domingo, 14 de janeiro de 2024

Um sopro de vida


 Eu escrevo um livro e Ângela outro: tirei de ambos o supérfluo. 

Eu escrevo à meia-noite porque sou escuro. Ângela escreve de dia porque é quase sempre luz alegre.

Este é um livro de não memórias. Passa-se agora mesmo, não importa quando foi ou é ou será esse agora mesmo. É um livro como quando se dorme profundo e se sonha intensamente — mas tem um instante em que se acorda, se desvanece o sono, e do sonho fica apenas um gosto de sonho na boca e no corpo, fica apenas a certeza de que se dormiu e se sonhou Faço o possível para escrever por acaso. Eu quero que a frase aconteça.

Não sei expressar-me por palavras. O que sinto não é traduzível.

Eu me expresso melhor pelo silêncio. Expressar-me por meio de palavras é um desafio. Mas não correspondo à altura do desafio.

Saem pobres palavras. E qual é mesmo a palavra secreta? Não sei e por que a ouso? Só não sei porque não ouso dizê-la?

Bem sei que estou no escuro e eu me alimento com a própria e vital escuridão. Minha escuridão é uma larva que tem dentro de si talvez a borboleta? Está tão escuro que estou cego.

Eu simplesmente não posso mais escrever. Vou deixar por uns dias Ângela falar. Quanto a mim acho...

ÂNGELA.- Eu, gazela espavorida e borboleta amarela. Eu não passo de uma vírgula na vida. Eu que sou dois pontos. Tu, és a minha exclamação. Eu te respiro-me. Eu sou oblíqua como o voo dos pássaros. Intimidada, sem forças, sem esperança, sem avisos, sem notícias — tremo — toda trêmula. Me espio de viés.

Que esforço eu faço para ser eu mesma. Luto contra uma maré em nau onde só cabem meus dois pés em frágil equilíbrio ameaçado.

Viver é um ato que não premeditei. Brotei das trevas. Eu só sou válida para mim mesma. Tenho que viver aos poucos, não dá para viver tudo de uma vez. Nos braços de alguém eu morro toda. Eu me transfiguro em energia que tem dentro dela o atômico nuclear. Sou o resultado de ter ouvido uma voz quente no passado e de ter descido do trem quase antes dele parar — a pressa é inimiga da perfeição e foi assim que corri para a cidade perdendo logo a estação e a nova partida do trem e seu momento privilegiado que desperta espanto tão dolorido que é o apito do trem, que é adeus.

***

Estou esperando chuva. Quando chover que o que caia sobre mim, abundantemente. Abrirei a janela de meu quarto e receberei nua a água do céu. Jardins e jardins entremeados de acordes musicais. Iridescência ensanguentada. Vejo meu rosto através da chuva. Rebuliço estrídulo do vento agudo que varre a casa como se esta estivesse oca de móveis e de pessoas. Está chovendo. Sinto a boa chuvarada de verão. 

***

Tenho medo de minha liberdade. Minha liberdade é vermelha! Quero que me prendam. Oh chega de decepções, estou tão machucada, me doem a nuca, a boca, os tornozelos, fui chicoteada nos rins — para que quero meu corpo? para que serve ele? só para apanhar? Bofetada em pleno rosto que é túmido e fresco. Refugio-me nas rosas, nas palavras. Pobre consolação. Estou inflacionada. Não valho nada. Fui interrompida pelo silêncio da noite. O silêncio espaçoso me interrompe, me deixa o corpo num feixe de atenção intensa e muda. Fico à espreita de nada. O silêncio não é o vazio, é a plenitude.



Clarice Lispector, Um sopro de vida (pulsações)