Morrerei. Uma parte do meu corpo se transformará em água. Correrei pela cidade, entrarei nos encanamentos, descerei pelo chuveiro. Tu te esfregarás em mim, misturando-me com teu perfume. Circularei nas tuas entranhas.
A outra parte será mudada em semente, em árvore, em papel, rodará nas máquinas tipográficas que imprimirão os poemas que escrevi em teu louvor. Teu hálito aquecerá as pobres palavras. Tu me ouvirás, me lerás – eu te lerei. Tu me lerás em mim.
Desligado no tempo, dispersado no espaço, nascerei para os que ainda vão nascer. Começarei em ti, nos poetas que te glorificam em mim e me glorificam em ti. Existirei para teus filhos, teus netos, e os netos de teus netos. Seremos uma só biografia escrita no sem princípio e sem fim da grande unidade.
Murilo Mendes
Do livro sinal de deus 1936