domingo, 20 de fevereiro de 2022

arthur-braginsky

 

Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos

me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse

inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia

sua existência demasiado forte. Pois que é o Belo

senão o grau do Terrível que ainda suportamos

e que admiramos porque, impassível, desdenha

destruir-nos? Todo Anjo é terrível.

E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo

do meu soluço obscuro. Ai, quem nos poderia

valer? Nem Anjos, nem homens

e o intuitivo animal logo adverte

que para nós não há amparo

neste mundo definido. Resta-nos, quem sabe,

a árvore de alguma colina, que podemos rever

cada dia; resta-nos a rua de ontem

e o apego cotidiano de algum hábito

que se afeiçoou a nós e permaneceu.

E a noite, a noite, quando o vento pleno dos espaços

do mundo desgasta-nos a face – a quem se furtaria ela,

a desejada, ternamente enganosa, sobressalto para o

coração solitário? Será mais leve para os que se amam?

Ai, apenas ocultam eles, um ao outro, seu destino.

Não o sabias? Arroja o vácuo aprisionado em teus braços

para os espaços que respiramos – talvez os pássaros

sentirão o ar mais dilatado, num voo mais comovido.


Sim, as primaveras precisavam de ti.

Muitas estrelas queriam ser percebidas.

Do passado profundo afluía uma vaga, ou

quando passavas sob uma janela aberta,

um violino d’amore se abandonava. Tudo isto era missão.

Acaso a cumpriste? Não estavas sempre

distraído, à espera, como se tudo

anunciasse a amada? (Onde queres abrigá-la,

se grandes e estranhos pensamentos vão e vêm

dentro de ti e, muitas vezes, se demoram nas noites?)

Se a nostalgia vier, porém, canta as amantes;

ainda não é bastante imortal sua celebrada ternura.

Tu quase as invejas – essas abandonadas

que te pareceram tão mais ardentes que as

apaziguadas. Retoma infinitamente o inesgotável

louvor. Lembra-te: o herói permanece, sua queda

mesma foi um pretexto para ser – nascimento supremo.


Mas às amantes, retoma-as a natureza no seio

esgotado, como se as forças lhe faltassem

para realizar duas vezes a mesma obra.

Com que fervor lembraste Gaspara Stampa,

cujo exemplo sublime faça enfim pensar uma jovem

qualquer, abandonada pelo amante: por que não sou

como ela? Frutificarão afinal esses longínquos

sofrimentos? Não é tempo daqueles que amam libertar-se

do objeto amado e superá-lo, frementes?

Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no voo

mais do que ela mesma. Pois em parte alguma se detém.


Vozes, vozes. Ouve, meu coração, como outrora apenas

os santos ouviam, quando o imenso chamado

os erguia do chão; eles porém permaneciam ajoelhados,

os prodigiosos, e nada percebiam,

tão absortos ouviam. Não que possas suportar

a voz de Deus, longe disso. Mas ouve essa aragem,

a incessante mensagem que o silêncio prodiga.

Ergue-se agora, para que ouças, o rumor

dos jovens mortos. Onde quer que fosses,

nas igrejas de Roma e Nápoles, não ouvias a voz

de seu destino tranquilo? Ou inscrições não se ofereciam,

sublimes? A estela funerária em Santa Maria Formosa…

O que pede essa voz? A ansiada libertação

da aparência de injustiça que às vezes perturba

a agilidade pura de suas almas.


É estranho, sem dúvida, não habitar mais a terra,

abandonar os hábitos apenas aprendidos,

às rosas e a outras coisas singularmente promissoras

não atribuir mais o sentido do vir-a-ser humano;

o que se era, entre mãos trêmulas, medrosas,

não mais o ser; abandonar até mesmo o próprio nome

como se abandona um brinquedo partido.

Estranho, não desejar mais nossos desejos. Estranho,

ver no espaço tudo quanto se encadeava, esvoaçar,

desligado. E o estar-morto é penoso

e quantas tentativas até encontrar em seu seio

um vestígio de eternidade. – Os vivos cometem

o grande erro de distinguir demasiado

bem. Os Anjos (dizem) muitas vezes não sabem

se caminham entre vivos ou mortos.

Através das duas esferas, todas as idades a corrente

eterna arrasta. E a ambas domina com seu rumor.


Os mortos precoces não precisam de nós, eles

que se desabituam do terrestre, docemente,

como de suave seio maternal. Mas nós,

ávidos de grandes mistérios, nós que tantas vezes

só através da dor atingimos a feliz transformação, sem eles

poderíamos ser? Inutilmente foi que outrora, a primeira

música para lamentar Linos, violentou a rigidez da

matéria inerte? No espaço que ele abandonava, jovem,

quase deus, pela primeira vez o vácuo estremeceu

em vibrações – que hoje nos trazem êxtase, consolo e amparo.

 

 Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno