segunda-feira, 21 de junho de 2010

Ecce homo



Eu não sou, nem de longe, um bicho-papão, um monstro moral – eu inclusive sou uma natureza contrária a esse tipo de gente que até hoje foi venerada como virtuosa. Cá entre nós, parece-me que é exatamente isso que me deixa cheio de orgulho. Eu sou um aprendiz do filósofo Dionísio, e faço gosto antes em ser um sátiro do que um santo.
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A mentira do ideal foi, até agora, a blasfêmia contra a realidade; a própria humanidade foi enganada por ela e tornou-se falsa até o mais baixos de seus instintos – a ponto de adorar os valores inversos como se fossem aqueles com os quais ela poderia garantir a prosperidade, o futuro, o direito altivo ao futuro.
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- quem sabe respirar o ar das minhas obras, sabe que ele é um ar das alturas, um ar vigoroso. A gente tem de ter sido feito para ele, caso contrário não é nem um pouco insignificante o perigo de se resfriar no contato com ele. O gelo está próximo, a solidão é terrível – mas como todas as coisas repousam calmas à luz!como se respira liberdade! Quantas coisas a gente não sente abaixo da gente!…a filosofia, assim como a entendi e vivenciei até agora, é a vida espontânea no gelo e nas montanhas mais altas – a procura de tudo que é estranho e duvidoso na existência, de tudo aquilo que até agora foi excomungado pela moral.
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- quanta é a verdade que um espírito suporta, quanta é a verdade que ele ousa? Essa foi, para mim, e cada vez mais, a tábua para medir valores. Engano (- a crença no ideal) não é cegueira, engano, é covardia… toda a conquista, todo passo adiante no conhecimento é conseqüência da coragem, da dureza em relação a si mesmo, da decência consigo mesmo.
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As palavras mais calmas são aquelas que trazem a tempestade, pensamentos que se aproximam em passos de pomba dirigem o mundo…
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os figos caem das árvores, eles são doces e saborosos; e ao caírem, sua pele rubra se rompe. Eu sou um vento norte para os figos maduros.
Pois bem, assim como figos, caiam sobre vós esses ensinamentos, meus amigos: bebei, pois, o seu sumo, comei sua polpa doce! É outono à nossa volta e céu límpido e meio-dia…Aqui não fala um fanático, aqui não se “prega”, aqui não se exige fé: os ensinamentos caem de uma abundância inesgotável de luz e felicidade profunda, gota a gota, palavra por palavra – uma lentidão suave é a velocidade dessa conversa. Coisas desse tipo só logram ser alcançadas para os melhores dentre os eleitos; é um privilégio sem igual, poder ouvir aqui; não é a todos que é dado ter ouvidos para Zaratustra….(…) o que ele diz quando volta pela vez primeira para a sua solidão? Exatamente o contrário daquilo que um “sábio”, um “santo”, um “salvador do mundo” ou outro décadent qualquer haveria de dizer em semelhante caso… ela não apenas fala diferente, ele também é diferente.
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Nesse dia perfeito, em que tudo amadurece não apenas a uva se torna escura, caiu sobre a minha vida um olhar do sol: eu olhei para trás, eu olhei para frente e jamais vi tantas e tão boas coisas de uma só vez. Não é por acaso que hoje enterrei meu quadragésimo quarto ano, eu pude enterrá-lo – o que havia de vida nele está salvo, é imortal. O primeiro livro da transvaloração de todos os valores, as canções de Zaratustra, o crepúsculo dos ídolos, minha tentativa de filosofar com o martelo… foram, todos eles, presentes deste ano, inclusive do último trimestre deste ano! Como eu não haveria de ser agradecido a minha vida inteira?… – e assim eu me conto a minha vida
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O fato de hoje não me ouvirem, o fato de não saberem o que fazer de mim não é apenas compreensível, ele inclusive me parece ser a coisa mais correta. Eu não quero ser confundido – e disso faz parte o fato de eu não confundir a mim mesmo...
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Para aquilo que a gente não alcança através da vivência, a gente também não tem ouvidos.
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Para chegar tão longe a gente tem que ser filósofo...
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Eu sou em grego, e não apenas em grego, o anticristo...
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A vós, os que buscam com ousadia, a vós, os
Que tentam, a todos que um dia se lançaram ao mar
Terrível com suas velas cheias de manha,

A vós, os bêbados-de-enigmas, os alegres-do-
lusco-fusco, cuja alma é atraída por flautas a todo
abismo enganador:

- a vós, que não quereis tatear em busca de um
Fio com mão covarde; onde vós podeis adivinhar,
Ali odiais calcular...

(Zaratustra, parte III, “da visão e do enigma”)
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Um dia o mundo haverá de se referir aos sacerdotes cristãos como uma “espécie traiçoeira de anões”, de “seres subterrâneos”...
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Meu paraíso é “sob a sombra da minha espada”
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Aquilo que hoje eu sou, onde hoje eu estou – em uma altura na qual eu não falo mais através de palavras, mas sim através de raios -.
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“humano, demasiado humano” é o monumento de uma crise. Ele se chama um livro para espíritos livres: praticamente cada uma de suas sentenças exprime uma vitória – como mesmo, eu me livrei daquilo que não-faz-parte-de-mim em minha natureza. Não faz parte de mim o idealismo: o título diz “onde vós vedes coisas ideais eu vejo – coisas humanas, ah, coisas demasiado humanas!”...
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“tu, que com o fogo da tua lança
Divides o gelo de minha alma,
Fazendo-a buscar o mar, sem calma,
Em busca de sua maior esperança:
Sempre mais clara, e mais saudável,
Liberta no dever mais amável
Ela preza o teu milagre,
Mais belo amor entre os janeiros!


Friedrich Nietzsche in Ecce Homo