– “Não faça tanta fita!”, costuma dizer ele – respondeu Joachim. – Foi pelo menos o que disse recentemente numa ocasião dessas. Quem nos contou a história foi a enfermeira-chefe, que estava lá para segurar o agonizante. Era um daqueles que no leito de morte ainda fazem uma cena pavorosa e absolutamente não querem morrer. Então o Behrens ralhou com ele. “Deixe de fazer tanta fita!”, disse, e o paciente logo ficou quietinho e morreu com toda a calma. Hans Castorp deu uma palmada na coxa, e reclinando-se no encosto do banco, dirigiu os olhos para o céu: – Escute, essa é muito forte! – exclamou. – Ralhar com o doente e dizer-lhe simplesmente: “Não faça tanta fita!” A um moribundo! É demais. Afinal de contas, um moribundo merece algum respeito. Não se pode dizer-lhe sem mais aquela... Parece-me que um moribundo é, de certo modo, sagrado. – Não digo o contrário – concedeu Joachim. – Mas quando alguém se comporta covardemente... – Não senhor! – insistiu Hans Castorp, com uma violência que não estava proporcional à oposição que se lhe fazia. – Ninguém me tirará da cabeça que um moribundo é mais nobre do que um indivíduo qualquer que passeia e ri e ganha dinheiro e enche a pança. Não é possível... – Sua voz vacilou estranhamente. – Não é possível que se trate assim... – E de súbito suas palavras se afogaram numa gargalhada que se apoderou dele e o dominou; o mesmo riso da véspera, um riso que lhe brotava das entranhas, lhe sacudia todo o corpo e não tinha fim, que lhe cerrou os olhos e extraiu lágrimas por entre as pálpebras comprimidas.
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Que é o tempo, afinal? – perguntou Hans Castorp comprimindo o nariz com tamanha violência, que a ponta se tornou branca e exangue. – Quer me dizer isto? Percebemos o espaço com nossos sentidos, por meio da vista e do tato. Muito bem! Mas que órgão possuímos para perceber o tempo? Pode me responder a essa pergunta? Bem vê que não pode. Como é possível medir uma coisa da qual, no fundo, não sabemos nada, nada, nem sequer uma única das suas características? Dizemos que o tempo passa. Está bem, deixe-o passar. Mas para que possamos medi-lo... Espere um pouco! Para que o tempo fosse mensurável, seria preciso que decorresse de um modo uniforme; e quem lhe garante que é mesmo assim? Para a nossa consciência, não é. Somente o supomos, para a boa ordem das coisas, e as nossas medidas, permita-me esta observação, não passam de convenções...
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O homem não vive somente a sua vida individual; consciente ou inconscientemente participa também da vida de sua época e dos seus contemporâneos. Até mesmo uma pessoa inclinada a julgar absolutas e naturais as bases gerais e ultra-pessoais da sua existência, e que da ideia de criticá-las permaneça tão distante quanto o bom Hans Castorp – até uma pessoa assim pode facilmente sentir o seu bem-estar moral um tanto diminuído pelos defeitos inerentes a essas bases. O indivíduo pode visar numerosos objetivos pessoais, finalidades, esperanças, perspectivas, que lhe deem o impulso para grandes esforços e elevadas atividades; mas, quando o elemento impessoal que o rodeia, quando o próprio tempo, não obstante toda a agitação exterior, carece no fundo de esperanças e perspectivas, quando se lhe revela como desesperador, desorientado e falto de saída, e responde com um silêncio vazio à pergunta que se faz consciente ou inconscientemente, mas em todo caso se faz, a pergunta pelo sentido supremo, ultra-pessoal e absoluto, de toda atividade e de todo esforço – então se tornará inevitável, justamente entre as naturezas mais retas, o efeito paralisador desse estado de coisas, e esse efeito será capaz de ir além do domínio da alma e da moral, e de afetar a própria parte física e orgânica do indivíduo. Para um homem se dispor a empreender uma obra que ultrapassa a medida das absolutas necessidades, sem que a época saiba uma resposta satisfatória à pergunta “Para quê?”, é indispensável ou um isolamento moral e uma independência, como raras vezes se encontram e têm um quê heroico, ou então uma vitalidade muito robusta. Hans Castorp não possuía nem uma nem outra dessas qualidades, e portanto deve ser considerado medíocre, posto que num sentido inteiramente decoroso.
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Thomas Mann, “A montanha mágica”