outro. É um passeio acompanhado, é devir-nuvem. Queremos voar juntos, rir acompanhados, sonhar acordados, nadar pelados, dormir agarrados – mas sempre preservando-nos da fusão completa.
Devir é o desafio de sentir-se mais próprio sendo outro. É um delicado equilíbrio, porque há sempre o risco de fundir-se e perder-se na dependência. Princípio básico da anarquia relacional: envolver-se sem prender, tanto a si mesmo como aos outros. Tornar-se outro, mas sempre acompanhado de si – eis a fórmula difícil, porém necessária, para transformar o dever-amar em devir-amor.
(https://razaoinadequada.com/2020/11/30/amor-dever-ou-devir/)