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Lembrei de como o gramado era verdinho nos anos 1970, quando baba me trazia aqui para ver jogos de futebol. Agora o campo era um caos. Havia buraco e crateras por todo canto, com destaque para um ou dois bem profundos logo atrás das traves do gol.
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Assim que o apito anunciou o fim do primeiro tempo, a encenação começou.Duas picapes vermelhas e empoeiradas, como aquelas que tinha visto circulando pela cidade desde que cheguei, entraram pelos portões do estádio. A multidão se levantou. Na cabine de uma das picapes, havia uma mulher usando uma burga verde, e, na outra, um homem de olhos vendados.
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Terminada a oração, o clérigo pigarreou.
- Irmãos e irmãs! - bradou ele em farsi, e a sua voz ressoou por todo o estádio. - Estamos aqui hoje para executar um ato de shari'a; Estamos aqui hoje para fazer justiça. Estamos aqui hoje porque a vontade de Allah e a palavra do profeta Muhammad (que a paz esteja com ele) estão vivas e vigorosas no Afeganistão, nossa pátria amada.
Ouvimos o que Deus diz e obedecemos a Ele porque não passamos de criaturas humildes e impotentes diante de Sua grandeza. E o que é que Ele diz? Estou lhes perguntando: O QUE É QUE DEUS DIZ? Diz que todo pecador deve receber punição condizente com o pecado que cometeu. Essas palavras não são minhas, nem tampouco de meus irmãos. São as palavras de Deus! - bradou ele, apontando para o céu com a mão livre.
Minha cabeça latejava e o sol parecia ter ficado muito mais quente.
- Todo pecador deve receber punição condizente com o pecado que cometeu - repetia o clérigo ao microfone, erguendo a voz e pronunciando cada palavra bem devagar, de um jeito dramático. - E que punição, irmãos e irmãs, é condizente com o adultério? Como devemos punir aqueles que desonraram a santidade do casamento? Como devemos tratar aqueles que cuspiram na face de Deus? Que resposta devemos dar àqueles que atiraram pedras nas janelas da casa de Deus? DEVEMOS DEVOLVER AS PEDRAS QUE FORAM ATIRADAS POR ELES! - Desligou o microfone. Um murmúrio surdo se espalhou pela multidão.
Ao meu lado, Farid abanava a cabeça.
- E eles se dizem muçulmanos... - sussurrou.
Nesse momento, um homem alto, de ombros largos, desceu da picape. O seu surgimento provocou gritos e aplausos de uns poucos espectadores. Desta vez, porém, ninguém recebeu chicotadas por gritar alto demais. Os trajes brancos do sujeito grandalhão reluziam ao sol da tarde. A bainha da sua túnica se agitava com o vento e ele abriu os braços como Jesus na cruz. Saudou a multidão virando-se lentamente, fazendo um giro completo. Quando ficou de frente para o nosso setor, vi que estava usando óculos escuros redondos, como aqueles que John Lennon usava.
- Esse deve ser o nosso homem - disse Farid.
O talib alto, de óculos escuros, foi se dirigindo para uma pilha de pedras que tinham sido descarregadas da terceira picape. Pegou uma delas e exibiu-a para a multidão. O barulho praticamente cessou, sendo substituído por uma espécie de zumbido que foi se espalhando pelo estádio. Olhei à minha volta e vi que todos estavam estalando a lingua em sinal de desaprovação. Assumindo uma postura absurdamente parecida com a de um arremessador de beisebol no seu montículo, o talib atirou a pedra no homem de olhos vendados que estava em um dos buracos. Acertou em um dos lados da cabeça. A mulher recomeçou a gritar. A multidão fez um "oh!" assustado. Fechei os olhos e tapei o rosto com as mãos. Os "oh!" do público acompanhavam cada pedra arremessada, e aquilo durou ainda algum tempo. quando os gritos cessaram, perguntei a Farid se tinha terminado. Ele disse que não. Supus que as gargantas tivessem se cansado. Não sei por quanto tempo ainda fiquei ali, com o rosto coberto com as mãos. Só sei que, quando voltei a abrir os olhos, ouvi gente ao meu redor perguntando "Mord? Mord? Ele morreu?".
O homem dentro do buraco não passava, agora, de uma massa disforme, ensanguentada e em frangalhos. Tinha a cabeça pendida para frente, com o queixo encostando no peito. O talib de óculos como os de John Lennon estava olhando para um outro homem agachando junto ao buraco, jogando uma pedra para cima e voltando a apanhá-la com a mão. O sujeito agachado tinha uma das extremidades de um estetoscópio nos ouvidos e a outra encostada no peito do homem que estava no buraco. Tirou o estetoscópio dos ouvidos e abanou a cabeça para o talib de óculos escuros. A multidão soltou um gemido.
John Lennon voltou para o seu montículo.
Quando estava tudo terminado, depois que os cadáveres ensanguentados já tinham sido atirados na traseira das picapes vermelhas sem a menor cerimônia - um em cada veículo -, uns poucos homens armados de pás apressaram-se em tapar os buracos. Um deles tentou até encobrir as grandes manchas de sangue tirando terra sobre elas.
Alguns minutos mais tarde, os times voltaram a campo. E o segundo tempo do jogo já estava em andamento.
Khaled Hosseini, O caçador de pipas