domingo, 21 de janeiro de 2024


Suponho que muita gente ache que a Filosofia é uma coisa muito abstrata e só para os 'entendidos'. Tenho tão viva em mim a ideia de que a Filosofia não tem nada a ver com 'entendidos', de que não é uma especialidade, ou o é, mas só na medida em que a pintura ou a música também o são, que procuro ver esta questão de outra forma. Quando acham que a Filosofia é abstrata, a história da Filosofia passa a ser abstrata em dobro, já que ela nem consiste mais em falar de ideias abstratas, mas em formar ideias abstratas a partir de idéias abstratas. Para mim, a história da Filosofia é uma coisa muito diferente. E, para isso, volto a falar da pintura. Nas cartas de Van Gogh, encontram-se discussões sobre retrato ou paisagem. 'Quero fazer retratos. Será preciso voltar ao retrato?' Eles davam muita importância em suas conversas e cartas. Retrato e paisagem não são a mesma coisa, não são o mesmo problema. Para mim, a história da Filosofia é, como na Pintura, uma espécie de arte do retrato. Faz-se o retrato de um filósofo. Mas é o retrato filosófico de um filósofo, uma espécie de retrato mediúnico, ou seja, um retrato mental, espiritual. É um retrato espiritual. Tanto que é uma atividade que faz totalmente parte da própria Filosofia, assim como o retrato faz parte da Pintura. O simples fato de eu invocar pintores que me levam a… Se eu ainda volto a pintores como Van Gogh ou Gauguin, é porque há uma coisa que me toca profundamente neles: é esta espécie de enorme respeito, de medo e pânico… Não só respeito, mas medo e pânico diante da cor, diante de ter de abordar a cor. É particularmente agradável que estes pintores que citei, para citar apenas estes, sejam dois dos maiores coloristas que já existiram. Ao revermos a história de suas obras, para eles, a abordagem da cor se fazia com tremores. Eles tinham medo! A cada começo de uma obra deles, usavam cores mortas. Cores… Sim, cores de terra, sem nenhum brilho. Por quê? Porque tinham o gosto e não ousavam abordar a cor. O que há de mais comovente do que isso? Na verdade, eles não se consideravam ainda dignos, não se consideravam capazes de abordar a cor, ou seja, de fazer pintura de fato. Foram necessários anos e anos para que eles ousassem abordar a cor. Mas quando sentem que são capazes de abordar a cor, obtêm o resultado que todos conhecem. Quando vemos a que eles chegaram, temos de pensar neste imenso respeito, nesta imensa lentidão para abordar isto. A cor para um pintor é algo que pode levar à insensatez, à loucura. 

Gilles Deleuze, Abecedário