quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Henry Miller, Trópico de Capricórnio

Eu fui o fruto ruim de um solo ruim. Se o ego não fosse indestrutível, o "Eu" a cujo respeito escrevo teria sido destruído há muito tempo. Para alguns isto talvez pareça invenção, mas tudo quanto imagino que tenha acontecido aconteceu realmente, pelo menos para mim. A história pode negá-lo, pois não desempenhei papel algum na história de minha gente, mas mesmo que tudo quanto eu digo seja errado, parcial, odiento e maldoso, mesmo que eu seja um mentiroso e um envenenador,  ainda assim é a verdade e terá que ser engolida.


Quanto ao que aconteceu...

Tudo quanto acontece, quando é significativo, tem a natureza de uma contradição. Até quando chegou aquela para quem isto é escrito, eu imaginava que em algum lugar fora de mim, na vida, como dizem, estava a solução para todas as coisas. Eu pensava, quando a encontrei, que estivesse agarrando a vida, agarrando algo que pudesse morder. Ao invés disso, desprendi-me completamente da vida. Procurei algo a que apegar-me - e nada encontrei. Mas ao procurar, no esforço para agarrar, para apegar-me, perdido como fiquei, encontrei uma coisa que não buscava - eu próprio. Descobri que aquilo que eu desejara toda minha vida não era viver - se o que os outros fazem se chama viver - mas expressar-me. Percebi que nunca tivera o menor interesse em viver, mas apenas nisto que estou fazendo agora, algo que é paralelo à vida, que faz parte dela e ao mesmo tempo fica além dela. Absolutamente não me interessa o que é verdadeiro, nem mesmo o que é real. Só me interessa o que eu imagino que é, aquilo que eu sufoquei todos os dias a fim de viver. Morrer hoje ou amanhã não me importa, nunca me importou, mas não poder mesmo hoje, depois de anos de esforço, dizer o que penso e sinto - isso me incomoda, me exaspera. Desde a infância eu estive atrás deste espectro, de nada gozando, nada desejando, a não ser esse poder, essa capacidade. Tudo o mais é uma mentira - tudo quanto até hoje eu fiz ou disse sem que tivesse relação com isso. E o que assim eu fiz e disse foi a maior parte de minha vida.
Eu fui uma contradição em essência, como dizem. Consideraram-me sério e nobre, alegre e estouvado, sincero e zeloso ou negligente e descuidado. Eu era todas essas coisas ao mesmo tempo - e além disso era algo mais, algo de que ninguém suspeitava, muito menos eu.

Henry Miller, Trópico de Capricórnio