Eu também sou um mártir: queria morrer pelas dúvidas (O ceticismo, sem um aspecto religioso, é uma degradação do espírito.) Mas não pelas dúvidas da inteligência, senão pelas da crucificação. Traspassar com pregos o coração do espírito. Forçar dolorosamente a razão até os horizontes do mundo; sangrar ao sorrir. Quando acenderei fogueiras nas ideias? Há tanta brasa nas oscilações da mente! Não é fácil duvidar quando se tem os olhos voltados a Deus! (Amurgul gândurilor, 1936)
§
Em última análise, o ceticismo só surge da impossibilidade de realizar-se no êxtase, de alcançá-lo, de vivê-lo. Apenas sua luminosa cegueira, lancinantemente reveladora, nos cura das dúvidas. Uma morte de tremos balsâmicos. Quando o sangue ferve dentro de ti até o céu, como pode seguir duvidando? Mas como é raro que ferva assim!
Ceticismo: o desconsolo de não estar no céu. (Amurgul gândurilor, 1936)
§
Quanto mais perco minha fé no mundo, mais me encontro em Deus, sem crer nele. Será uma misteriosa doença ou uma nobreza da razão e do coração o que induz a ser ao mesmo tempo cético e místico? (Lacrimi şi sfinţi)
§
Nada mais fácil do que livrar-se da herança filosófica, pois as raízes da filosofia se detêm em nossas incertezas, enquanto que as da santidade superam em profundidade o próprio sofrimento. A coragem suprema da filosofia é o ceticismo. Para além dele, só reconhece o caos. Um filósofo só pode evitar a mediocridade mediante o ceticismo ou a mística, essas duas formas de desespero frente ao conhecimento. A mística é uma evasão fora do conhecimento, o ceticismo, um conhecimento sem esperanza. Duas maneiras de dizer que o mundo não é uma solução. (Lacrimi şi sfinţi)
§
Dentre os filósofos, só nos intrigam aqueles que, exasperados pelos sistemas, se puseram a buscar a felicidade. Assim nascem as filosofias crepusculares, mais consoladoras que as religiões, pois nos liberam de todas as proibições. Uma doce lassidão emana delas; parecem um Éden de incertezas, mais do que necessárias depois da frequentação insalubre dos santos. O ceticismo é a estupefação ante o vazio dos problemas e das coisas. Só os antigos foram verdadeiramente céticos. Suas dúvidas, impregnadas de uma indulgência outonal e de uma felicidade desenganada, tinham estilo, como todas as coisas delicadas em seu crepúsculo. (Lacrimi şi sfinţi)
§
A paixão do absoluto em uma alma cética! Um sábio enxertado em um leproso! Tudo o que não é absoluto ou verme da terra é híbrido. Já que não posso ser vigilante do infinito, me resta a vigilância dos cadáveres. (Lacrimi şi sfinţi)
§
Os desocupados captam mais coisas e são mais profundos que os atarefados: nenhuma empresa limita o seu horizonte; nascidos em um eterno domingo, olham e se olham olhar. A preguiça é um ceticismo fisiológico, a dúvida da carne. Em um mundo tomado pela ociosidade, seriam os únicos a não se tornar assassinos. (Breviário de decomposição)
§
Não há nenhuma necessidade de crer em uma verdade para sustentá-la nem de amar uma época para justificá-la, pois todo princípio é demonstrável e todo acontecimento legítimo. O conjunto dos fenômenos – frutos do espírito ou do tempo, indiferentemente – é suscetível de ser aceitado ou negado segundo nossa disposição do momento: os argumentos, surgidos de nosso rigor ou de nosso capricho, equivalem-se em tudo. Nada é indefensável, desde a proposição mais absurda ao crime mais monstruoso. A história das ideias, como a dos fatos, desenrola-se em um clima insensato: quem poderia, de boa-fé, encontrar um árbitro que conciliasse os litígios desses gorilas anêmicos ou sanguinários? Este mundo é o lugar onde se pode afirmar tudo com igual verossimilhança: axiomas e delírios são intercambiáveis; ímpetos e desfalecimentos se confundem; elevações e baixezas participam de um mesmo movimento. Indiquem-me um só caso em defesa do qual não se pudesse encontrar nada. Os advogados do inferno não têm menos títulos de verdade que os do céu, e eu defenderia a causa do sábio e a do louco com igual fervor.(Breviário de decomposição)
§
A vida tem dogmas mais imutáveis que a teologia, pois cada existência está ancorada em infalibilidades que fazem empalidecer as elocubrações da demência ou da fé. O cético mesmo, apaixonado por suas dúvidas, mostra-se fanático pelo ceticismo. O homem é o ser dogmático por excelência; e seus dogmas são tanto mais profundos quanto não os formula, quando os ignora e os segue. (Breviário de decomposição)
§
Se é crente ou não se é, como se é louco ou normal. Eu não posso crer nem desejar crer: a fé é uma forma de delírio à qual não sou propenso… a posição do incrédulo é tão impenetrável quanto à do crente. Entrego-me ao prazer de estar desenganado: trata-se da essência mesma do século; acima da Dúvida só coloco a satisfação que me proporciona…(Breviário de decomposição)
§
– “Queria semear a Dúvida até nas entranhas do globo, impregnar com ela a matéria, fazê-la reinar onde o espírito jamais penetrou e, antes de alcançar a medula dos seres vivos, sacudir a quietude das pedras, introduzir nelas a insegurança e os defeitos do coração. Arquiteto, teria construído um templo à Ruína; predicador, revelado a farsa do coração; rei, hasteado a bandeira da rebelião. Como os homens nutrem um desejo secreto de repudiar-se, teria estimulado em toda parte a infidelidade a si mesmo, mergulhado a inocência no estupor, multiplicado os traidores de si mesmo, impedido multidões de corromperem-se no podredouro das certezas.” (Breviário de decomposição)
§
Sem nossas dúvidas sobre nós mesmos, nosso ceticismo seria letra morta, inquietude convencional, doutrina filosófica. (Silogismos da amargura)
§
O ceticismo que não contribui para a ruína de nossa saúde é apenas um exercício intelectual. (Silogismos da amargura)
§
Que inquietude quando não estamos seguros de nossas dúvidas e perguntamos: são verdadeiramente dúvidas? (Silogismos da amargura)
§
Suficientemente ingênuo para colocar-me em busca da Verdade, interessei-me no passado — inutilmente — por muitas disciplinas. Começava a firmar-me no ceticismo quando tive a idéia de consultar, como último recurso, a Poesia: quem sabe, disse a mim mesmo, talvez me seja útil, talvez esconda sob sua arbitrariedade alguma revelação definitiva. Recurso ilusório: ela me fez perder até minhas incertezas… (Silogismos da amargura)
§
Nos tormentos do intelecto há uma decência que dificilmente encontraríamos nos do coração. O ceticismo é a elegância da ansiedade. (Silogismos da amargura)
§
Obrigando-nos a sorrir, sucessivamente, para as ideias daqueles a quem mendigamos, a Miséria converte nosso ceticismo em ganha-pão. (Silogismos da amargura)
§
O cético gostaria de sofrer, como o resto dos homens, pelas quimeras que fazem viver. Não consegue: é um mártir do bom senso. (Silogismos da amargura)
§
Aproxima-se o momento em que o cético, depois de haver questionado tudo, já não terá de que duvidar; será, então, quando realmente suspenderá seu julgamento. O que lhe restará? Divertir-se ou adormecer — a frivolidade ou a animalidade. (Silogismos da amargura)
§
Tendo dissipado o meu dogmatismo em imprecações, o que posso fazer senão ser cético? (Silogismos da amargura)
§
Adquiri minhas dúvidas penosamente; minhas decepções, como se me esperassem desde sempre, vieram por elas mesmas, iluminações primordiais. (Silogismos da amargura)
§
Nada mata minha sede de dúvidas: se tivesse o bastão de Moisés para fazê-las brotar até da rocha! (Silogismos da amargura)
§
Com um pouco mais de ardor no niilismo, me seria possível — negando tudo — sacudir minhas dúvidas e triunfar sobre elas. Mas só tenho o gosto da negação, não seu dom. (Silogismos da amargura)
§
O grande pecado do cristianismo é haver corrompido o ceticismo. Um grego jamais teria associado o gemido à dúvida. Recuaria horrorizado ante Pascal e mais ainda ante a inflação da alma que, desde a época da Cruz, desvaloriza o espírito. (Silogismos da amargura)
§
O ceticismo é o excitante das civilizações jovens e o pudor das velhas. (Silogismos da amargura)
§
O ceticismo derrama demasiado tarde suas bênçãos sobre nós, sobre nossos rostos deteriorados pelas convicções, sobre nossos rostos de hienas com um ideal. (Silogismos da amargura)
§
Atenuar nossas angústias, convertê-las em dúvidas, estratagema que nos inspira a covardia, esse ceticismo para uso de todos. (Silogismos da amargura)
§
Não se abusa impunemente da faculdade de duvidar. Quando o cético não extrai dos seus problemas e de suas interrogações nenhuma virtude ativa, se aproxima do seu desenlace. Que digo? Busca-o, corre em direção a ele: que outro dissipe suas incertezas, que outro o ajude a sucumbir! Sem saber que uso fazer de suas inquietudes e de sua liberdade, pensa nostalgicamente no carrasco, inclusive invoca-o. Aqueles que não encontraram resposta para nada suportam melhor os efeitos da tirania do que aqueles que encontraram resposta para tudo. (La tentation d’exister)
§
A princípio instrumento ou método, o ceticismo acabou por se instalar em mim, tornando-se minha fisiologia, o destino do meu corpo, meu princípio visceral, o mal do qual não sei como curar-me e nem como padecer. (La tentation d’exister)
§
O meu propósito era alertá-lo contra a seriedade, contra esse pecado que nada desculpa. Em troca, queria propor-lhe a futilidade. Pois bem, para que nos enganarmos? A futilidade é a coisa mais difícil do mundo, quero dizer, a futilidade consciente e adquirida, voluntária. Na minha presunção, esperava alcançá-la mediante a prática do ceticismo. Este último, contudo, se adapta ao nosso caráter, segue nossos defeitos e nossas paixões – leia-se: nossas loucuras -, se personaliza (há tantos ceticismos quanto temperamentos). A dúvida se engrossa com tudo o que a invalidade ou a combate; é um mal no interior de outro mal, uma obsessão na obsessão. Se rezas, sobe ao nível de tua oração, vigiará o teu delírio, imitando-o; em plena vertigem, duvidarás vertiginosamente. Deste modo, o mesmo ceticismo não conseguirá abolir a seriedade; tampouco, ai!, a poesia. Na medida em que envelheço, advirto com maior claridade que contei com ela em demasiadamente. Amei-a às custas da minha saúde; dava por garantido que eu sucumbiria devido ao meu culto a ela. (La tentation d’exister)
§
Estamos longe da literatura, mas só aparentemente. Tudo isso não passa de palavras, pecados do Verbo. Recomendei-vos a dignidade do ceticismo e eis-me aqui rodeando o Absoluto. Técnica da contradição? Antes, recordai a frase de Flaubert: “Sou um místico e não creio em nada”. Vejo nela o adágio do nosso tempo, de um tempo infinitamente intenso e sem substância. Existe um prazer que é nosso: aquele do conflito enquanto tal. Espíritos convulsivos, fanáticos do improvável, divididos entre o dogma e a aporia, estamos tão dispostos a saltar em direção a Deus por raiva quanto seguros de não vegetar Nele. (La tentation d’exister)
§
Por pouco que se sofra a tentação do ceticismo, a exasperação experimentada a respeito da linguagem utilitária se atenua e se converte a longo prazo em aceitação: nos resignamos a ela e a admitimos. Dado que não há mais substância nas coisas do que nas palavras, nos acomodamos a sua improbabilidade, e, seja por maturidade ou por cansaço, renunciamos a intervir na vida do Verbo: para quê prestar-lhe um suplemento de sentido, violentá-lo ou renová-lo, quando já descobrimos o seu nada? O ceticismo: sorriso que flutua sobre as palavras… Depois de havê-las pesado uma após a outra, uma vez terminada a operação, deixamos de pensar nele. No tocante ao “estilo”, se ainda nos dedicamos a ele, as únicas responsáveis são a ociosidade e a impostura. (La tentation d’exister)
§
O futuro do ceticismo – A ingenuidade, o otimismo, a generosidade – costumam ser encontradas nos botânicos, nos especialistas das ciências puras, ou nos exploradores, jamais nos políticos, nos historiadores ou nos padres. Os primeiros passam sem seus semelhantes, os segundos fazem deles o objeto de suas atividades ou de suas investigações. Só nos azedamos na vizinhança do homem. Aqueles que lhe dedicam seus pensamentos, que o examinam ou querem ajudar-lhe, chegam, mais cedo ou mais tarde, a desprezá-lo, a sentir horror por ele. Psicólogo dos psicólogos, o sacerdote é o exemplar humano mais desenganado, incapaz por ofício de conceder o menor crédito aos seus próximos; daí provém o seu ar avisado, a sua astúcia, a sua doçura fingida e o seu profundo cinismo. Aqueles que, entre eles, em número verdadeiramente ínfimo, deslizaram em direção à santidade, não teriam podido alcançá-la caso tivessem observado mais de perto aos seus paroquianos: eram despiedados, maus sacerdotes, incapazes de viver como curiosos – e parasitas – do pecado original.
Para curar-se de toda ilusão sobre o homem, seria necessária a ciência, a experiência secular do confessionário. A Igreja está tão velha e tão desenganada que não pode crer na salvação de ninguém, nem comprazer-se na intolerância. Depois de imiscuir-se com uma incomensurável multidão de ferventes e suspeitos, deveria acabar por penetrar-lhes e cansar-se deles, detestar seus escrúpulos, seus tormentos, suas confissões. Dois mil anos no segredo das almas! É demasiado inclusive para ela. Milagrosamente preservada até hoje da tentação do asco, agora cede a ele: as consciências que tem ao seu cargo a importunam e esgotam-na. Nenhuma de nossas misérias, nenhuma de nossas infâmias desperta mais o seu interesse: acabamos com a sua piedade e a sua curiosidade. Como já sabe muito sobre todos nós, nos desdenha, nos deixa ir aonde quisermos, buscar em outra parte… Os fanáticos já a abandonam. Logo será o último refúgio do ceticismo. (La tentation d’exister)
§
Quando o nada me invade, e segundo uma fórmula oriental, alcanço a “vacuidade do vazio”, costuma acontecer de eu, aterrado por tal ponto extremo, recair de novo em Deus, ainda que seja apenas pelo desejo de pisotear as minhas dúvidas, de me contradizer e, multiplicando os meus estremecimentos, buscar neles um estimulante. A experiência do vazio é a tentação mística do incrédulo, sua possibilidade de oração, seu momento de plenitude. Em nossos limites surge um deus ou algo que ocupa o seu lugar. (Écartèlement)
§
O cético pode chegar a admitir que a verdade existe, mas deixa para os inocentes a ilusão de crer que algum dia poderão possuí-la. No que me diz respeito, pensa ele, me atenho às aparências, as constato e adiro a elas à medida que, como ser vivo, não posso agir de outra maneira. Ajo como os demais, executo seus mesmos atos, mas não me confundo nem com minhas palavras, nem com meus gestos. Submeto-me aos costumes e às leis, faço como se compartilhasse as convicções, isto é, as manias dos meus concidadãos, sabendo que, em última instância, sou tão pouco real quanto eles.
Que é, então, o cético? Um fantasma… conformista. (Écartèlement)