domingo, 14 de setembro de 2014

O existencialismo é um humanismo


O existencialista declara frequentemente que o homem é angústia. Tal afirmação significa o seguinte: o homem que se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas aquele que escolheu ser, mas também um legislador que escolhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade  inteira, não consegue escapar ao sentimento  de sua total e profunda responsabilidade. É fato que muitas pessoas não sentem ansiedade, porém nós estamos convictos de que essas pessoas mascaram a ansiedade  perante  si mesmas, evitam encará-las; certamente muitos pensam que, ao agir, estão apenas engajando a si próprios e, quando lhes pergunta: mas se todos fizerem o mesmo? Eles encolhem os ombros e respondem: nem todos fazem o mesmo. Porém, na verdade, devemos sempre perguntar-nos: o que aconteceria se todo mundo fizesse como nós? E não podemos escapar a essa pergunta inquietante a não ser através de uma espécie de má-fé. Aquele que mente e se desculpa dizendo: nem todo mundo faz o mesmo, é alguém que não está em paz com sua consciência, pois o fato  de mentir implica um valor universal atribuído à mentira. Mesmo quando ela se disfarça, a angústia aparece. É esse tipo de angústia que Kierkegaard chamava a angústia de Abraão. Todos conhecem a história: um anjo ordena a Abraão que sacrifique seu filho. Está tudo certo se foi realmente um anjo que veio e disse: Tu és Abraão e sacrificará teu filho. Porém, pra começar, cada qual pode perguntar-se: será que era verdadeiramente um anjo? Ou: será que sou mesmo Abraão? Que provas tenho? Havia uma louca que tinha alucinações: falava-lhe pelo telefone dando ordens. O médico pergunta: “Mas afinal, quem fala com você?. Ela responde: “Ele diz que é Deus”. Que provas tinha ela que de fato era Deus? E um anjo aparece, como saberei que é um anjo? E se escuto vozes, o que me prova que elas vem do céu e não do inferno? Ou do subconsciente ou de  um  estado patológico? O que prova que elas se dirigem a mim? Quem pode provar-me que fui eu, efetivamente, o escolhido para impor a minha concepção do homem e a minha própria escolha à humanidade?  Não encontrei jamais, prova alguma, nenhum sinal que possa convencer-me. Se uma voz se dirige a mim sou sempre eu mesmo que terei que decidir que essa voz é a voz de um anjo; se considero que determinada ação é boa. Sou eu mesmo que escolho afirmar se ela é boa ou má. Nada me designa para ser Abraão, e no entanto, sou a cada instante obrigado a realizar atos exemplares. Tudo se passa como se a humanidade inteira estivesse de olhos fixos em cada homem e se regrasse por suas ações. E cada homem deve perguntar a si próprio: sou eu realmente, aquele que tem o direito de agir de tal forma que os meus atos sirvam de norma para a humanidade? E, se ele não fizer a si mesmo esta pergunta, é porque estará mascarando sua angústia. Não se trata de uma angústia que conduz ao quietismo, à inação. Trata-se de uma angústia simples, que todos aqueles que um dia tiveram responsabilidades  conhecem bem. Quando por exemplo um chefe militar assume a responsabilidade de uma ofensiva e envia para a morte certo número de homens, ele escolhe  fazê-lo e, no fundo,  escolhe sozinho. Certamente que certas ordens vêm de cima, porém são abertas demais e exige uma interpretação  - responsabilidade sua – que depende a vida de dez, catorze ou vinte homens. Não é possível que não exista certa angústia na decisão tomada. Todos os chefes conhecem essa angústia. Mas isso não os impede de agir, muito pelo contrário: é a própria angústia que constitui a  condição de sua ação, pois ela pressupõe  que eles encarem a pluralidade dos possíveis e que, ao escolher um caminho, eles se deem conta de que ele não tem valor a não ser o de ter sido escolhido. Veremos que esse tipo de angústia  - a que o existencialismo descreve – se aplica também por uma responsabilidade direta para com os outros homens engajados pela escolha. Não se trata de uma cortina entreposta entre nós e a ação, mas parte constitutiva da própria ação.

O existencialismo é um humanismo
Jean-Paul Sartre
Tradutora: Rita Correia Guedes
L’existencialisme est un humanisme