terça-feira, 22 de junho de 2010

Cartas de um Sedutor




Digo: um colar de anêmonas te circunda a cara e aos meus olhos ganhas definitivamente uma moldura. Olha-me lânguido... É, isso é bonito. E Valença e Resende que chegaram há pouco repetem juntos, pausados: um colar de anêmonas te circunda a cara e aos meus olhos ganhas definitivamente uma moldura... Neste momento penso que há outras bizarrias estupendas a serem ditas, pensadas, escritas: pedras negras e espinhos dentro de um buquê de borboletas, algumas asas perfuradas, luzentes, malvas, ou um pombal de gritos...
Como seria?
Frisos, tiras, bandas álacres, gritos pombásticos.
E não devo parar. Há uma orgia de fosfenas no direito e no esquerdo, alguém grita: escuta! tudo vem do espírito! E luzes rosadas, luzes violetas se chocam nos bastões de prata, cornetas de ouro sobre asarcas, algumas se abrem e lá dentro arabescos, letras, sons vindos do tanto que se esbatem, e um rio de bizarrias encontra um mar de langorosas serpentes, leio algumas palavras entre escamas e águas... mas silêncio! devo guardá-las, porque devem ser ditas apenas quando chegar a minha hora. Repito em voz alta: a minha hora.

*
E digo para mim mesmo: exígua, exígua a vida.
Karl me dizendo: jamais te colocaria nos meus textos. Tu és exíguo,(...), tu és uma semi-ótica, olha, e colocava a mão direita sobre o olho direito e fingia ler um texto, te olhamos (me olhava), e é como se só víssemos o teu lado esquerdo. E pensar que esse frescalhão do Karl anda lançando livros, encontrou editores! Aquele pervertido! Aquele dândi. De vez em quando soltava uma frase do Lawrence: "O pênis é igual a uma haste em direção às estrelas"... Sufocava de riso. Olho para o meu... Haste, estrela... sorrio sim. Por pouco tempo. Estou triste, senhores. Vou despencar daqui a pouco. Arcado, talvez deva vomitar. Vomitar esperanças, dores, o prato de amoras, aquele carré d'agneau no jantar de Karl, vomitar todas as fantasias a respeito da senhora Grand seja ela quem for, as homéricas metidas entre tafetás e sedas, as coxas marcadas pelas minhas mordidas, o batom espalhado pela boca... beijei-a tantas vezes que os lábios cresceram machucados, os de cima e os de baixo, lambia-a pelo pescoço, a língua nas orelhas, nas narinas... senhora das minhas utopias... e eu sozinho na cama, a mão em concha, suado, metendo no nada.

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Deita-se, amasso os papeis, jogo tudo fora, me atiro em cima de Eulália, a xota engole o meu pau, agora ela sentada sobre a minha cintura, toda esticada Eulália, é fina quando fode, já lhes disse, tem ares de princesa, e vagarosa sobe e desce, vem vindo um temporal, nuvenzinhas de areia cobrem a esteira, a casa-choça chacoalha, e ela grita um grito fino e duro, um relho, um osso. Eulália me beija os olhos. Como se eu estivesse morto. Ainda não, o outro me diz. E nem vai ser assim esfolando a pica.Como é que vai ser? Alguém me segurando as mãos. Alguém dizendo calma, tudo vai passar, é só um desconforto. E luzes, paisagens à minha frente: eu menino, o cachorro ao lado, o Pitt (alguém lá de casa gostavade um inglês com esse nome), o mar e os caranguejos na areia. Depois o internato. Eu subindo as escadas, o olho cheio d'água diante da porta de vidro. Minha mãe e as écharpes de seda. Os adeuses. O padre Valentino: vamos, vamos dê um sorriso pra tua mãe. Adeus, senhora. Eu diante do quadro-negro: e daí, senhor Stamatius, o teorema acabou aí? Pois é, acabou. Acabou uma ova. E o bobalhão do Karl sempre às gargalhadas. Senhor Karl, venha mostrar ao senhor Stamatius como se demonstra um teorema. Ele e o padre Kosta. Sempre os segredinhos.

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Fui traído, pensei. Mas continuo. A quem estenderei as mãos quando a dona chegar? Haverá luz no quarto? Perfulgência ou sombra? Terei ainda um instante para me tornar perfectível, talvez um santo? E se cortar o besugo ou espancá-lo para que nunca mais fique duro? Ou se tapar as narinas com fiozinhos de esteira para que nunca mais sintam o cheiro de prechecas ou camélias ou o meu próprio cheiro que tresuda de vida e por isso de medo? E por que continuo a sujar os papéis tentando projetar meu hálito, meus sons, no corpo das palavras? Que palavras devo dizer à Dona quando chegar? E se não for uma mulher e for um menino? Esguiozinho, dolente, maneiroso... a morte: uma bichinha triste, delgada. Então não posso cortar o besugo, antes amestrá-lo para que fique douto de uns dengues ajustados a um cuzinho ralo. E se for fundo o furo? Há porvarinos longos como túneis... Comer o figo da morte... Mas isso há de me fazer viver? Estou lá deitado, arfante, estendendo as mãos e ainda devo me levantar para uma berimbada no menino magro, lá no canto?

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O homem reclamava: já disse que não gosto de ver você usando essas blusas fininhas.
Por quê?
Porque aparecem os teus bicos.
E daí? bico é bonito, amor. Bonito sim os bicos da mulher, rosadinhos, miúdos, ela inteira miúda e clara, uma madoninha holandesa... já viram uma madoninh holandesa? Certamente, todos aqueles Van de alguma coisa pintaram madoninhas holandesas. Sem os tamancos.
Eu sei que bico é bonito, mas não gosto que todo mundo veja os teus. A mulher era brejeira, grácil. Grácil também é bonito. Ele olhava apara ela e refletia: por que será que mulheres pequeninas dão tanta sorte com homens? Alguns amigos seus também haviam se apaixonado por mulheres pequeninas. Parecem-se aos bichinhos da infância (quando se teve uma infância), aqueles fofinhos, ursos cachorrinhos coelhos, aqueles que a gente-criança dormia com eles, apertava entre os braços, entre as coxas... mulherzinhas-criança, mulherzinhas-bicho.
Ela: ninguém liga pra bico, benzinho, depois são tão fresquinhas essas blusas fininhas...
Mania de se exibir que as mulheres têm: no último carnaval ficou abestado. O tempo inteiro bundas, xerecas, convulsões, sacolejos. Há de chegar uma hora que bundas e xerecas devem manifestar uma outra qualidade além das evidentes, porque só isso de se exibirem ficou chato. Haveria por exemplo bundas falantes, xerecas que se metamorfoseassem  em flores, oitis que assoviassem Mozart, quem sabe. Encontrou a mulher miúda naquele carnaval. Os bicos de fora. Tudo bem, era carnaval. Mas inadmissível, a cada dia agora, a mulher e seus bicos pelas ruas. Insistiu: cubra os bicos. Ela foi ficando amuada, ranzinza, não conversava mais.Uma noite ele repensou sua própria história, a dele, a solidão, e dolorido, meloso, aquiesceu:
Tudo bem, ponha a blusa que quiser, vamos dar uma volta.
Cintilante, fininha, a blusa mostrava não somente os bicos, mas as duas tetas, firmes redondozas trêmulas. Ela pediu cerveja. Ele pediu sorvete. Os homens do bar olhavam a mulher miúda como se ele não estivesse ali. Ela ria: tô bonita, né bem?

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Gosto de corpos duros, esguios, de nádegas iguais àqueles gomos ainda verdes, grudados tenazmente à sua envoltura. Gosto de pés compridos, alongados, odeio esses pés de mulheres mais para fofos ou estufados-gordinhos e até quadrados e redondos eu vi. Gosto de cu de homem, cus viris, uns pelos negros ou aloirados à volta, um contrair-se, um fechar-se cheio de opinião.

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Imaginas mesmo, Cordélia, que um deus ia se ocupar de alguém que estivesse comendo uma maçã lá na Mesopotâmia? Sentes culpa de quê? A que pecados te referes?

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Isso das hierarquias sempre existiu. Diferenças... bolas, nunca ninguém resolveu. Napoleão tentou. Acabou com o feudalismo. Deu terrinhas para muitos. Mas que catástrofe anos depois! e pensar que a monarquia voltou depois da Revolução Francesa!Toda aquela sanguera pra nada. Pois é. E não há até anjos arcanjos
querubins potestades? E lá no alto sentado na poltrona de ouro não há Aquele? Hierarquias até nos micro-organismos. Leia o Koestler inteiro e vais entender tudo. O Arthur. Aquele Das Razões da Coincidência.

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Elisabeth dizia: demore-se mais um pouco, senhor, não a faça gozar, a luz vem vindo rosada lá de fora e esta luz sobre este olhar é tudo o que eu preciso, pare um instante apenas.

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Tenho pena de bois de vacas de cachorros. De animais. De criaturas também. Nós todos. Sou inteiro piedade. Tenho pena do meu pau também.

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Aí eles querem explicações, dados concisos, mais pro porco ou mais pro sutil? Mais pro imundo ou mais pro sensual? Pro grotesco? Eh, eh, eh, negão, não há muita novidade. Esporrar na orelha?
Fiz isso um dia e a mulher ficou mal, teve de fazer uma limpeza no otorrino. Nossa! E o otorrino dizia: minha senhora, há basicamente três buracos feitos pra isso que a senhora deixou fazer no seu ouvido e não é preciso citar os três, mas ouvidos e narinas são impróprios para receber o sêmen, compreende? Vai ficar com otite e sinusite e quer saber mais? A senhora é uma porca. Bateu-lhe a porta na cara.

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Ele diz: não seja bobo, gosta de Blake? Muito, mas por favor desapareça. Ouça antes estes versos: Escolha cada um sua morada/ Sua mansão antiga e infinita. Uma só ordem, um só prazer, um só anseio,/ Um flagelo, um peso, uma medida,/ Um Rei, um Deus, uma só Lei. Bonito sim, penso, mansões e reis, ordem prazer, é outro que está se enganando de endereço.

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Era telúrico e único. Sonhava. Sonhava adeuses e sombras. Sonhava deuses. Era cruel porque desde sempre foi desesperado. Encontrou um homem-anjo. Para que vivessem juntos, na Terra, para sempre, ele cortou-lhe as asas. O outro matou-se, mergulhando nas águas. Estou vivo até hoje. Estou velho. Às noites bebo muito e olho as estrelas. Muitas vezes, escrevo. Aí repenso aquele, o hálito de neve, a desesperança. Deito-me. Austero, sonho que semeio favas negras e asas sobre uma terra escura, às vezes madrepérola


Hilda Hilst, Cartas de um sedutor