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O religioso não é uma questão de conteúdo, mas de intensidade. Deus se concretiza em nossos momentos febris, de modo que o mundo em que vivemos se converte num excepcional objetivo da sensibilidade religiosa pelo fato de que só podemos refletir nos momentos neutros. Sem “febres”, não superamos o campo da percepção, ou seja, não vemos nada. Os olhos servem a Deus apenas quando não distinguem os objetos; o absoluto teme a individuação.
A intensificação de qualquer sensação é sinal de religiosidade. O grau máximo de repulsa nos revela o Mal (a via negativa em direção a Deus). O vício está mais próximo do absoluto do que um instinto autêntico, porque a participação no divino é possível na medida em que já não somos natureza.
Um homem lúcido controla suas “febres” a cada passo, como um espectador de seu próprio sofrimento, eternamente sobre suas pegadas, entregando-se de forma equívoca às fantasias de sua tristeza. Na lucidez, o conhecimento é uma homenagem à fisiologia.
Quanto mais sabemos sobre nós mesmos, mais cumprimos as exigências de uma higiene que consiste na realização da transparência orgânica. A claridade é tanta que vemos através de nós mesmos. Convertemo-nos assim em espectadores de nós mesmos.(Amurgul gândurilor)
Deus: queda perpendicular sobre nosso pavor, salvação caindo como um raio em meio a nossas buscas que nenhuma esperança engana, anulação sem paliativos de nosso orgulho inconsolado e voluntariamente inconsolável, avanço do indivíduo por um desvio, paralisação da alma por falta de inquietudes… (“Desaparecer em Deus”, in: Breviário de Decomposição)
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Quando se chega ao limite do monólogo, aos confins da solidão, inventa-se – na falta de outro interlocutor – Deus, pretexto supremo de diálogo. Enquanto o nomeias, tua demência está bem disfarçada e… tudo te é permitido. O verdadeiro crente mal se distingue do louco; mas sua loucura é legal, admitida; acabaria em um asilo se suas aberrações estivessem livres de toda fé. Mas Deus as cobre, as torna legítimas. O orgulho de um conquistador empalidece comparado à ostentação do devoto que dirige-se ao Criador. Como se pode ser tão atrevido? E como poderia ser a modéstia uma virtude dos templos, quando uma velha decrépita, que imagina o Infinito ao seu alcance, eleva-se pela oração a um nível de audácia ao qual nenhum tirano jamais aspirou? […]
(Senhor, dá-me a faculdade de jamais rezar, poupa-me a insanidade de toda adoração, afasta de mim essa tentação de amor que me entregaria para sempre a Ti. Que o vazio se estenda entre o meu coração e o céu! Não desejo ver meus desertos povoados com Tua presença, minhas noites tiranizadas por Tua luz, minhas Sibérias fundidas por Teu sol. Mais solitário do que Tu, quero minhas mãos puras, ao contrário das Tuas que sujaram-se para sempre ao modelar a terra e ao misturar-se nos assuntos do mundo. Só peço à Tua estúpida onipotência respeito para a minha solidão e meus tormentos. Não tenho nada a fazer com Tuas palavras. Conceda-me o milagre recolhido antes do primeiro instante, a paz que Tu não pudeste tolerar e que Te incitou a abrir uma brecha no nada para inaugurar esta feira dos tempos, e para condenar-me assim ao universo, à humilhação e à vergonha de existir.) (“A arrogância da oração”, in: Breviário de Decomposição)
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Solidão do ódio… Sensação de um deus voltado para a destruição, pisoteando as esferas, babando sobre o céu e sobre as constelações… de um deus frenético, sujo e malsão; um demiurgo ejaculando, através do espaço, paraísos e latrinas: cosmogonia de delirium tremens; apoteose convulsiva em que o fel coroa os elementos… As criaturas se lançam na direção de um arquétipo de fealdade e suspiram por um ideal de conformidade… Universo da careta, júbilo da toupeira, da hiena e do piolho… Nenhum horizonte mais, salvo para os monstros e para os vermes. Tudo se encaminha para o repulsivo e para o gangrenoso; este globo que supura enquanto que os viventes mostram suas feridas sob os raios do cancro luminoso. (“A negativa de procriar”, in: Breviário de Decomposição)
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A exortação criminosa do Gênese: Crescei-vos e multiplicai-vos, não pode ter saido da boca do deus bom. Sedes escassos, deveria ter sugerido, se tivesse tido voz no capítulo. Tampouco poderia ter acrescentado as palavras funestas: E enchei a terra. Deveria-se, antes de tudo, apagá-las para lavar a Bíblia da vergonha de tê-las acolhido. (Le Mauvais Demiurge)
Emil Cioran