Sempre me achei mais inteligente do que todo mundo, como já lhe disse, mas também mais sensível e mais hábil, atirador de elite, incomparável ao volante e ótimo amante. Mesmo nos setores em que era fácil verificar minha inferioridade, como o tênis, por exemplo, em que eu era apenas um parceiro razoável, era-me difícil não acreditar que, se tivesse tempo para treinar, superaria os melhores. Só reconhecia em mim superioridades, o que explicava minha benevolência e minha serenidade.
Quando me ocupava dos outros, era por pura condescendência, em plena liberdade, e todo o mérito revertia em meu favor: eu subia um degrau no amor que dedicava a mim mesmo. Com algumas outras verdades, descobri, pouco a pouco, essas evidências, durante o período que se seguiu à noite de que lhe falei. Não imediatamente, não, nem com muita nitidez.
Foi preciso, primeiro, recuperar a memória. Gradativamente, fui vendo com mais clareza, aprendi um pouco do que sabia. Até então, havia sido sempre ajudado por um espantoso poder de esquecimento. Esquecia tudo, e, em primeiro lugar, minhas resoluções. No fundo, nada contava.
Guerra, suicídio, amor, miséria, prestava atenção nisso, é claro, quando as circunstâncias me obrigavam, porém de maneira cortês e superficial. Às vezes, fingia apaixonar-me por uma causa estranha à minha vida mais quotidiana. No fundo, porém, eu não participava dela, exceto, é claro, quando minha liberdade era contrariada. Como dizer-lhe? Tudo isso resvalava. Sim, tudo resvalava em mim.
Sejamos justos: acontecia serem meritórios meus esquecimentos.
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O que eu tenho para contar-lhe é um pouco mais difícil. Trata-se, desta vez, de uma mulher. É preciso que se saiba, antes de tudo, que sempre tive êxito com as mulheres, e sem grande esforço. Não me refiro ao êxito em fazê-las felizes, tampouco em fazer-me feliz por intermédio delas. Não; ter êxito, simplesmente. Eu era bem-sucedido, mais ou menos quando queria.
Achavam que eu tinha certo charme, imagine! Sabe o que é isto: um modo de ouvir sim como resposta, sem ter feito uma pergunta clara. Assim era comigo, na época. Surpreende-se? Vamos, não negue. Com a cara que Deus me deu, é muito natural. Ai de mim! Depois de certa idade, todo homem é responsável pelo seu rosto. O meu... Mas que importa! O fato é que viam em mim certo encanto, e eu me aproveitava disso.
Não o fazia, contudo, de forma calculista; agia de boa-fé, ou quase. Meu relacionamento com as mulheres era natural, descontraído, fácil, como se diz. Não havia astúcia alguma, ou então, apenas aquela maneira ostensiva, que elas consideram uma homenagem. Amava-as, segundo a expressão consagrada, e que é o mesmo que dizer que nunca amei nenhuma. Sempre achei a misoginia vulgar e tola, e quase todas as mulheres que conheci, julguei-as sempre melhores do que eu. No entanto, ao colocá-las tão alto, utilizei-me delas mais vezes do que as servi. Como entender isso?
Bem entendido, o verdadeiro amor é excepcional, dois ou três em cada século, mais ou menos. No restante do tempo, há a vaidade ou o tédio. Quanto a mim, em todo caso, eu não era a Religiosa portuguesa. Não tenho o coração seco, longe disso, mas, pelo contrário, cheio de ternura, e mais: tenho a lágrima sempre fácil. Só que meus impulsos sentimentais se voltam sempre para mim e meus enternecimentos dizem respeito a mim. Não é verdade, afinal, que eu nunca tenha amado. Tive em minha vida pelo menos um grande amor, de que fui sempre eu o objeto. Sob esse aspecto, depois dos inevitáveis problemas da juventude, depressa me havia decidido: a sensualidade, e só ela, imperava em minha vida amorosa. Buscava sempre objetos de prazer e de conquista. Era, aliás, ajudado por meu físico: a natureza foi generosa comigo. E não me orgulhava pouco disso, extraindo daí muitas satisfações que já não saberia dizer se eram de prazer ou de prestígio. Bom, o senhor vai dizer que ainda estou me vangloriando. Não nego nem me orgulho menos pelo fato de nisso estar me vangloriando do que é verdade. Em cada caso, minha sensualidade, para só falar dela, era tão real que, mesmo por uma ventura de dez minutos, eu renegaria pai e mãe, mesmo se tivesse de lamentar isso amargamente. Que digo eu! Sobretudo por uma aventura de dez minutos, e mais ainda, se eu tivesse a certeza de que ela não teria futuro.
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Nessas relações, aliás, eu satisfazia ainda outra coisa, além de minha sensualidade: meu amor pelo jogo. Eu amava nas mulheres as parceiras de um certo jogo, que tinha, pelo menos, o sabor da inocência. Veja bem, não consigo suportar o tédio e só aprecio na vida as diversões.
Toda companhia, mesmo brilhante, me oprime rapidamente, ao passo que nunca me entediei com as mulheres que me agradavam. Custa-me confessá-lo, mas trocaria dez entrevistas com Einstein por um primeiro encontro com uma bela figurante. É verdade que, no décimo encontro, eu suspirava por Einstein ou por profundas leituras. Em suma, nunca me preocupei com os grandes problemas, a não ser nos intervalos de meus pequenos desregramentos. E muitas vezes, numa conversa de esquina, em meio a uma discussão acalorada com amigos, perdi o fio do raciocínio que me expunham, porque uma mulher deslumbrante atravessava a rua naquele momento.
Por conseguinte, eu entrava no jogo. Sabia que elas gostavam que não se chegasse muito depressa ao fim. Antes de tudo, era preciso conversar, mostrar ternura, como elas dizem. Quanto a discursos, não me faltavam, sendo advogado, nem olhares, pois no serviço militar fora artista amador. Mudava muitas vezes de papel, mas tratava-se sempre da mesma peça.
Por exemplo, o número da atração incompreensível do "não sei o quê", do "não há razões", "eu não desejava ser atraído, estava, no entanto, cansado do amor etc." — era sempre eficaz, se bem que seja dos mais velhos o repertório. Havia também o da felicidade misteriosa, que nenhuma outra mulher jamais nos deu, que talvez não tenha futuro, com toda a certeza (pois todo cuidado é pouco), mas que, precisamente, é insubstituível. Sobretudo, eu havia aperfeiçoado uma pequena tirada, sempre bem recebida, e que o senhor aplaudirá, estou certo disso. O essencial desta tirada prendia-se à afirmação, dolorosa e resignada, de que eu não era nada, não valia a pena ligar-se a mim, minha vida estava em outro lugar, passava ao largo da felicidade de todos os dias, felicidade que talvez eu preferisse a todo o resto, mas, enfim, era tarde demais. Sobre as razões desse atraso decisivo, eu guardava segredo, pois sabia que era melhor dormir com o mistério. Em certo sentido, aliás, acreditava no que dizia, vivia meu papel. Não é de admirar, portanto, que também minhas parceiras desempenhassem com muito entusiasmo o papel delas. As mais sensíveis de minhas amiguinhas esforçavam-se por me compreender e este esforço as conduzia a melancólicos abandonos. As outras, satisfeitas por verem que eu respeitava as regras do jogo e tinha a delicadeza de falar antes de agir, passavam, sem esperar, às realidades. Então, eu ganhava duplamente, pois, além do desejo que nutria por elas, satisfazia o amor que dedicava a mim mesmo, ao verificar a cada vez meus belos poderes.
Tanto isso é verdade que, mesmo que acontecesse de algumas não me proporcionarem nada além de um prazer medíocre, vez por outra eu tratava de reatar com elas, sem dúvida, animado por este desejo singular que é favorecido pela ausência, seguida de uma cumplicidade de súbito reencontrada, mas também para verificar que nossos laços ainda se mantinham, e que só a mim competia estreitá-los. Às vezes, chegava mesmo ao ponto de lhes fazer jurar que não pertenceriam a nenhum outro homem, para aplacar de uma vez para sempre minhas inquietações sobre esse ponto. O coração, porém, não desempenhava papel algum nesta inquietação, tampouco a imaginação. Uma espécie de pretensão estava, com efeito, tão encarnada em mim que eu tinha dificuldade de imaginar, apesar das evidências, que uma mulher que havia sido minha pudesse alguma vez pertencer a outro. Mas este juramento que elas me faziam libertava-me ao prendê-las. A partir do momento em que não pertenciam a ninguém, podia então decidir-me a romper com elas, o que, de outro modo, era-me quase sempre impossível. A verificação, no que lhes dizia respeito, estava feita de uma vez por todas, e meu poder, garantido por muito tempo. Curioso, não? No entanto, é assim, meu caro compatriota. Uns gritam: "Ame-me!" Outros: "Não me ame!" Mas certa raça, a pior e a mais infeliz: "Não me ame e seja fiel!"
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Naquela noite, em novembro, dois ou três anos antes da noite em que julguei ouvir alguém rir às minhas costas, eu voltava para a margem esquerda, para casa, pela Pont Royal. Passava uma hora da meia-noite, caía uma chuva miúda, quase uma garoa que dispersava os raros transeuntes. Acabara de deixar uma amiguinha que, com certeza, já estava dormindo. Sentia-me bem com esta caminhada, um pouco entorpecido, o corpo acalmado, irrigado por um sangue suave como a chuva que caía. Na ponte, passei por detrás de uma forma debruçada sobre o parapeito e que parecia olhar o rio. De mais perto, distingui uma mulher nova e esguia, vestida de preto.
Entre os cabelos escuros e a gola do casaco, via-se apenas uma nuca, fresca e molhada, que me sensibilizou. Mas segui meu caminho, depois de certa hesitação. No fim da ponte, peguei o cais, em direção a Saint-Michel, onde eu morava. Já havia percorrido uns cinquenta metros, mais ou menos, quando ouvi o barulho de um corpo que cai na água e que, apesar da distância, no silêncio da noite, me pareceu grande. Parei na hora, mas sem me voltar. Quase imediatamente, ouvi um grito vários vezes repetido, que descia também o rio e depois se extinguiu bruscamente. O silêncio que se seguiu na noite paralisada pareceu-me interminável.
Quis correr e não me mexi. Acho que tremia de frio e de emoção. Dizia a mim mesmo que era preciso agir rapidamente me sentia uma fraqueza irresistível invadir-me o corpo. Esqueci-me do que pensei então. "Tarde demais, longe demais...”, ou algo do gênero. Escutava ainda, imóvel. Depois, afastei-me sob a chuva, às pressas. Não avisei ninguém. Mas já chegamos, eis a minha casa, o meu refúgio! Amanhã? Sim, como queira. Levá-lo-ei com prazer à ilha de Marken, verá o Zuyderzee. Esteja às onze horas no México-City. O quê? A tal mulher? Ah, na verdade, não sei, não sei. Não li os jornais do outro dia, nem dos dias seguintes.
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capítulo 2
É assim o homem, caro senhor, com duas faces: não consegue amar sem se amar.
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Veja, meu caro senhor, era uma bela noite de outono, ainda morna sobre a cidade, e já úmida sobre o Sena. A noite caía, o céu ainda estava claro no poente, mas já escurecia, os lampiões brilhavam debilmente. Eu subia o cais da margem esquerda, rumo à Pont dês Arts. Via-se o rio rebrilhar entre as bancas fechadas dos bouquinistes.
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Havia pouca gente no cais: Paris já estava à mesa. Eu esmagava sob os pés as folhas amarelas e poeirentas, que lembravam ainda o verão. Pouco a pouco, o céu se enchia de estrelas, que se distinguiam de modo fugaz, ao se afastar de um lampião para o outro. Eu saboreava o silêncio que retomava, a calma da noite, Paris vazia. Estava contente.
O dia fora bom: um cego, a redução de pena que eu esperava, o caloroso aperto de mão de meu cliente, algumas generosidades e, à tarde, um brilhante improviso, diante de alguns amigos, sobre a dureza de coração de nossa classe dirigente e a hipocrisia de nossas elites.
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Subira na Pont des Arts, àquela hora deserta, para olhar o rio que mal se adivinhava na noite que agora chegara. Em frente ao Vert-Galant, eu dominava a ilha. Sentia crescer em mim um vasto sentimento de força e de realização, que me dilatava o coração. Eu me endireitei e ia acender um cigarro, o cigarro da satisfação, quando, no mesmo momento, explodiu uma gargalhada atrás de mim. Surpreendido, fiz uma brusca meia-volta: não havia ninguém. Fui até o parapeito: nenhuma barcaça, nenhum barco. Virei-me para a ilha e de novo ouvi o riso às minhas costas, um pouco mais distante, como se descesse o rio. Fiquei onde estava, imóvel. O riso diminuía, mas eu o ouvia ainda distintamente atrás de mim, vindo de lugar nenhum, a não ser das águas. Ao mesmo tempo, sentia os batimentos precipitados do meu coração.
Compreenda-me bem, este riso nada tinha de misterioso: era um riso bom, natural, quase amigável, que recolocava as coisas em seus lugares. Aliás, logo depois não ouvi mais nada.
Retomei ao cais, entrei na rua Dauphine, comprei cigarros, sem necessidade alguma. Estava atordoado, respirava com dificuldade. Nessa noite, telefonei para um amigo, que não estava em casa. Hesitava em sair, quando, de repente, ouvi alguém rir sob a minha janela. Abri. Com efeito, na calçada, alguns jovens despediam-se alegremente. Dei de ombros, tornei a fechar a janela; afinal, eu tinha um processo para estudar. Dirigi-me ao banheiro para beber um copo d'água. Minha imagem sorria no espelho, mas pareceu-me que me via com um duplo sorriso...
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“Fazia a guerra por meios pacíficos e obtinha, enfim, pelo desinteresse, tudo que cobiçava. Por exemplo, nunca me lamentava de terem esquecido a data de meu aniversário; as pessoas chegavam a se surpreender, com uma ligeira dose de admiração, de minha discrição no caso. Mas a razão de meu desinteresse era ainda mais discreta: eu desejava ser esquecido para poder lamentar-me disso a mim mesmo. Vários dias antes da data, entre todas gloriosa, que eu conhecia bem, ficava à espreita, atento para nada deixar escapar que pudesse despertar a atenção e a memória daqueles cuja falha eu contava (não tive um dia a intenção de alterar um calendário?). Uma vez bem demonstrada minha solidão, podia então entregar-me aos encantos de uma tristeza viril.”
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Apregoava minha lealdade e acho que não há entre os seres que amei um único que, afinal, eu não tenha também traído. É certo que minhas traições não impediam minha fidelidade, eu liquidava um trabalho considerável à força de indolência, nunca deixei de ajudar o próximo, graças ao prazer que encontrava nisso. Mas em vão repetia a mim mesmo estas evidências, só tirava delas consolos superficiais. Certas manhãs, fazia a instrução de meu processo até o fim e chegava à conclusão de que eu primava sobretudo pelo desprezo. Aqueles mesmos que eu ajudava com mais frequência eram os mais desprezados. Com cortesia, com uma solidariedade cheia de emoção, cuspia todos os dias na cara de todos os cegos.
Francamente, haverá uma desculpa para isto? Existe uma, mas tão esfarrapada que não posso pensar em fazê-la prevalecer. Em todo caso, é esta: nunca consegui acreditar profundamente que os assuntos humanos fossem coisas sérias. Onde estava a seriedade, isso eu não sabia, a não ser que não estava em tudo aquilo que via e que me parecia unicamente um jogo divertido ou inoportuno. Há, na verdade, esforços e convicções que nunca compreendi.
Eu olhava sempre com um ar de espanto e com um pouco de suspeita aquelas estranhas criaturas que morriam por dinheiro e se desesperavam com a perda de uma "situação" ou se sacrificavam com grande ostentação pela prosperidade da família. Eu compreendia melhor aquele amigo que havia decidido nunca mais fumar e que, pela força de vontade, fora bem-sucedido.
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Sem dúvida, às vezes, eu fingia levar a vida a sério. Mas, bem depressa, o que havia de frívolo na própria seriedade evidenciava-se a mim e eu continuava apenas a desempenhar meu papel da melhor forma que podia. Representava o eficiente, o inteligente, o virtuoso, o patriota, o indignado, o indulgente, o solidário, o edificante ... Em suma, paro por aqui, o senhor já deve ter compreendido que eu era como os meus holandeses, que estão presentes sem estar: eu estava ausente no momento em que ocupava o máximo de espaço. Só fui verdadeiramente sincero e entusiasta no tempo em que praticava esportes e na tropa, quando representava nas peças que encenávamos, para a nossa diversão. Havia em ambos os casos uma regra do jogo, que não era séria, e nos divertíamos em considerar como tal. Ainda agora, as partidas de domingo num estádio superlotado e o teatro, que amei com uma paixão sem igual, são os únicos lugares no mundo em que me sinto inocente.
Mas quem admitiria que semelhante atitude possa ser legítima, quando se trata do amor, da morte e do salário dos miseráveis? Que fazer, no entanto? Eu só imaginava os amores de Isolda nos romances ou num palco. Os moribundos pareciam-me, às vezes, compenetrados de seu papel. As réplicas de meus clientes pobres pareciam-me sempre restringir-se à mesma cantilena. A partir daí, vivendo entre os homens sem compartilhar de seus interesses, não conseguia acreditar nos compromissos que assumia. Era suficientemente educado, e suficientemente indolente, para corresponder ao que esperavam de mim em minha profissão, minha família ou minha vida de cidadão, mas todas as vezes com uma espécie de distração que acabava por estragar tudo. Vivi minha vida inteira sob um duplo signo e minhas atividades mais sérias foram, muitas vezes, aquelas em que me sentia menos comprometido. Afinal, não seria isso que, para agravar minhas asneiras, não consegui me perdoar, que me fez resistir com o máximo de violência contra o julgamento que eu sentia em ação, em mim e a meu redor; e que me obrigou a procurar uma saída?
Durante algum tempo, e aparentemente, minha vida continuou como se nada houvesse mudado. Estava nos eixos e rodava normalmente. Como se fosse de propósito, redobravam os elogios à minha volta. O mal veio precisamente daí. Lembra-se: "Ai de vós quando todos os homens vos louvarem!" Ah! aquele falava muito bem! Ai de mim! A máquina passou então a ter caprichos, paradas inexplicáveis.
Foi nesse momento que o pensamento da morte irrompeu em minha vida diária. Contava os anos que me separavam de meu fim. Buscava exemplos de homens de minha idade que já estivessem mortos. E me atormentava a ideia de que não teria tempo de realizar a minha tarefa.
Que tarefa? Eu nem sabia. Para falar com franqueza, valeria a pena continuar a fazer o que eu fazia? Mas não era exatamente isso. Perseguia-me, com efeito, um temor ridículo: não se podia morrer sem ter confessado todas as mentiras. Não a Deus, nem a um de seus representantes, eu estava acima disso, como o senhor pode imaginar. Não, tratava-se de confessá-las aos homens, a um amigo, ou a uma mulher amada, por exemplo. De outra forma, e mesmo que houvesse uma única mentira oculta numa vida, a morte tornava-a definitiva. Nunca mais ninguém conheceria a verdade sobre este ponto, já que a única pessoa que a conhecia era precisamente o morto, adormecido sobre o seu segredo. Este assassinato absoluto de uma verdade me desnorteava.
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"Suponhamos que tenha aceitado defender algum comovente cidadão, assassino movido por ciúme. Considerem, senhores jurados, diria eu, o que pode haver de venial em nos enchermos de ira ao ver a própria bondade natural posta à prova pela malignidade do sexo.
Não será mais grave, pelo contrário, encontrar-me deste lado do tribunal, em meu próprio banco, sem nunca ter sido bom, nem sofrer por ter sido logrado. Sou livre, isento de vossos rigores, e, no entanto, quem sou eu? Um cidadão-sol quanto ao orgulho, um bode de luxúria, um faraó na cólera, um rei de preguiça. Não matei ninguém? Ainda não, sem dúvida! Mas não deixei morrer criaturas dignas? Talvez. E talvez esteja pronto a recomeçar. Enquanto aquele, olhem bem para ele, não recomeçará. Ainda está todo cheio de espanto por ter trabalhado tão bem:' Este discurso perturbou um pouco meus jovens confrades. Ao cabo de um momento, resolveram que era melhor rir. Tranquilizaram-se completamente quando cheguei à minha conclusão, na qual invocava com eloquência a pessoa humana e seus supostos direitos. O bom relacionamento, nesse dia, foi mais forte.
Ao renovar estes rompantes amáveis, consegui somente desnortear um pouco a plateia. Não desarmá-la, tampouco me desarmar. O espanto que eu encontrava, geralmente, em meus ouvintes, seu embaraço um pouco reticente, bastante parecido com o que o senhor mostra — não, não proteste —, não me trouxeram paz alguma. Como vê, não basta acusarmo-nos para sermos declarados inocentes, nesse caso eu seria um cordeiro imaculado. É preciso nos acusarmos de certa maneira, que me levou muito tempo para aperfeiçoar e que não descobri antes de me achar no mais completo abandono. Até então, o riso continuou a flutuar à minha volta, sem que meus esforços desordenados conseguissem tirar-lhe o que ele tinha de benevolente, de quase terno, e que me fazia mal.
Mas parece-me que a maré está subindo. Nosso barco não vai demorar a partir, o dia chega ao fim. Olhe, as pombas se juntam lá em cima. Elas se chegam umas de encontro às outras, mal se mexem, e a luz declina. Quer que nos calemos para saborear esta hora um tanto sinistra?
Não, eu o interesso? O senhor é muito amável. Além disso, talvez agora eu o interesse de verdade. Antes de me explicar sobre os juizes-penitentes, tenho de lhe falar acerca da libertinagem e do desconforto.
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Hesito em confessar, com medo de proferir ainda alguns palavrões: creio efetivamente que nessa época senti a necessidade de um amor. É obsceno, não? No entanto, vivia um sofrimento surdo, uma espécie de privação, que me tornou mais vazio, e me permitiu, meio forçado, meio curioso, assumir alguns compromissos.
Já que tinha necessidade de amar e de ser amado, julguei-me apaixonado. Em outras palavras, fiz papel de bobo.
Eu me surpreendia frequentemente a fazer uma pergunta que, como homem vivido, sempre evitara até então. Eu me ouvia perguntar: "Você me ama?" Sabe, é costume responder em casos semelhantes: "E você?" Quando respondia sim, eu me via comprometido além de meus verdadeiros sentimentos. Quando ousava dizer não, eu me arriscava a não mais ser amado, e sofria com isso. Quanto mais o sentimento em que eu esperava encontrar repouso se achava ameaçado, mais o exigia de minha companheira. Eu era levado, portanto, a promessas cada vez mais explícitas e chegava a exigir de meu coração um sentimento cada vez mais vasto. Fui tomado assim de uma falsa paixão por uma encantadora desmiolada tão conhecedora das revistas sentimentais que falava de amor com a segurança e a convicção de um intelectual proclamando a sociedade sem classes. Tal convicção, como não desconhece, é sedutora. Também ensaiei falar de amor e acabei por persuadir a mim mesmo. Pelo menos até o momento em que se tornou minha amante e compreendi que as revistas sentimentais que ensinavam a falar de amor não ensinavam a praticá-la. Depois de ter amado um papagaio, tive de dormir com uma serpente. Procurei, então, em outros lugares, o amor prometido pelos livros e que nunca havia encontrado na vida.
Mas me faltava prática. Havia mais de trinta anos que eu apenas amava a mim mesmo. Como perder um hábito desses? Absolutamente não o perdi e permaneci um espectador da paixão. Então, multipliquei as promessas. Tive amores simultâneos, como já tivera em outros tempos, ligações múltiplas. Acumulei, então, mais desgostos para os outros que no tempo da minha bela indiferença. Já lhe contei que meu papagaio, desesperado, quis deixar-se morrer de fome? Felizmente, cheguei a tempo e me resignei a segurar sua mão até que ela encontrasse, de regresso de uma viagem a Bali, o engenheiro de têmporas grisalhas que sua revista preferida já lhe havia descrito. Em todo caso, longe de me sentir enlevado e absorvido pela eternidade, como se diz, na paixão, agravei ainda mais o peso de meus erros e meu desalento.
Criei tal aversão ao amor que, durante anos, não conseguia ouvir, sem um ranger de dentes, La vie en rose ou A morte de Isolda. Então, tentei renunciar às mulheres, de certa maneira, e viver em estado de castidade. Mas me faltava prática. Havia mais de trinta anos que eu apenas amava a mim mesmo. Como perder um hábito desses? Absolutamente não o perdi e permaneci um espectador da paixão. Então, multipliquei as promessas. Tive amores simultâneos, como já tivera em outros tempos, ligações múltiplas. Acumulei, então, mais desgostos para os outros que no tempo da minha bela indiferença. Já lhe contei que meu papagaio, desesperado, quis deixar-se morrer de fome? Felizmente, cheguei a tempo e me resignei a segurar sua mão até que ela encontrasse, de regresso de uma viagem a Bali, o engenheiro de têmporas grisalhas que sua revista preferida já lhe havia descrito. Em todo caso, longe de me sentir enlevado e absorvido pela eternidade, como se diz, na paixão, agravei ainda mais o peso de meus erros e meu desalento.
Todas as noites, eu desfilava diante do balcão, à luz vermelha e na poeira desse lugar de delícias, mentindo descaradamente e bebendo sem parar. Esperava o romper da alvorada e, enfim, deixava-me cair na cama sempre desfeita de minha princesa, que se entregava mecanicamente ao prazer e logo adormecia. O dia vinha docemente iluminar esse desastre e eu me sentia elevado, imóvel, numa manhã de glória.
O álcool e as mulheres me proporcionaram, devo confessar, o único consolo de que era digno. Confio-lhe este segredo, caro amigo, e não tenha receio de valer-se dele.
Compreenderá, então, que a verdadeira libertinagem é libertadora, porque não impõe qualquer obrigação. Na libertinagem, só se possui a si próprio; ela permaneceu, pois, a ocupação preferida dos grandes apaixonados por sua própria pessoa. É uma selva, sem futuro nem passado, e, sobretudo, sem promessas, nem sanção imediata. Os lugares nos quais ela se exercita são separados do mundo.
Deixam-se, ao entrar, tanto o medo quanto a esperança. A conversa não é obrigatória; o que se vem procurar pode ser obtido sem palavras e, muitas vezes, até sem dinheiro. Ah! Eu lhe peço, deixe-me prestar uma especial homenagem às mulheres desconhecidas e esquecidas que então me ajudaram. Ainda hoje, mistura-se à lembrança que guardei delas algo semelhante a respeito
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O único proveito dessa experiência, quando renunciei às minhas façanhas noturnas, foi que a vida se tornou menos dolorosa. O cansaço que corroía meu corpo permitiu, ao mesmo tempo, a erosão de muitas partes essenciais de mim mesmo. Cada excesso diminui a vitalidade e, portanto, o sofrimento. A libertinagem nada tem de frenético, ao contrário do que se pensa.
É apenas um longo sono. O senhor já deve ter notado, o homem que verdadeiramente sofre de ciúmes não tem outra pressa senão a de deitar-se com aquela que, no entanto, julga que o traiu.
É claro que querem assegurar-se, mais uma vez, de que seu precioso tesouro ainda lhes pertence.
Querem possuí-lo, como se diz. Mas é também porque, logo a seguir, ficam menos ciumentos. O ciúme físico é um produto da imaginação e, ao mesmo tempo, um julgamento que se faz de si mesmo. Atribuímos ao rival os sórdidos pensamentos que tivemos nas mesmas circunstâncias.
Felizmente, o prazer excessivo debilita tanto a imaginação quanto o julgamento. Então, o sofrimento dorme junto com a virilidade e tanto quanto ela. Pelas mesmas razões, os adolescentes perdem, com a primeira amante, sua inquietação metafísica, e certos casamentos, que são uma libertinagem burocratizada, tornam-se, ao mesmo tempo, os monótonos coveiros da audácia e da imaginação. Sim, caro amigo, o casamento burguês colocou nosso país de chinelos e em breve vai levá-lo às portas da morte.
Estou exagerando? Não, mas estou divagando. Queria somente dizer-lhe dos benefícios que tirei desses meses de orgia. Eu vivia em uma espécie de nevoeiro, em que o riso era abafado, e a tal ponto que terminei por não mais percebê-lo. A indiferença, que já ocupava tanto espaço em mim, deixou de encontrar resistência e alastrou sua esclerose. Chega de emoções! Um humor igual, ou melhor, nenhum humor. Os pulmões tuberculosos se curam quando ressecados, e asfixiam, pouco a pouco, seu feliz proprietário. O mesmo acontecia comigo, que morria placidamente de minha cura
*
Um dia, porém, no decurso de uma viagem que ofereci a uma amiga, sem lhe dizer que o fazia para festejar minha cura, encontrei-me a bordo de um transatlântico, na coberta, naturalmente. De repente, divisei ao largo um ponto negro no oceano cor-de-ferro. Desviei os olhos imediatamente, meu coração começou a bater. Quando me forcei a olhar, o ponto negro havia desaparecido. Ia gritar, chamar estupidamente por socorro, quando voltei a vê-lo. Tratava-se de um daqueles resíduos que os navios deixam atrás de si. No entanto, eu não havia conseguido suportar sua visão, havia pensado logo tratar-se de um afogado. Compreendi, então, sem revolta, como nos resignamos a uma ideia cuja verdade se conhece há muito tempo, e que aquele grito que, anos atrás, havia ressoado às minhas costas no Sena, levado pelo rio em direção às águas da Mancha, não havia deixado de caminhar pelo mundo, através da vastidão ilimitada do oceano, e que me havia esperado até aquele dia em que o encontrara. Compreendi, também, que ele continuaria a esperar-me nos mares e nos rios, por toda parte, enfim, onde se encontrasse a água amarga do meu batismo. Mesmo aqui, diga-me, não estamos nós sobre a água? Sobre a água plana, monótona, interminável, que confunde seus limites com os da terra? Como acreditar que vamos chegar a Amsterdã? Nunca mais sairemos desta imensa pia de água benta. Escute! Não ouve os gritos de gaivotas invisíveis? Se gritam em nossa direção, para que então nos chamam?
Mas são as mesmas que gritavam, que chamavam desde o Atlântico, no dia em que compreendi definitivamente que não estava curado, que continuava encurralado e que era preciso me acomodar. Acabara-se a vida gloriosa, mas também a raiva e os sobressaltos. Era preciso submeter-me e reconhecer a culpa. Era preciso viver no desconforto. É verdade, o senhor não conhece aquela cela de masmorra, a que na Idade Média chamavam de "desconforto". Em geral, esqueciam os condenados lá para o resto da vida. Tal cela distinguia-se das outras por suas engenhosas dimensões. Não era suficientemente alta para se poder ficar de pé, nem suficientemente larga para se poder deitar. Tinha-se de assumir uma posição encolhida, viver em diagonal; o sono era uma queda, a vigília acocorada. Meu caro, era engenhoso, e eu peso minhas palavras neste achado tão simples. Todos os dias, por meio do imutável constrangimento que anquilosava o seu corpo, o condenado aprendia que era culpado e que a inocência consiste em poder esticar-se livremente. Pode-se imaginar nesta cela um frequentador das alturas e das cobertas dos navios? O quê? Podia-se viver nesta cela e ser inocente? É impossível, altamente improvável! Ou então, minha lógica cairia por terra. Que a inocência se veja restrita a viver corcunda, recuso-me a considerar por um único segundo sequer esta hipótese. Além disso, não podemos afirmar a inocência de ninguém, ao passo que podemos afirmar com segurança a culpabilidade de todos. Cada homem é testemunha do crime de todos os outros, eis minha fé e minha esperança.
Acredite-me, as religiões enganam-se, a partir do momento em que pregam a moral e fulminam os mandamentos. Não é necessário existir Deus para criar a culpabilidade, nem para castigar. Para isso, bastam nossos semelhantes, ajudados por nós mesmos. O senhor falava-me do juízo Final. Permita-me que ria disso respeitosamente. Posso esperá-la com tranquilidade: conheci o que há de pior, que é o julgamento dos homens. Para eles, não há circunstâncias atenuantes, mesmo a boa intenção é tida como crime. Ouviu ao menos falar da cela de escarros que um povo criou recentemente para provar que era o maior do mundo? Ê uma caixa de alvenaria, em que o prisioneiro fica de pé, mas sem poder se mexer. A sólida porta que o encerra em sua concha de cimento chega apenas até a altura do queixo. Vê-se, pois, unicamente seu rosto, no qual todo guarda que passa escarra à vontade. O prisioneiro, espremido na cela, não se pode limpar, ainda que lhe seja permitido, é bem verdade, fechar os olhos. Pois bem, isto, meu caro, é uma invenção dos homens. Não precisaram de Deus para criar esta obra-prima
E então? Então, a única utilidade de Deus seria garantir a inocência, mas eu vejo a religião antes de tudo como uma grande empresa de lavanderia, o que, aliás, ela foi, mas por breve tempo, precisamente durante três anos, e não se chamava religião. Desde então, falta sabão, andamos com o nariz sujo e nos assoamos mutuamente. Todos culpados, todos castigados, escarremo-nos, e pronto! Já para o desconforto! Basta ver quem escarra primeiro, eis tudo. Vou contar-lhe um grande segredo, meu caro. Não espere pelo juízo Final. Ele se realiza todos os dias.
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Olhe, sabe por que crucificaram o outro, aquele em quem neste momento talvez o senhor pense? Bem, havia muitas razões para isso. Há sempre razões para matar um homem. Inversamente, é impossível justificar que viva. É por isso que o crime encontra sempre advogados, e a inocência, apenas às vezes. Mas, além das razões que muito bem nos explicaram durante dois mil anos, havia uma grande para esta horrível agonia, e não sei por que a escondem tão cuidadosamente. A verdadeira razão é que ele próprio sabia que não era completamente inocente. Se não carregava o peso do erro de que o acusavam, havia cometido outros, ainda que ignorasse quais fossem. Ignoraria mesmo, aliás?
Ele representava a origem, afinal, deve ter ouvido falar de um certo massacre dos inocentes. As crianças da Iudeia massacradas, enquanto seus pais o levavam para um lugar seguro; por que haviam sido mortas, senão por sua causa? Ele não o desejara, é certo. Esses soldados sangrentos, aquelas crianças cortadas ao meio, causavam-lhe horror. Mas, sendo como era, tenho certeza de que não conseguia esquecê-las. E essa tristeza que se adivinha em todos os seus atos não seria a melancolia incurável de quem ouvia ao longo das noites a voz de Raquel, gemendo sobre os seus filhos e recusando qualquer consolo? O lamento ecoava na noite, Raquel chamava os filhos mortos por sua causa e ele estava vivo!
Sabendo o que sabia, conhecendo tudo sobre o homem — ah, quem pensaria que crime não é tanto fazer morrer, mas não se deixar morrer! — confrontado dia e noite com o seu crime inocente, tornava-se muito difícil manter o equilíbrio e continuar. Mais valia terminar, não se defender, morrer, para não mais estar sozinho na vida e ir-se embora para onde talvez pudesse ser amparado. Não foi amparado, disso se queixou e, para cúmulo, censuraram-no. Sim, foi o terceiro evangelista, creio, que começou a suprimir sua queixa. "Por que me abandonaste!" era um grito subversivo, não acha? Então, tesouras! Note-se, aliás, que, se Lucas nada houvesse cortado, a coisa mal teria sido notada; não teria ocupado tanto espaço, em todo caso. Mas o censor é a propaganda do que proscreve. Também a ordem do mundo é ambígua.
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É isso, volto à minha vocação, vou advogar. Desculpe-me, compreenda que tenho as minhas razões. Olhe, a poucos quarteirões daqui há um museu com o nome de Nosso Senhor no Sótão. Naquela época, colocavam as catacumbas nos sótãos. Era de se esperar, aqui os subterrâneos são inundados. Mas, sossegue, hoje o Senhor deles não está mais no sótão, nem no porão. No íntimo de seus corações, eles o empoleiraram num Tribunal e o agridem, sobretudo julgam, julgam em seu nome. Ele dizia docemente à pecadora: "Eu também, eu não te condeno!", o que nada impede, eles condenam, não absolvem ninguém. Em nome do Senhor, esta é a tua pena. Senhor? Ele não pedia tanto, meu amigo. Ele queria que o amassem, nada mais. É bem verdade que há pessoas, mesmo entre os cristãos, que o amam. Mas são muito poucas. Ele havia previsto isso, aliás, tinha senso de humor. Pedra, como sabe, o covarde, Pedro, portanto, o renega: "Não conheço este homem ... Não sei o que queres dizer. ..» etc.
Realmente, ele exagerava! E faz um jogo de palavras: "Sobre esta pedra edificarei minha Igreja.” Não se podia levar mais longe a ironia, não acha? Mas não, eles ainda triunfam! "Como vocês veem, ele tinha dito!" Ele tinha dito, de fato, ele conhecia bem a questão. E, a seguir, partiu para sempre, deixando-os julgar e condenar, com o perdão nos lábios e a sentença no coração.
Porque não se pode dizer que não há mais piedade; não, protesto com veemência, não cessamos de falar nela. Simplesmente, já não se absolve ninguém. Sobre a inocência morta, pululam os juízes, os juízes de todas as raças, os de Cristo e os do Anticristo, que são, aliás, os mesmos, reconciliados no desconforto. Isto porque não devemos atacar apenas os cristãos.
Os outros também estão comprometidos. Sabe em que se transformou, nesta cidade, uma das casas que abrigou Descartes? Em asilo de alienados. Sim, trata-se do delírio geral e da perseguição. Nós também, naturalmente, somos forçados a nos envolver. O senhor teve oportunidade de notar que eu não poupo nada e, do seu lado, sei que pensa o mesmo. A partir daí, uma vez que somos todos juízes, somos todos culpados uns perante os outros, todos cristos à nossa maneira vil, crucificados um a um, sempre sem saber.
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Na solidão, com a ajuda do cansaço, como se pode esperar, facilmente nos consideramos profetas. Afinal, é isso mesmo o que sou, refugiado num deserto de pedras, de brumas e de águas pútridas, profeta vazio para tempos medíocres, Elias sem Messias, cheio de febre e de álcool, encostado nesta porta bolorenta, de dedo erguido para um céu baixo, cobrindo de imprecações homens sem lei, que não conseguem suportar julgamento algum. Pois eles não o conseguem suportar, meu caro, e esse é o problema. Quem adere a uma lei não teme o julgamento que o recoloca em uma ordem na qual crê. Mas o mais alto dos tormentos humanos é ser julgado sem lei. Nós vivemos, porém, neste tormento. Privados de seu freio natural, os juízes, soltos ao acaso, servem-se à vontade. Então, não acha que é realmente preciso tentar andar mais rápido do que eles? E aí tem início a grande confusão. Os profetas e os curandeiros multiplicam-se, apressam-se para chegar a uma lei certa ou a uma organização impecável, antes que a terra fique deserta. Felizmente, eu consegui! Eu sou o fim e o começo, eu anuncio a lei. Em suma, sou juiz-penitente.
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Afinal, é isso mesmo que eu sou, refugiado num deserto de pedras, de brumas e de águas pútridas, profeta vazio para tempos medíocres; Elias sem Messias, cheio de febre e de álcool, encostado nesta porta bolorenta, de dedo erguido para um céu baixo, cobrindo de imprecações homens sem lei, que não conseguem suportar nenhum julgamento. Pois eles não conseguem suportar nenhum julgamento, meu caro, e esse é o problema. (...) o mais alto dos tormentos humanos é ser julgado sem lei.
Albert Camus, A Queda