quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Janelas do meu desejo

Igor Shulman

No quarto todo branco, no velho bairro de Barcelona, os nossos corpos eram atirados sobre uma cama deitada no chão de madeira, uma jangada à deriva no mar. O prazer queima a pele, qualquer coisa de inextinguível. Nunca provarei os beijos que te dou, nem o arrepio que te percorre quando passo os leves dedos sobre as tuas costas que não terminam nunca, a ninguém saberei mentir como te minto quando te digo que sou teu para te dizer que te quero minha.

Apanhei o avião das oito e meia para o meu desejo me levar como bagagem de mão. Até Barcelona, basta. Ao mostrar um passaporte perguntam-me pelo propósito da visita. Não vou confessar que procuro a mulher que me virou a vida do avesso e pretendo assassinar no caso de ser viável matar o que vive em nós sem nós próprios falecermos. Espera-me, no meio de um hangar de gigantes, um ponto — uma pequena mancha que vai crescendo, ganhando forma e figura, movimento, cor, sapatos e mãos — uma mancha a que me abraço todo fechando os olhos com força para não ver mais do que já vi e é sempre demais. Pode ser assustador voltar a ver quem mais se deseja por ser ligeiramente outra a pessoa que te aguarda, e precisas de longos e ansiosos segundos para ligares uma série de imagens fixas presas no passado a uma coisa viva de múltiplas dimensões que está à tua frente para então poderes ficar temporariamente sossegado de que ainda deve ser a pessoa que jurou que te amava, que por ti morreria — uma prova que julgas excessiva, muito menos definitiva.


Pedro Paixão